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Revista Internacional em Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 2182-4452versão On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.38  Lisboa dez. 2020  Epub 21-Mar-2021

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2020.38/pp.49-67 

Artigo Original

Site-specific: trabalhos direcionados para um lugar predeterminado

Lucas Rossi Gervilla1 

1 Instituto de Artes, UNESP - Universidade Estadual Paulista, Brasil.


Resumo

Este artigo apresenta uma breve retrospectiva da linguagem artística conhecida como site-specific; também debate questões a respeito do o uso do vídeo e a presença (ou não) do espectador nesse tipo de trabalho; e como a câmera pode ser usada como um dispositivo de mediação entre o artista e o público. São analisados alguns dos trabalhos que considerados precursores desse estilo - surgido em meados da década de 1960 - e a ideia de como a remoção ou mudança de lugar de uma obra site-specific pode transformá-la, ou ainda, alterar o seu sentido. O texto também propõe uma aproximação entre arte e antropologia ao abordar que o lugar onde o trabalho artístico é realizado não necessariamente precisa ser um espaço físico. O artigo tem como ponto de partida o pensamento de autores como Miwon Kwon, Nike Kay, Phillipe Dubois e Hal Foster.

Palavras-chave: Arte contemporânea; lugares predeterminados; site-specific; vídeo

Abstract

This article presents a retrospective of the artistic language known as site-specific and discusses issues such as the use of video and the spectator’s presence (or not) in this kind of work; e how the camera can be used as an agent of mediation between the artist and the audience. We analyze some of the works that are considered precursos of this style - which appeared in the mid-1960s - and the idea of how the removal or place changing of a site-specific work can transform it or modify its meaning. The text also proposes an approximation between art and and anthropology when we discuss that place of an artwork does not need necessarily to be a physical space. This article’s starting point is the thinking of authors such as Miwon Kwnon, Nike Kay, Phillipe Dubois and Hal Foster.

Keywords: Contemporary art; predeterminade places; site-specific; video

1. Introdução

O termo site-specific surgiu na passagem da década de 1960 para 1970, a fim de classificar uma nova série de obras artísticas criadas de forma intríseca ao lugar onde se encontravam. Nomes como os estadunidenses Nancy Holt, Robert Smithson e Walter de Maria são comumente ligados às primeiras produções desse gênero. Não somente esses artistas, mas outros, como Dennis Oppenheim, Mary Miss, Michael Heizer e Robert Morris já trabalhavam com a linguagem que ficou conhecida como land art, obras feitas fora do espaço físico dos museus e galerias de arte, e que utilizam o próprio terreno (land) como suporte. “Duplo Negativo”, criado por Heizer entre 1969-70, no deserto de Nevada, nos EUA, e “Spiral Jetty”, de Robert Smithson, realizada em 1970, em Utah, também nos EUA, são duas das obras mais representativas da land art. Trabalhos onde se “usa um trator em vez de um pincel” (Smithson, 1996, p.95). Embora as criações desse estilo fossem, em sua maioria, feitas em grande escala, isso não impedia os artistas de flertarem com o minimalismo. Apesar de O objetivo era se afastar do que o crítico irlandês Brian O’ Doherty chamou de “cubo branco”, um ambiente hermético, sem nenhuma relação com o mundo exterior, onde “o trabalho é isolado de tudo o que prejudicaria sua própria avaliação de si mesmo.” (O’ Doherty, 1986, p.14).

Fonte: www.wikiart.org

Figura 1 Obra “Spiral Jetty”, Robert Smithson, 1970.  

O curador e escritor estadunidense Douglas Crimp diz que os artistas começaram a procurar espaços externos para realizarem suas obras em razão da “pura implausibilidade das obras para lugares fechados, calçadas como se estivessem em um limpo quarto branco” (Crimp, 1986, p.46).

O pesquisador britânico Nick Kaye apresenta uma definição pontual acerca dos trabalhos site-specific. Para ele, tratam-se de “práticas nas quais, de uma maneira ou de outra, se articulam trocas entre o trabalho de arte e os lugares nos quais seus significados são definidos” (Kaye, 2000, p.01). Isso leva à conclusão de que um trabalho site-specific nunca pode ser visto de uma forma isolada de seu contexto, diferentemente de obras que são concebidas para o cubo branco e, independente de parte do mundo estejam, vão sempre estar isoladas do contexto externo à galeria; criações que vão de “um vazio a outro” (Smithson, 1996, p. 41) dentro dos museus.

Mais do que questionar o conceito do cubo branco dos museus e galerias e seu “sistema fechado de valores” (O’ Doherty, 1986, p.14), esses artistas estavam interessados em desmistificar o paradigma modernista da tabula rasa. A autora e curadora sul-coreana Miwon Kwon explica essa ruptura com o modernismo:

“Se a escultura moderna absorveu seu pedestal/base para romper sua conexão com/ou expressar sua indiferença ao site […] trabalhos site-specific, quando emergiram no despertar do minimalismo, no final da década de 1960 e no início da seguinte, forçaram a dramática reversão nesse paradigma modernista.” (Kwon, 2002, p.11).

Assim, a intenção da prática site-specific é que o lugar influencie diretamente o seu resultado. O espaço de arte “estéril e idealista puro dos modernismos dominantes” foi deixado para trás e “não era mais percebido como lacuna, uma tabula rasa, mas como espaço real” (Ibid, 2002, p.11). Ainda sobre esse momento, Crimp afirma que “quando a especificidade do lugar foi introduzida na arte contemporânea pelos artistas minimalistas, em meados dos anos 1960, o que estava em questão era o idealismo da escultura moderna” (CRIMP, 1986:43). Para esses artistas era fundamental que a obra se integrasse fisicamente ao lugar.

