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Revista Internacional em Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 2182-4452versão On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.38  Lisboa dez. 2020  Epub 21-Mar-2021

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2020.38/pp.173-182 

Artigo Original

A pintura e o cinema enquanto linguagens de um mesmo ecossistema estético: Uma análise de “Rythmus21” de Hans Richter e as suas relações com o dadaísmo de Hans Arp

Leonardo Charréu1 

Ana Charréu2 

1 Departamento de Formação e Investigação em Artes e Design da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa, Portugal;

2 Licenciada em Som e Imagem na Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha, do Instituto Politécnico de Leiria, Portugal.


Resumo

Este texto procura pensar a relação entre uma das primeiras películas da obra cinematográfica experimental e pioneira do realizador Hans Richter e o principal movimento vanguardista da época que ficou conhecido como Dadaísmo e que marcou intensamente o panorama das artes visuais na Europa, no período compreendido entre as duas grandes guerras mundiais. O cinema experimental de Richter é então contrastado com a pintura de Harp e ambas as linguagens naquilo que têm de singular, são analisadas dentro de uma perspetiva que definimos (baseados em Medeiros e Pimentel, 2013) como ecossistema estético.

Palavras-chave: cinema; Hans Richter; pintura; dadaísmo; ecossistema estético

Abstract

This text seeks to think about the relationship between one of the first films of the experimental and pioneering cinematographic work of the director Hans Richter and the main avant-garde movement of the time that became known as Dadaism that shaped the visual arts panorama in Europe in the period between two major world wars. Richter's experimental cinema is then contrasted with Harp's painting and both languages in what is unique are analysed within a perspective that we define (based on Medeiros and Pimentel, 2013) as an aesthetic ecosystem.

Keywords: cinema; Hans Richter; painting; dadaism; aesthetic ecosystem

1. Introdução

Pouco mais de duas década e meia após o seu surgimento (1896) já essa instigante nova linguagem artística, a do cinema, bastante popularizada, começava a ser explorada nas suas conexões com a pintura de vanguarda dessa época. Cedo os artistas-cineastas se aperceberam que o cinema tinha imenso potencial para explorar outras vias, que não a de uma mera arte capturada pela narrativa dramática de histórias e por enredos que se esforçavam por tornar-se compreensíveis para pessoas comuns. Não era por acaso que este cinema das primeiras décadas, mudo por força das circunstâncias tecnológicas, era acompanhado por frames rápidos de texto, onde se narrava o que ia acontecendo (tendo muitos cinemas um pianista para ir tocando enquanto as imagens se iam desenrolando). A bidimensionalidade comum do suporte entre o cinema e a pintura, assim como a utilização de procedimentos compositivos comuns, só poderiam vir a colocar, bem cedo, estas duas linguagens em conexão. Hans Richter destaca-se, precisamente, por ser pioneiro na exploração destas “outras” possibilidades estéticas do cinema que marcarão praticamente toda a primeira metade do século XX.

2. Hans Richter “o pintor cineasta”. Síntese biográfica.

Hans Richter (1888-1976) nasceu na Alemanha e tal como muitos artistas alemães e europeus que emigraram para os Estados Unidos, naturalizou-se norte-americano, mas só em em 1971, já próximo do final da sua vida. Na verdade, Richter optou por uma via que foi seguida por muitos outros artistas europeus, em especial os de origem judia, que procuravam fugir à intolerância e ao totalitarismo nazi. Desse modo, artistas plásticos como Max Ernst, arquitetos como Mies Van der Rohe, filósofos(as) e intelectuais como Susan Sontag e cientistas de diversificados âmbitos disciplinares, emigrados em autoexílio, ou por força das circunstâncias, irão influenciar a ciência e a cultura norte-americana de tal forma que a partir da segunda metade do século XX, os estados Unidos da América jamais perderão a liderança em praticamente todos esses domínios.

Hans Richter começou artisticamente como pintor e contactou de perto com o importante movimento expressionista alemão com o qual chegou a expor. No entanto, os princípios estéticos do expressionismo, onde pontificam a expressão pura das emoções e o recurso a materiais expressivos variados, parecem não satisfazer o artista, que a dada altura da sua vida artística se vai mover em direção à pintura abstrata e ao estudo de dimensões mais intrínsecas dessa dimensão não-figurativa da realidade, como a decomposição do movimento, por exemplo (Michaud e Benson, 2013).