2. A influência do lugar sobre obra

Ao começar os estudos sobre arte site-specific pode ocorrer uma confusão com a quantidade de termos correlatos:

“Site-determined, site-oriented, site-referenced, site-conscious, site-responsive, site-related. Esses são alguns dos novos termos que surgiram, nos últimos anos, entre muitos artistas e críticos para dar conta de diversas modificações da arte site-specific atualmente.” (Kwon, 2002, p.01).

Essas variações e muitas outras surgiram por causa da site-specificity, ou seja, das especificidades de cada lugar onde a obra se insere. Site-specificity é o conflito que tenciona a relação entre o artista e o lugar escolhido; Smithson (1996, p.182) considera que o artista não pode ignorar essa relação dialética. Cada lugar apresenta as suas particularidades, seus desafios. Nem sempre o artista irá conseguir desenvolver o trabalho exatamente como planejado, às vezes, terá que fazer adaptações e incorporar aspectos - tanto físicos quanto sociais - do local. Em algumas situações, o próprio lugar ou as pessoas que ali habitam irão indicar ao artista que rumo o projeto deve seguir.

Acerca desses fatores, Kaye (2000, p.02) afirma que a “site-specificity apresenta um desafio às noções de “original” ou localização “fixa”, problematizando a relação entre o trabalho e o lugar”. A maneira como o artista lida com essa relação determina os desdobramentos de sua criação. O autor diz ainda que a especificidade do lugar “deve ser melhor pensada sobre a relação que surge como uma inquietação perturbadora, da oposição entre espaço “ideal” e espaço “real” (Ibid, 2000, p.46).

Nesse sentido, o espaço “ideal” é aquele que o artista imagina previamente e que julga ser o lugar apropriado para a realização do seu trabalho. Já o espaço “real” é o lugar como ele é de fato, com todas as suas imperfeições e imprevistos. A especificidade da obra se dá nessa diferença. Essa relação dialética é como uma aresta com a qual o artista terá que lidar. Por exemplo, um artista que é convidado para desenvolver um trabalho em um lugar onde ele ou ela nunca esteve. Ele mentaliza o lugar e faz planos. Mas, ao chegar lá, percebe que as condições não são exatamente como tinha imaginado e que terá de fazer adaptações. Essas alterações traduzem a especificidade do lugar.

O historiador de arte Grant H. Kester, em seu artigo “Aesthetic Evangelists: Conversion and Empowerment in Contemporany Community Art” (1996), usa o termo community-based art para se referir a trabalhos site-specific que são realizados juntos de uma determinada comunidade. Aqui, “comunidade” pode ser entendida tanto quanto um grupo étnico específico (por exemplo, imigrantes de um país em particular), ou pessoas que vivem em um determinado lugar e possuem uma raiz histórica comum (uma comunidade ribeirinha ou quilombola, por exemplo). Para Kester (1996, p.17), a comunidade da community-based art seriam grupos sociais que têm “falta de identificação com as normas burguesas”.

Já o crítico estadunidense Hal Foster, no artigo “The Artist as Ethnographer?” (1995), usa o termo sited community ao mencionar um grupo social de uma região específica. Nesse caso, a identidade cultural do grupo está intrinsecamente ligada ao lugar onde este vive e habita.

Combinando os conceitos de Kester e Foster, pode-se de dizer que quando um artista trabalha com uma sited community, ele está fazendo arte community-based. Trabalhos dessa natureza estão ainda mais sujeitos à especificidade do lugar, pois, nesse caso, não estão envolvidos apenas aspectos físicos, mas também sociais e antropológicos. Para Kaye:

“A especificidade do lugar […] pode ser entendida […] quando um trabalho site-specific deve articular-se e definir-se através de propriedades, qualidades ou significados produzidos em relações específicas entre um “objeto” ou “evento” e a posição que ele ocupa.” (Kaye, 2000, p.01).

O “objeto” ao qual Kaye se refere pode ser o objeto de arte per se: uma escultura, uma instalação, um grafite etc. Já o “evento” seria o ato da intervenção: uma performance, um happening ou outra linguagem artística que presuponha uma ação por um tempo determinado.

Na arte site-specific a identidade do lugar tem se tornado mais importante do que as próprias escolhas feitas pelo artista. A esse respeito, Kwon afirma: “Preocupadas em integrar a arte mais diretamente no âmbito do social […] as manifestações de site-specificity tendem a tratar as preocupações estéticas e históricas (da arte) como questões secundárias.” (Kwon, 2002. p.171).

Quando se lida com a especificidade do lugar, a linguagem artística escolhida tem um papel coadjuvante. O protagonismo fica com a relação que o artista desenvolve com o lugar e as soluções que encontra para os conflitos entre obra e site. Por mais importantes que sejam, fatores estéticos ficam em segundo plano, o ponto principal são as conexões que o trabalho cria com o lugar onde está inserido e com o público local.

De acordo com a pesquisadora dinamarquesa Tanya Toft (2016, pp.53-54), a arte site-specific está ligada a dois ideais estéticos que caminham lado a lado: o pragmatismo e o esteticismo. O pragmatismo está “preocupado com um propósito na arte e seu potencial de ser útil, por exemplo, como um instrumento de mudança.” (Ibid, 2016, p.53). Esta mudança pode ser de ordem política, social ou com um caráter informativo, no sentido de conscientizar a sociedade de alguma necessidade. Toft (2016, p.54) considera que o ideal estético-pragmático está amarrado ao “paradigma da arte site-specific, a qual, entre os anos 1980 e 1990, foi institucionalizada como prática e usada para reafirmar a valorização cultural de lugares.” O segundo ideal, o esteticismo:

“responde à nossa cultura visual orientada para a expressão e exibição. Essa orientação reflete a condição que está entrelaçada com a nossa especutacularizada e visualmente dominada condição midiática; condição essa na qual nós, há algum tempo, temos experenciado uma estetização no mundo ao nosso redor.” (Toft, 2016, p.54).

Dessa forma, o pragmatismo no site-specific, ou seja, a preocupação com o propósito da arte, é originado em funcão da especificidade do lugar. São as especificidades que direcionam as escolhas do artista. O pragmatismo está mais preocupado com “o quê”. O “como” (esteticismo) é uma questão quase que secundária, o lugar irá decidir “como” o trabalho será feito.

3. Remover a obra é destruir a obra. Ou não?

Em 1981, foi inaugurada a obra “Tilted Arc”, criada por Richard Serra, localizada na Praça Foley Federal Plaza, em Nova York, EUA. O trabalho foi comissionado pela Administração dos Serviços Gerais (GSA, na sigla em inglês). O nome de Serra foi escolhido pela Dotação Nacional para as Artes (NEA, no original). A referida praça faz parte de um complexo de prédios públicos chamado Jacob K. Javits Federal Building. A obra foi patrocinada para fazer parte do programa Arte na Arquitetura, criado pela GSA, visando a criação de trabalhos artísticos para repartições do governo federal.

Após sua inauguração, começaram a suscitar algumas polêmicas: entidades civis e governamentais questionavam a presença da obra - um arco formado por uma chapa metálica com 36,5 metros de comprimento, 3,6 metros de altura e 6,5 centímetros de espessura - no meio da praça. Não havia nada que fixasse a chapa ao chão, ela mesma se sustentava. O fato de o aço não ter recebido nenhum acabamento dava a ele aspecto enferrujado, endossando as críticas contra a obra, já que “no pensamento tecnológico, a ferrugem evoca ao medo do desuso, inatividade, entropia e ruína.” (Smithson, 1996, p.106).

Fonte: www.wikipedia.org

Figura 2 Obra “Tilted Arc”, Richard Serra, 1981 

Em 1984, teve início uma série de debates públicos entre membros da GSA, NEA e sociedade civil a respeito da obra. Até que, em março de 1989, a GSA - proprietária da obra - decidiu removê-la e destruí-la. Nesse período Serra foi consultado a respeito da possibilidade de remover o “Tilted Arc” e transferi-lo para outro lugar. O artista foi enfático ao responder:

"Quero deixar perfeitamente claro que o “Tilted Arc” foi encomendado e projetado para um local particular: a Federal Plaza. Esta é uma obra para um local específico, não podendo, portanto, ser transferida. Remover a obra é destruir a obra." (Serra, 1990, p.143).

Essa afirmação de Serra rapidamente se tornou uma definição para criações site-specific: trabalhos que não podem ser removidos do lugar para onde foram concebidos. Mudar a obra de lugar seria voltar a ver a “arte como uma mercadoria” (Serra, 1990, p.145). Ser contra essa postura mercadológica da arte foi um dos maiores incentivos para os artistas sairem das galerias e começarem a desenvolver projetos orientados para lugares predeterminados. Serra criticou a GSA e os outros orgãos que tentaram “transformar o Tilted Arc num produto de troca, ao anular seu aspecto de obra destinada a um local específico. O “Tilted Arc” se tornaria exatamente o que não era para ser: um produto móvel, comerciável.” (Ibid, 1990, p.145). Como o artista não concordou com a transferência da obra, ela foi destruída com maçaricos.

Dentre as críticas à obra, houve um consenso entre os que foram a favor de sua remoção (ou destruição). Além da “feiura”, argumentava-se que a escultura gerava um acúmulo de lixo ao seu redor. Também foi dito que a sua presença dificultava a vigilância da praça, incentivando “a vadiagem e a possibilidade de ataques terroristas com bombas” (Kwon, 2002, p.78). De qualquer forma, o principal argumento foi que o trabalho atrapalhava o fluxo de pedestres. Porém, o que Serra propôs foi a criação de um contramodelo de site-specific, uma obra cujo objetivo era “questionar em vez de acomodar a arquitetura dada, incomodando as condições espaciais do lugar do trabalho” (Ibid, 2002, p.05). O “Tilted Arc” foi posicionado estrategicamente para perturbar um local reconhecido por ser palco de decisões políticas e jurídicas dos EUA.

Essas afirmações de Richard Serra foram feitas em um artigo intitulado “Tilted Arc Destruído”, publicado originalmente em 1989. Nessa época, o artista tinha quase 20 anos de experiência com a linguagem site-specific e, ao seu modo de ver, obras desse gênero não deveriam considerar apenas o lugar físico onde estavam inseridas, mas também o seu contexto:

“A especificidade de obras orientadas para um local significa que são concebidas, dependentes e inseparáveis de sua localização […] resultam de uma análise dos componentes ambientais próprios de um dado contexto […] leva em consideração as características não apenas formais, mas também sociais e políticas do mesmo […] as obras para local específico engendram primariamente um diálogo com seu entorno.” (Serra, 1990, p.152).

Naturalmente, os artistas perceberam que o site (lugar) “passou da condição física da galeria […] para o sistema de relações socio-econômicas” (Kwon, 2002, p.19). Esse novo lugar é formado pela maneira com que o artista se identifica com algum tema, o que pode-se dar de várias formas:

“políticas de identidade, emergiram como importante “site” de investigação artística […] debates culturais, um conceito teórico, uma questão social, um problema político, uma estrutura institucional […] uma comunidade ou evento sazonal, uma condição histórica, mesmo formações particulares do desejo, são agora considerados sites” (Ibid, 2002, pp.28-29).

O deslocamento do lugar como espaço físico para um espaço imaterial gera o conceito de lugar antropológico na arte, ou antropologia do espaço artístico. De acordo com Marion Segau: “a relação do espaço com os indivíduos, os grupos humanos e suas sociedades revela a imensa diversidade das culturas. Nós as chamamos de antropologia do espaço.” (Segau, 2016, p.19). Se o espaço na arte deixou de ser físico, ele pode ser considerado um lugar antropológico artístico.