Em 1916, em Zurique, na Suiça, conhece e deixa-se atrair pelas provocadoras ideias do movimento Dada, conhecendo também outras correntes da vanguarda artística de então, como o Suprematismo e o Neoplasticismo. Só depois dos trinta anos, a partir de 1921, em plena maturidade intelectual, e depois de todos os ricos contactos mantidos com a inteligentsia cultural da sua época, Richter evoluirá para a realização de filmes experimentais que marcarão a história do cinema, em particular o dos anos vinte.

O artista ficará então mais conhecido como cineasta do que como pintor e será o cinema, e não a pintura, a arte que vai ensinar nos Estados Unidos quando para aí emigra, em 1941, perseguido e ameaçado, como vimos atrás, pelo regime Nazi do seu país Natal.

Richter é muito justamente considerado como um pintor cineasta (Genton, 2010) dado que não renega a importância da pintura e das outras artes visuais, em geral, na sua obra cinematográfica. Disso é exemplo a presença de artistas nos seus trabalhos, como é exemplo o famoso Rêves à vendre de 1947 (Trad. do francês: Sonhos à venda) considerado um marco do movimento fílmico surrealista, em que surge um conjunto significativo de artistas colaboradores, tais como Max Ernst, Marcel Duchamp, Man Ray, Alexander Calder e Fernand Léger que dirigem as cinco primeiras sequências do filme (Michaud e Benson, 2013, p. 4).

Simbolicamente, será a obra do escultor norte-americano Alexander Calder, o criador dos famosos “mobiles” (esculturas suspensas) que constituirá o conteúdo principal do seu ultimo filme de 1963: From the Circus to the Moon, with Alexander Calder.

3. Análise fílmica de “Rythmus21”

Na entrevista de Cecile Starr (1972) a Richter, o artista revelou possuía um domínio seguro do desenho e até chegou a fazer disso um modo de vida na sua juventude, desenhando retratos dos seus professores (Starr, 1972: 0´34´´- 0´51´´). No entanto, cedo se apercebeu da importância de outras dimensões não figurativas das artes visuais, que ultrapassavam a mera representação de temas concretos, passando a interessar-se mais pela articulação das formas na tela, aproximando-se, por isso, dos conteúdos mais emblemáticos da arte abstrata. Richter (Starr, 1972: 1´12´´- 1´40´´) tentava agora articular “musicalmente” formas geométricas que lhe permitiam organizar a tela sem qualquer referência à representação figurativa.

É baseado nesses princípios que também fazem parte dos movimentos de vanguarda contemporâneos desta época (Neoplasticismo e Suprematismo), bem conhecidos por Richter, que ele vai realizar, em 1921, o seu primeiro filme que também é um dos primeiros filmes abstratos, intitulado "Rhythmus 21". Não descreve por isso o real que conhecemos, pelo que será também umas das propostas pioneiras do acinema na medida em que vai contrariar a ideia corrente comummente aceite, a do cinema popular de entretenimento de distribuição global. O acinema, passe a “quase” redundância, refere-se a um cinema que desafia as convenções e a definição estabelecida do cinema e para muitos críticos, como Jean-François Lyotard, que terá cunhado o termo, é o único tipo de cinema que pode ser considerado uma arte (Déotte, 2010).

Trata-se então um filme sem trilha sonora (ainda que a versão existente no youtube seja musicada posteriormente, em 2005), de pouco mais de três minutos de duração, a preto e branco (visionar em Referências e Filmografias) realizado com meios muito rudimentares, como afirma o cineasta na sua entrevista a Cecile Starr, utilizada como fonte videográfica documental importante deste trabalho.

O artista utiliza formas quadrangulares e retangulares simples, em movimentos, que ora se aproximam, ora se afastam, por vezes sobrepõem-se, sob um fundo que ora é negro total, ora é branco. Outras vezes, entram visualmente por um dos lados desse rectângulo que nos serve de campo de visão. Parece consubstanciar aquilo que Richter fala na entrevista: uma busca por uma articulação abstrata de elementos visuais no campo visual rectangular da tela de projeção. O artista continuará estas experiências, criando uma série que denominará de Rhythmus 23 (1923) e Rhythmus 25 (1925).

4. Conexões com outras artes/movimentos estéticos de vanguarda (Dadaísmo, Suprematismo, Neoplasticismo)

Como assinalam determinados estudiosos da obra de Richter, (Michaud & Benson, 2013) o artista conhece, em 1918, Tristan Tzara, um dos principais teóricos do movimento Dada, que o apresenta ao sueco Viking Eggeling. Juntos acreditam que será possível (utopicamente) criar uma espécie de linguagem universal das artes, chegando mesmo a redigir um manifesto onde apresentam esses princípios segundo os quais:

(...) as formas abstratas oferecem a possibilidade de uma língua superior, mais aperfeiçoada que as línguas nacionais. Essa linguagem espiritual tinha a ambição de transmitir tanto as emoções mais simples, como as mais complexas, e incorporar ideias por meio de formas abstratas. Isso permite que a arte recupere sua função social, expressando o puro significado de emoções e ideias (Michaud & Benson, 2013, p.5).

Estas ideias são, de algum modo, complementadas por Marcel Duchamp, nome cimeiro do movimento Dada, quando afirma (Graff, 1956, 28´11´´- 28´39´), em entrevista, que acredita que “a arte é a única atividade na qual o homem, enquanto homem, se mostra a si próprio como verdadeiro indivíduo, capaz de fazer coisas para além do seu estado animal, porque a arte é uma saída para regiões que não são regidas pelo tempo e pelo espaço”. Logo não necessita de imitar a natureza, como parece ter sido, ao longo dos séculos, um dos seus objetivos.

O processo criativo seguido por Richter não está muito afastado do seguido por artistas dadaístas como Hans Arp na sua colagem de 1937 (Elger e Grosenick, 2005, p. 31). Nas colagens de Arp “é frequente uma estrutura aleatória” e Richter sobre a obra de Arp escreve (citado por Elger e Grosenick, 2005, p. 31) que o “acaso deveria ser reconhecido como verdadeiro centro do Dadaísmo”.

Parece evidente as profundas semelhanças entre os elementos visuais abstratos de algumas frames do filme de Richter em análise e as colagens de Arp. Parece provar-se que estes artistas, não se copiando diretamente, desenvolviam e partilhavam uma linguagem plástica com elementos visuais comuns.

O Dadaísmo é aliás bem provocador ao romper com os cânones clássicos que amarravam as artes visuais à representação fiel da realidade percecionada.

O Dadaísmo não era exclusivamente um movimento artístico, literário musical, político ou filosófico. Na realidade era todos eles, e ao mesmo tempo oposto: antiartístico, provocativamente literário, divertidamente musical, radicalmente político, mas antiparlamentar, e por vezes simplesmente infantil. Muitos dos dadaístas orientavam os seus duplos talentos adequadamente” (Elger & Grosenick, 2005, p.6).

Em boa verdade, Hans Richter pode muito bem ser considerado um bom exemplo desta duplicidade de papéis (teóricos, pintores, cineastas...) numa só pessoa. O século XX vai ser pródigo neste aspeto. Artistas como Paul Klee e Wassily Kandinsky poderiam pontificar como os melhores exemplos dos artistas intelectuais que aliaram uma sólida intervenção plástica com uma escrita teórica igualmente competente e profunda.

(digitalizado de Elger & Grosenick, 2005, p.31).

Figura 1 Hans Arp, Colagem (48,6 x 34,6 cm). Nova Iorque, Museu de Arte Moderna  

5. A pintura no cinema, uma mirada a partir da cultura visual e integrada num ecossistema estético contemporâneo

Para muitos teóricos da Cultura Visual, esta não pode ser vista como mais uma disciplina, logo não pode igualmente ser abordada como os mesmos modos e procedimentos das que conhecemos nos currículos académicos tradicionais. Para muitos (Mirzoeff, 1998; Dikovitskaya, 2005; Hernández, 2007) a Cultura Visual é indubitavelmente um lugar epistemológico profundamente poroso, uma área de vibrantes confluências transdisciplinares onde convergem disciplinas tão variadas como os Estudos Culturais, os Estudos Feministas, os Estudos de Género, os Estudos de Fotografia, os Estudos Fílmicos, a Crítica de Arte, A Teoria da Arte, a Antropologia e a Sociologia Visual, a Pedagogia Cultural e a Pedagogia Crítica, entre muitas outras.