A definição de Richard Serra sobre a relação remover/destruir a obra pode ajudar a definir muitos trabalhos orientados para um lugar predefinido, mas não a sua totalidade. Um exemplo de obra que onde o conceito de Serra pode ser aplicado é a estátua “Cristo Redentor”; projetada para ser colocada em um lugar único: o topo do morro do Corcovado, na cidade do Rio de Janeiro. Idealizado pelo engenheiro brasileiro Heitor da Silva Costa em colaboração com os franceses Paul Landowski e Albert Caquot, o monumento foi inaugurado em 1931. A obra fica em um dos pontos mais altos da cidade, de onde é possível ver quase todo o município. Essa escolha não foi feita a esmo, a intenção dos autores era que a figura de Jesus Cristo, símbolo máximo da mitologia cristã, ficasse em um lugar de onde ele pudesse “abençoar” toda a cidade. Considerado pela UNESCO um Patrimônio da Humanidade, o “Cristo Redentor” é uma obra de arte que, se removida, perde todo o seu significado. Seria o mesmo que destruí-la.

Mas nem sempre remover a obra é destruí-la. O monumento “Coluna da Vitória” (Siegessäule, no original em alemão) na cidade de Berlim, Alemanha, é um exemplo disso. Inaugurada em 1873, a obra ficava localizada originalmente na Königplatz (Praça do Rei, atual Praça da República), próxima ao Portão de Brandemburgo, o maior monumento do país. Em 1884, Wilhelm I, então imperador alemão, decretou a construção do Reichstag - edifício que, atualmente, é a sede do governo federal - defronte à “Coluna da Vitória”.

Em 1939, ano em que se iniciou a Segunda Guerra Mundial, o governo nazista colocou em prática o projeto de reconstrução de Berlim para transformá-la na Welthauptstadt Germania (Capital Mundial Germania). Um dos primeiros passos do projeto arquitetônico liderado por Albert Speer, foi a transferência da “Coluna da Vitória” para outro lugar. A nova localização foi chamada de Großer Stern (Grande Estrela), uma intersecção de algumas das principais avenidas da cidade, alinhada com o Portão de Brandemburg. Obviamente, o desfecho da Segunda Guerra Mundial impediu a conclusão da Capital Mundial Germania; qualquer esperança de sua realização caiu por terra quando o Exército Vermelho tomou a cidade, em 1945. Porém, a “Coluna da Vitória” permanece na Grande Estrela até hoje.

Fotografia: Lucas Gervilla

Figura 3 Monumento “Coluna da Vitória” - Berlim, Alemanha, 2013.  

Outra obra que foi concebida para um lugar específico e que depois foi removida é a escultura “Operário e Mulher Kolkosiana” (Рабочий и колхозница/Rabochiy i Kolkhoznitsa, em russo), criada pela artista letã Vera Mukhina, em 1937.

Apresentada publicamente em Paris durante a Exposition Internationale des Arts et Techniques dans la Vie Moderne 1937 (Exposição Internacional de Artes e Tecnologia na Vida Moderna, conhecida popularmente como Exposição Internacional de 1937), a obra celebrava os 20 anos da Revolução Russa. Após a Exposição, o trabalho foi desmontando, levado para Moscou e reinaugurado em 1939.

Fotografia: LucasGervilla

Figura 4 Monumento “Operário e Mulher Kolkosiana” - Moscou, Rússia, 2017.  

Os dois monumentos aqui apresentados - “Coluna da Vitória” e “Operário e Mulher Kolkosiana” - foram removidos, transferidos de lugar, mas não foram destruídos, seja no aspecto literal ou simbólico. Richard Serra aponta uma justificativa para isso:

“As obras para um local específico manifestam invariavelmente um julgamento de valor acerca do contexto social e político mais amplo de que são parte. Baseadas na interdependência da obra e do lugar, elas abordam o conteúdo e o contexto de seu local criticamente.” (Serra, 1990, p.152).

Ambos os trabalhos cumprem todas as “exigências” mencionadas por Serra. As guerras retratadas na “Coluna da Vitória” também são conhecidas como Guerras de Unificação da Alemanha, uma série de conflitos que culminaram com a unidade do território germânico. Isso faz com que o monumento - tanto em sua localização original, quanto na atual - esteja ligado ao contexto social e político do país e de Berlim. Seu significado não está preso ao terreno.

Fotografia: LucasGervilla

Figura 5 Monumento “Coluna da Vitória” - Berlim, Alemanha, 2013.  

A mesma identificação acontece com “Operário e Mulher Kolkosiana”. Mais do que representar a Revolução Russa, a obra retrata o povo trabalhador. Isso fez com que as classes operária e campesina se reconhecessem no trabalho, seja em Paris ou em Moscou. No final da década de 1970, a Administração de Proteção de Monumentos Arquitetônicos de Moscou cogitou vender ou doar a estátua. Essa ideia foi rapidamente descartada devido à insatisfação popular ao saber da notícia, tamanha a relação que o povo tinha com a obra.

Cabe ao artista encontrar diferentes formas para que o seu trabalho crie relações com os respectivos contextos. Podem ser relações mais evidentes como em “Coluna da Vitória” e “Operário e Mulher Kolkosiana”, ou uma contrarelação que tensiona o espaço, como em “Tilted Arc”.

4. Aproximações entre arte e antropologia

Vimos que com o passar dos anos e novas experimentações de linguagem, “o lugar (site) da arte não é apenas um espaço físico, mas constituído por processos sociais, econômicos e políticos” (Kwon, 2002, p.03). Foi natural, então, que os artistas quisessem ocupar esses novos “lugares”, pois “apropriamo-nos do espaço para podermos exercer sobre ele um domínio, um controle, certo poder: é uma apropriação pela afirmação de que o espaço em jogo nos pertence.” (Segaud, 2016, pp.99-100).

Nesse ponto, se inicia uma aproximação entre a arte e antropologia, pois o contexto sócio-econômico-político de um lugar é dado pelas pessoas que ali vivem. Com um melhor entendimento sobre o lugar - e seu contexto - onde a obra será inserida, a apropriação do espaço é, em tese, mais eficaz. Esse é um processo complexo, pois:

“Apropriar-se do espaço é estabelecer uma relação entre esse espaço e o eu (torná-lo próprio) por meio de um conjunto de práticas. Trata-se de atribuir significação a um lugar: isso pode ser feito no nível da semântica, por meio das palavras e pelos objetos e símbolos que lhes são vinculados.” (Segaud, 2016, pp.126-127).

Para que o artista possa fazer a “apropriação” é necessário que ele compreenda os códigos desse local e estabeleça uma comunicação. Nick Kaye diz que deve-se fazer uma leitura prévia do espaço, pois elementos como “discursos políticos, estéticos, geográficos ou institucionais informam tudo o que pode ser dito” (KAYE, 2000, p.01) pelo artista sobre aquele lugar. A leitura espacial levará o artista a uma maior compreensão, pois “o espaço diz algo sobre a sociedade, o grupo ou o indivíduo que o ocupa: indica um estado das relações sociais; “comunica”, desde que conheçamos o código para poder ler o que ele nos diz.” (SEGAUD, 2016, p.106). Sem esse entendimento o artista continuará preso ao isolamento modernista. Trabalhos artísticos também podem ser considerados uma forma de ocupação espacial, onde o artista se apropria do lugar através do seu processo artístico e da sua obra para ali direcionada.

Hal Foster elenca cinco motivos que levam à relação entre arte contemporânea e antropologia. Primeiro, a “antropologia é estimada por ser uma ciência de alteridade”; segundo, ela “é a disciplina que tem a cultura como objeto de estudo”; terceiro, a antropologia é “considerada contextual”, o que é interessante para “aqueles que aspiram ao trabalho de campo no cotidiano”; quarto, ela é “interdisciplinar”, assim como muitas linguagens de arte contemporânea; quinto, a antropologia demanda constantemente uma “autocrítica” (Foster, 1995, p.305). Muitos artistas empregam alguma - ou todas - dessas características em seus trabalhos. Portanto, passa a ser natural o flerte entre a antropologia e suas práticas com obras site-specific. Ao fazer a análise/leitura do lugar e dos que ali vivem, o artista, seja consciente ou inconscientemente, assume a função de antropólogo.

Para Foster, esse acúmulo de funções - artista e antropólogo - nem sempre é benéfico, pois é gerada uma pseudoantropologia, onde o artista se torna um quase-antropólogo. De acordo com o autor, existem três fatores que levam a isso: o primeiro é a suposição que o “lugar de transformação artística” é, na verdade, um “lugar de transformação política”, e “esse lugar é sempre localizado em qualquer outro lugar”; o que se aproxima de um pensamento “opressor pós-colonial”, onde os outros são sempre os explorados por serem de um lugar diferente. O segundo é a presunção de que “os outros sempre estão lá fora”, ideologia típica de uma cultura dominante que reconhece apenas o seu lugar como sendo o originial. O terceiro é a “suposição que se o artista requisitado não for percebido como socialmente e/ou culturalmente outro (diferente), ele ou ela tem acesso limitado à transformação de alteridade”, por outro lado, “se ele ou ela for percebido como outro, terá acesso automático a essa transformação” (Foster, 1995, p.302).

A presunção sobre a qual Foster fala pode ser prejudicial ao artista, quando esse assumi que sabe o que é melhor para o outro, ou, ainda, que o outro é inferior culturalmente, pois não teve acesso à mesma formação educacional. Agindo assim, o artista parece estar hierarquicamente acima, uma relação parecida com a do burguês sobre o proletário. O risco nesse tipo de atitude é que:

“o artista quase-antropólogo de hoje pode procurar trabalhar junto às comunidades de um lugar específico com as melhores intenções de engajamento político e transgressão institucional, apenas em parte para ter esse trabalho recodificado pelos seus patrocinadores o usarem como divulgação de trabalho social, desenvolvimento econômico, relações públicas… ou arte.” (Foster, 1995, p.303).

Porém, isso não transforma o artista em vilão. Kwon explica o aparelhamento ou cooptação da arte:

“apesar das inúmeras dificuldades pragmáticas e burocráticas no comissionamento de novas obras de arte (certamente é mais simples comprar as existentes), o apoio às obras site-specific ligadas à arte pública, favorecendo a criação de respostas estéticas irreptíveis e adaptáveis a locais específicos […] tornaram-se rapidamente institucionalizadas.” (Kwon, 2002, p.66).

Foster segue a mesma linha de raciocínio ao afirmar que um dos perigos ao qual o artista-etnógrafo está sujeito é o do “patrocínio ideológico” (Foster, 199, p.303). Ou seja, quando é necessário se alinhar à diretrizes da instituição que o patrocina. Embora isso, de uma forma ou outra, aconteça desde o surgimento do sistema de mecenato, o autor acredita se tratar de uma situação diferente, pois “essa apropriação da arte se tornou um gênero estético, os novos trabalhos site-specific estão ameaçados de se tornarem uma catégoria museológica” (Ibid, 1995, p.306).

Grent Kester vê com ressalvas o artista que vai a campo trabalhar com pessoas de determinada comunidade. Para o autor, esse tipo de trabalho:

“é tipicamente centrado na troca entre o “artista” (que é entendido como alguém “empoderado” criativamente, intelectualmente, simbólicamente, expressivamente, financeiramente, institucionalmente, entre outros) e um determinado tema que é definido a priori como “em necessidade de” empoderamento, acesso a habilidades criativo-expressivas, etc. Portanto a “comunidade” em “arte de comunidade” é frequentemente, apesar de nem sempre, associada a indivíduos definidos como culturalmente, economicamente, ou socialmente diferentes, tanto do ou da artista, quanto do público de determinado projeto. (Kester, 1995, p.20).