Alguma confusão existe quando a comparam com a História da Arte. Na verdade, para alguns autores, a Cultura Visual não é mais do que um modismo intelectual contemporâneo onde apenas se renova o extenso campo de estudos da História da Arte. No entanto, a Cultura Visual ainda que não se oponha totalmente à História da Arte, na sua conceção clássica, procura expandir os seus objetos de estudo, saindo frequentemente da “grande arte” para o mundo das imagens que veiculam as chamadas micronarrativas do quotidiano, que mais não são do que aquilo que deriva ou afeta a vida das pessoas comuns. É verdade que essa vida quotidiana tem sido também ela própria abordada pela chamada grande arte, em particular no período a que se convencionou chamar de moderno. Estamos a referir-nos, por exemplo, às pinturas de representações e iconografias sociais visíveis já precocemente em Diego Velasquez, no século XVII (com a emblemática pintura “velha fritando ovos”) e dois séculos depois, em Gustave Courbet (com “Os britadores de pedra” e “O funeral em Ornans”) e em Edgar Degas (com a extensa série de pastéis secos “Le Tub”) e em muitos outros artistas que povoam os manuais de História da Arte e que facilmente se podem encontrar nas bases de imagens da internet.

Então, as imagens da arte “dos museus”, da chamada alta cultura, vivem hoje em dupla conexão com as suas reproduções que circulam no espaço mediático (em particular, no espaço cibernético) e com outras imagens com as quais dialogam e buscam nexos de proximidade, de parentesco, de oposição, ou qualquer outro tipo de relação (Ver os magníficos exemplos videográficos de Efendi 2016a, 2016b e 2017), num mundo que se complexificou de tal forma que se torna hoje muito difícil realizar estudos académicos no extenso campo das artes visuais e da visualidade sob um enfoque disciplinar único.

Surge aqui o conceito de ecossistema estético cuja definição apresentada por Afonso Medeiros e Lucia Gouvêa Pimentel organizadores da introdução do livro de Atas do congresso da ANAP de 2013, realizado em Belém do Pará, no Brasil, nos parece suficientemente sugestiva:

Considerando-se o estatuto da arte e da imagem na atualidade, a ambiência parece ser a da diversidade, seja de processos, de técnicas ou de conceitos. Alguns autores, como Gilles Deleuze, Félix Guattari (1992) e Josep Domènech (2011), sugerem a percepção das artes e das imagens numa relação de interdependência e intervenção entre estas e os demais universos da cultura humana e, por isso, não deixam de recorrer às ideias de ecologia e/ou meio ambiente que, consequentemente, podem ser estendidas às concepções de prevaricação, contaminação, adaptabilidade, sobrevivência, parasitismo, sustentabilidade, afinidade, canibalismo, relação, mestiçagem, sincretismo, barganha, enfrentamento, permeabilidade, remanejamento e reprodutibilidade, dentre outras (Medeiros e Pimentel, 2013, p.9).

É, portanto, num contexto de profunda interdependência entre as imagens e os restantes componentes que compõem a cultura, onde se insere o cinema, essa arte que se recria constantemente, nascida praticamente com o novo “já velho” século XX que deixamos lá para trás, há já quase duas décadas. Estes contextos imagéticos omnipresentes na nossa vida diária, comportam-se assim como os ecossistemas biológicos, onde tudo está “em relação” a algo e, de certo modo, em contínuo processo de desenvolvimento.

Ecossistemas são produtos de uma longa, lenta, laboriosa e delicada maturação que nunca está finalizada. Ecossistemas estéticos podem ser pensados como processos; dinâmicas; mobilidades; equilíbrios precários; organicidades tênues; inteligências em constante estado de adaptabilidade; conluios do aleatório com o intencional; demo/grafias artístico-estéticas; ecoestéticas (Medeiros e Pimentel, 2013, p.11).

O cinema e uma panóplia incrivelmente extensa de imagens, veiculadas esteticamente, entendidas dentro desta ideia homóloga de ecossistema, estão em constante estado de adaptabilidade, onde tempo, espaço e imagem, se articulam e, por vezes, se desarticulam em função de novos referenciais teóricos que, muitas vezes, recuperam imagens do passado para (apropriadas, alteradas, reformuladas hibridizadas...), nos facilitarem a compreensão das linhas de força que atravessam o tempo que nos tocou viver. O pós-modernismo, por exemplo, mais não faz do que voltar-se para o presente e, em especial, para o passado (revivido no presente), para efetuar essas reconstruções e reconfigurações de algo que o modernismo não foi capaz de resolver.