Kester compara essa relação com o processo de evangelismo empregado por instituições cristãs, um “relacionamento entre o reformista e o indivíduo-a-ser-transformado ou “convertido”. Nesse processo o “mau” […] deve ser transformado em “bom”. (Ibid, 1995, p.17).

Essa comparação é pertinente pois, mesmo bem intencionado, o artista pode acabar contribuindo para reforçar o estereótipo do outro como alguém com menos cultura. Tampouco o artista pode achar que irá “dar voz” a alguém. Qual a autoridade do artista para determinar o que alguém pode ou não falar? Como ele acha que irá legitimar (ou amplificiar) o discurso do outro? Acerca dessas questões, Kester menciona a importância de se compreender as “relações de fala “para”, “através”, “com”, “sobre” ou “em nome de”; isso contribui para o “processo de identificação” da comunidade”. O autor também afirma que o artista deve ter uma “ancoragem ideológica” com a comunidade, assim se “estabelece uma equivalência moral” com as pessoas do lugar onde o trabalho será realizado. (Ibid, 1995, p.08). Ele conclui fazendo um alerta para a institucionalização de projetos financiados, os quais:

“em muitos casos, são colocados como um provedor de serviço social. Em algumas situações, os projetos dos artistas são apoiados por organizações ou fundos os quais o interesse primário não é mais a arte e sim programas sociais.” (Ibid, 1995, p.23).

Nessas circunstâncias, o artista deve tomar cuidado para não se tornar um instrumento nas mãos das instituições que usam a arte como fachada para fazerem propaganda própria, ou ainda, outros tipos de interesses particulares.

5. Presença e não presença do espectador

Existem algumas semlhanças entre os trabalhos mencionados até agora com a escultura, principalmente se levarmos em conta a relação do site-specific com o minimalismo (uma vertente predominantemente escultural). A frase analisada de Richard Serra nos leva a entender que uma obra site-specific seria um objeto físico, passível de remoção. Miwon Kwon explica que, no início, esse tipo de trabalho estava “atrelado às leis da física” e “frequentemente lidando com a gravidade” (Kwon, 2002, p.11); essas definições reforçam a materialidade/fisicalidade das primeiras realizações do gênero. Sobre essa fase inicial a autora afirma que:

“O trabalho site-specific em sua primeira formação, então, focava no estabelecimento de uma relação inextricável, indivisível entro o trabalho e sua localização, e demandava a presença física do espectador para completar o trabalho”. (Kwon, 2002, p.167).

Para os artistas desse período não era apenas a relação da obra com o lugar que estava em voga, mas sim uma relação tripartite entre “espectador, obra e o lugar habitado por ambos.” (Crimp, 1995, p.154).

Nas criações para um lugar predeterminado o espectador não tem um papel passivo, o artista espera que este não apenas as observe, mas que as vivencie e seja parte integrante delas.

O público é convidado a uma “experiência corporal vivenciada” (Miwon, 2002, p.12). Isso acontece porque tais obras não são criadas para serem apenas admiradas, mas também ocupadas temporariamente, pressupondo um espectador em movimento. Nick Kaye acredita que nesse momento o espectador se converte em um caminhante que:

“está, assim, sempre no processo de atuar, de realizar as contingências de uma prática espacial particular, que, embora sujeita ao lugar, nunca pode ser totalmente percebida ou resolvida nesta ordem subjacente” (Kaye, 2000, pp.05-06).

Logo, quem completa o processo artístico é o observador, através maneira como ele se relaciona com o lugar. Cada um terá uma percepção diferente, por isso Kaye diz que essa questão não pode ser resolvida.

Se a presença do espectador é necessária para compor a obra, ele deixa de ser uma figura passiva e passa a ter uma função ativa. Kaye, ao invés de usar a palavra “espectador” (spectator), usa o termo “observador” (viewer) e afirma: “o observador não deve apenas delinear as fronteiras ou limites do trabalho, mas separar esse trabalho da sua própria experiência de observar” (Kaye, 2000, p.30). Dessa forma, o observador é o maior responsável pela sua própria experiência diante da obra. O autor enfatiza que no site-specific o observador está “constantemente mudando de posição ao redefinir sua percepção do “espaço real”” (Ibid, 2000, p.29). O público é instigado a participar do trabalho, pois este “desafiou a capacidade do observador de resolver e estabilizar identidades e, assim, de mapear de forma eficaz as coordenadas de um trabalho” (Ibid, 2000,p.106).

O artista e pesquisador brasileiro Milton Sogabe propõe o termo “observador-receptor” para nomear a audiência de obras de arte. Segundo ele:

“O diálogo corporal do observador com a obra sempre existe em qualquer tipo de obra, na medida em que o próprio tamanho e a estrutura da obra provocam a aproximação, o afastamento, o andar de um lado ao outro ou o movimentar da cabeça do observador. Esses movimentos corporais do público vão tornando-se gradativamente mais solicitados, visíveis e intencionais nos projetos dos artistas.” (Sogabe, 2007, p.1585).

Para o autor, antes do modernismo o observador tem um papel diferente, o qual:

“em geral é sempre de um corpo fixo, quase imóvel, cujos movimentos restringem-se basicamente ao olhar, que percorre a imagem de acordo com os centros de atenção e composição dos elementos visuais existentes.” (Ibid, 2007, p.1585).

Sogabe afirma que os happenings definiram um novo tipo de participação do observador que “perde a sua característica de público como elemento passivo” (Ibid, 2007, p.1586) e passa a ser inserido na obra como um participante. Essa prática, aliada ao conceito de obra aberta, “vai permitir ao observador a interpretação e a participação específica, tornando a barreira entre obra e público mais porosa” (Ibid, 2007, p.1586). O limite praticamente se dissolve nas instalações artísticas, onde “a obra passa a ser o ambiente todo, e o corpo do observador é integrado de vez na obra.” (Ibid, 2007, p.1586).

Artistas brasileiros como Lygia Clark e Hélio Oiticica, proporcionaram um maior protagonismo ao público de seus trabalhos. Clark, em muitas de suas obras, recorria a “três elementos da comunicação artística: o artista, a obra e o espectador”. (Carvalho, 2011, p.131). Entre 1959 e 1961, a artista criou uma série de trabalhos intitulada “Bichos”, formada por estruturas geométricas feitas de metal, presas por dobradiças que proporcionam alterar o formato e a posição das obras. Dessa forma:

“o Bicho não é estático, não se realiza na permanência mas no ato do espectador. Lygia com seus Bichos conclama a participação do espectador […] os Bichos, construídos diretamente no espaço real não possuem lugar fixo […] A cada toque do espectador novas formas se configuram no espaço.” (Carvalho, 2011, p. 133).

O mesmo desejo de uma maior participação do público também está presente no trabalho em Hélio Oiticica, que queria “lutar contra a atitude meramente contemplativa por parte do expectador, ao propor relações sensoriais e corpóreas.” (Teixeira, 2017, p.51). Uma comprovação desse desejo é a sua série de trabalhos intitulada “Parangolés”, criadas na década de 1960. Obras que:

“consistem basicamente em capas de tecidos coloridos para vestir, dançar, “incorporar” […] e pressupõem uma manifestação cultural coletiva […] o espectador é convidado a vesti-las e a dançar, determinando uma transformação expressivo-corporal […] o espectador (agora considerado um participador) vivência a transmutação espacial, percebendo-se como “núcleo” estrutural da obra.” (Teixeira, 2017, pp. 51-52).

Ambos os artistas são falecidos (Oiticia em 1980, Clark em 1988), e os direitos autorais de suas obras passaram a ser de suas respectivas famílias, que agem como os “donos dos mortos”, impedindo a interação do público com as obras. Os “Parangolés” foram destruídos durante um incêndio na casa do irmão de Oiticia, em 2009. Os “Bichos” de Lygia Clark só podem ser vistos em museus, como o Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires-MALBA; onde, obviamente, não podem ser tocados pelos visitantes, traindo a premissa da artista.

6. O uso do vídeo em trabalhos site-specific

O surgimento de dispositivos portáteis de produção de vídeo coincide com o início dos trabalhos site-specific: os anos 1960. O autor brasileiro Arlindo Machado lembra que:

“Foi preciso esperar até o surgimento […] do Portapack (1965) e do videocassete (1970) para que as possibilidades da televisão enquanto sistema expressivo viessem a ser exploradas por uma geração de artistas e videomakers disposta a transformar a imagem eletrônica num fato da cultura do nosso tempo.” (Machado, 1990, p.09).

Assim que esse tipo de equipamento tornou-se disponível, houve uma aproximação entre a arte e o vídeo, segundo Machado:

“se pudéssemos resumir numa frase a tendência geral [...] da chamada vídeo-arte […] diríamos que se trata, antes de mais nada, de distorcer e desintegrar a velha imagem do sistema figurativo, como, aliás, já vinha acontecendo desde muito antes no terreno das artes plásticas.” (Ibid, 1990, p.117).

O filósofo francês Philippe Dubois (2004, p.206) diz que, o surgimento do vídeo em fita magnética, causou uma ruptura com o antigo sistema de imagens em movimento pois, “antes de 1959-1960, a imagem como tal só podia ser cinematográfica. O restante não passava de fumaça. Vídeo volátil, televisão: máquina de esquecimento.”

Como vimos, os trabalhos site-specific surgiram para contrapor a estética modernista e o conceito de tabula rasa. Embora a aproximação entre arte e vídeo tenha início no mesmo período, a temática dos primeiros artistas da videoarte estava mais próxima do modernismo do que da arte direcionada para um lugar determinado. Segundo Dubois (2004, p.166) podem ser considerados “modernistas” os vídeos feitos por artistas como Peter Campus, Lynda Benglis, Bruce Nauman, Bill Viola e Nam June Paik. Para o autor:

“O desafio do vídeo modernista seria o mesmo: se autoconstruir, se definir em si e por si mesmo. É o grande período dos discursos e dos debates sobre a “especificidade” do vídeo. O vídeo modersnista dos anos 70 é um vídeo obcedado por sua própria identidade, e que faz desta busca de si mesmo o objeto de seu trabalho.” (Dubois, 2004, p.167).

Ao se observar os trabalhos de artistas como Bill Viola e Nam June Paik, dois dos maiores expoentes da videoarte, é possível notar que raramente suas realizações possuem alguma relação com o lugar onde foram criadas ou são exibidas. Em obras como “Nascimento Invertido” e “Mártires”, ambas de 2014, Viola cria ambientes herméticos e atemporais, dos quais “uma vez fora, a arte pode cair em um status secular” (O’Doherty, 1986, p.14). Em “Magnet TV” (1965), “Buddha TV” (1974) e “Three Eggs” (1975), alguma das mais célebres criações de Paik, é possível notar o mesmo conceito de exibição pensada para um local “sem sombras, branco, limpo, artificial […] (onde) não existe tempo” (Ibid, 1986, p.14).

Por outro lado, é importante lembrar que a saída do vídeo do espaço expositivo estava relacionada à questão tecnológica. Durante as décadas de 1960 e 1970, ainda não havia projetores portáteis de vídeo, e as câmeras apresentavam limitações, principalmente em ambientes pouco controlados. Nesse período, o vídeo “tratava-se então de uma arte quase virgem, em que tudo estava por inventar, e que era absolutamente minoritária, e, portanto radical.” (Dubois, 2004, p.170).