Como acontece em muitos ecossistemas biológicos, há linguagens visuais que se aproximam de forma simbiótica. E tal como a simbiose na biologia, ambas se beneficiam mutuamente. Como bem afirma Jacques Aumont, as conexões entre cinema e pintura são mais que evidentes:

Toda a organização de formas dentro de uma superfície plana, delimitada, procede da arte pictórica. O cinema é uma arte plástica que privilegia o espaço tridimensional, que também manifesta interesse expressivo por seu significante bidimensional. Portanto o cinema depende das soluções pictóricas, não em virtude de um decreto sobrenatural, mas porque a história quis que, nos quatro ou cinco séculos que precederam a fotografia, a pintura explorasse todas as modalidades da expressão plana quadrada, mesmo as mais “fotográficas” (Aumont, 2004, p.59).

No entanto, pensado como “linguagem” é apenas uma das seis formas de classificação dos modos como o cinema se pode manifestar (Aumont e Marie, 2008). A saber, as restantes cinco são: o cinema como reprodução, ou substituo do olhar; o cinema como arte; o cinema como escrita; o cinema como modo de pensamento e o cinema como modo de afeções e simbolização do desejo.

A pintura e a vida dos artistas, como tema fílmico, não pode deixar de nos parecer uma espécie de palimpsesto. Nesse raspar (sobre a História da Arte...) para se escrever de novo, o cinema não imita (nem poderá jamais fazê-lo), antes recria. Achamos que é um especial veículo de pedagogia cultural, ainda que, certamente, tenda para (por vezes exageradamente) heroicizar artistas e correntes artísticas, acaba no fundo por ser a única forma de acesso a esse conhecimento para um público que não frequentou Faculdades de Belas Artes, ou não possui em casa nenhuma coleção de biografias de artistas ou nenhum manual de História da Arte. Para pessoas que não estão habituadas a frequentar museus, galerias ou centros de arte o cinema ensina sobre arte.

No entanto só a partir de meados dos anos noventa as relações entre cinema e a pintura têm vindo a ser abordadas de um modo mais sistemático sob o ponto de vista estritamente teórico (Païni; De Fleury e Morice, 1995). Com a viragem do século desdobram-se os estudos sobre as artes visuais e o cinema (Michaud, Bajac e Migayrou, 2006; Aumont, 2007; Vancheri, 2007; Thivat, 2010 e 2011). A estes estudos têm-se juntado muitos outros (Zinman, 2014) que analisam as inovações e questões de pendor mais técnico.

5. Conclusões

O presente trabalho e a pesquisa a que nos obrigou, fez-nos descobrir fontes impressas e, sobretudo, não impressas (filmográficas) que foram fundamentais para disparar a escrita deste texto. A imagem e, sobretudo, a voz dos artistas (Richter e Duchamp) já desaparecidos, veiculam as ideias estéticas que nortearam os seus trabalhos, tão desconcertantes quanto revolucionários. Eles marcaram decisivamente uma boa parte da produção artística do século XX, influenciando, posteriormente, outras gerações de artistas. Perante as fontes videográficas encontradas na pesquisa, afigura-se-nos emocionante ver e ouvir as imagens e as vozes dos próprios artistas que, na maioria das vezes, só conhecemos pelas suas obras escritas, por obras que outros escreveram sobre eles ou, na melhor das hipóteses, por escassas entrevistas e fotografias biográficas.

Sublinhamos um aspeto que nos pareceu relevante: a interação entre artistas (Tzara, Arp, Richter, Elgging...) que potenciou a discussão teórica produzida nestas décadas, já longínquas, do século passado e que fundamenta, de uma forma que nos pareceu consistente, as opções estéticas seguidas por estes artistas.

Por fim, um outro aspeto que nos merece destaque, para além do pioneirismo do filme de Richter, em análise, é o “trânsito” de muitos destes artistas entre linguagens e tecnologias artísticas (pintura, cinema, teoria...), apontando o caminho para muitos dos artistas que hoje em dia trabalham também saltando de uma linguagem para outra, ao sabor dos projetos, tendo consciência que a produção artística na contemporaneidade tende, em absoluto, para a polivalência de competências e para um domínio cada vez mais amplo das técnicas e das linguagens artísticas.

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Recebido: 10 de Março de 2020; Aceito: 03 de Maio de 2020

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