Essas questões tecnológicas aliadas ao pensamento modernista fizeram o vídeo ser colocado em xeque logo após o seu surgimento pois:

“De tanto mergulhar em si mesmo, o vídeo acaba se perdendo, tragado por sua própria multiplicidade autorreferencial. Todos os grandes vídeos modernistas mostram esta autoconsumação da imagem eletrônica […] O vídeo modernista é a um só tempo a busca da identidade e sua dissolução em si e por si mesma: ele só existe neste movimento rumo a si mesmo que o arrasta até sua própria perda.” (Dubois, 2004, p.167).

Foi necessária mais de uma década para que o vídeo pudesse ganhar a liberdade de exibição e produção fora do cubo branco (ou preto, já que muitas galerias de criam ambientes totalmente escuros para a exibição de vídeos). O polonês Krzysztof Wodiczko foi um dos pioneiros em projeções de vídeo realizadas em lugares específicos: em 1984, em Nova York (EUA) e em 1985, em Londres (Inglaterra). Nessas ocasiões, Wodiczko criou projeções com temáticas políticas sobre as faces de estátuas históricas de cada uma das cidades, questionando o quão “heroicas” eram as pessoas retratadas nesses monumentos.

A pesquisadora e curadora brasileira Christine Mello lembra que, no caso de videoinstalações, “o visitante é parte do processo gerador da obra, podendo, muitas vezes, deslocar o seu corpo no espaço e ficar o tempo que julgar suficiente para que os seus estímulos sensórios mantenham diálogo com o trabalho.” (Mello, 2008, p.171).

Portanto, não é mais dada ao observador uma interpretação prévia do trabalho; esta é agora construída pelo próprio observador-receptor, pois ele “é deixado para negociar essa área em relação a sua própria presença e definicão de um campo perceptivo e, portanto, entre suas superfícies e o espaço que ela ocupa” (Kaye, 2000, p.108). A obra só passa a existir com a presença do observador e com a sua reação a ela.

No Brasil, trabalhos de vídeo com características site-specific começaram a surgir no festival Arte/Cidade, “um projeto de intervenções urbanas. Realizado em São Paulo [...] a partir de 1994, e que teve como ponto de partida a metrópole contemporânea.” (Brissac, 2013, p.14). Participam do projeto artistas e arquitetos que discutem práticas não convencionais de ocupação da grande cidade.

Suas três primeiras edições foram emblemáticas: a primeira, com o tema “Cidade sem janelas” (1994), ocupou o Matadouro Municipal da Vila Maria, onde, posteriormente foi instalada a Cinemateca Brasileira. A segunda, “A cidade e seus fluxos” (1994), foi realizada no topo de três edifícios na região central de São Paulo. Já a terceira, “A cidade e suas histórias” (1997), aconteceu paralelamente na Estação da Luz e ao longo de um trecho ferroviário na região, o qual o público percorria dentro dos trens. Nessas três ocasiões, os artistas participantes incorporaram especificidades dos lugares aos seus trabalhos e “no geral, as intervenções tenderam a levar mais em consideração o sítio, a inserção arquitetônica, a escala urbana, a complexidade das situações e os componentes sociais e políticos” (Ibid, 2013, p.15)

No Arte/Cidade o lugar não é apenas tabula rasa, ele dispara e incita novas situações de trabalho. Entre os artistas que participaram das primeiras edições estavam Arthur Omar, Eder Santos e Lucas Bambozzi.

Esses artistas brasileiros são conhecidos pelos seus trabalhos de videoarte realizados nas últimas décadas. Porém, no caso deles, o suporte vídeo deve ser visto em um contexto mais amplo, pois eles colocam em prática a ideia de que: “o vídeo sempre se caracterizou por sua natureza híbrida, entre a pintura, a escultura, o cinema, a televisão, o computador, a arquitetura, a performance, entre outras linguagens” (Mello, 2008, p.28).

A evolução tecnológica gera equipamentos cada vez mais portáteis, o que facilita o desenvolvimento de trabalhos como esses e expande ainda mais as possibilidades do vídeo ser usado na arte endereçada para um lugar específico.

7. Conclusão

Os trabalhos aqui brevemente descritos mostram como artistas, ao realizarem uma obra para lugares e contextos específicos, devem estar atentos à questões que vão além do apelo estético. São obras abertas, constantemente sujeitas a adaptações e alterações suscitadas pela especificidade de cada lugar. Também foi discutido que se as obras convidam ao público a participar ou a interagir com elas, não existe mais o espectador, mas sim uma figura ativa que aciona diferentes significados para o trabalho.

6. Referências

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2. Crimp Douglas. (1995). Redefining Site Specificity in On the Museum's Ruins. Massachusetts: The MIT Press. [ Links ]

3. Dubois Philippe. (2004). Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify. [ Links ]

4. Foster Hal. (1995) The Artist as Ethnographer?. Los Angeles: University of California Press. [ Links ]

5. Teixeira Gatinho Amanda. (2017), Um olhar sobre a poética dos Parangolés de Hélio Oiticia in Arteriais - Revista do PPGARTES. Belém-PA, vol.3 n.4, 51-59, jul. [ Links ]

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7. Kaye Nick (2000). Site-specific Art - Performance, Place and Documentation. Londres: Routledge. [ Links ]

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12. O'Doherty Brian. (1986). Inside the White Cube - The Ideology of the Gallery Space. São Francisco: The Lapis Press. [ Links ]

13. Smithson Robert. (1996). Robert Smithson: the collected writings. Editado por FLAM, Jack. University of California Press: Los Angeles. [ Links ]

Recebido: 07 de Outubro de 2019; Aceito: 31 de Março de 2020

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