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Revista Internacional em Língua Portuguesa

versión impresa ISSN 2182-4452versión On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.40  Lisboa dic. 2021  Epub 25-Feb-2022

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2021.40/pp.17-33 

Artigo Original

Poscolonialidade e lugares linguísticos (des)conexos no ensino em contexto rural angolano: (in)visibilidades em Tela

Ezequiel Pedro José Bernardo1 

1 Instituto Superior de Ciências da Educação de Cabinda (ISCED), Angola.


Resumo

A colonização em Angola serviu, entre outras finalidades, para a “cafricação” das línguas nacionais e hegemonização da língua portuguesa. Nesse prisma, a poscolonialidade devia promover um ambiente escolar democrático, sendo esta a via para o alcance da equidade num país de diversidade linguística e cultural que tinha sido forçado a adoptar paradigmas homogéneos, desconexos e de invisibilidades. O artigo procura reflectir sobre os lugares linguísticos e cultural no ensino em áreas designadas rurais, de modos a perceber as questões de invisibilidades dos alunos num contexto pós-colonial através da revisão bibliográfica associada à entrevista de dois professores de formas a compreender como se dá o ensino naquelas localidades. Pauta-se por “desocidentalização” através do estatuto das línguas nacionais, redefinição das políticas linguístico-educativas, uma vez que a língua e a cultura constituem elementos indissociáveis que espelham a cosmovisão de suas sociedades.

Palavras-chave: Poscolonialidade; Angola; Línguas; Desconexibilidade; Ensino

Abstract

Colonization in Angola served, among other purposes, for the “cafrication” of national languages and hegemonization of the Portuguese language. In that light, postcoloniality should promote a democratic school environment, this being the way to achieve equity in a country of linguistic and cultural diversity that had been forced to adopt homogeneous, disconnected and invisible paradigms. The article seeks to reflect on the linguistic and cultural places in teaching in designated rural areas, in order to understand the issues of students' invisibilities in a post-colonial context through the bibliographic review associated with the interview of two teachers in order to understand how the teaching in those locations. It is guided by “de-Westernization” through the statute of national languages, redefinition of linguistic-educational policies, since language and culture are inseparable elements that mirror the worldview of their societies.

Keywords: Postcoloniality; Angola; Languages; Disconnectivity; Teaching

Palavras iniciais

O alcance da independência de Angola em 1975 visiva a libertação do país de todos os vestígios da colonialidade, dos lugares desconexos e invisíveis para recuperar os danos de violências provocados por um sistema opressor. Compreendia- se, pois, que a independência de Angola viria a agregar elementos fundamentais de (re)construção da mentalidade para a reconquista dos valores linguísticos, culturais, ideológicos e identitário que havia sido arrancado do povo. Essa imagem concebida sobre o que viria a ser o país na poscolonialidade foi uma utopia, pois a escola continua a ser um lugar de exclusão, de distorção de valores, subordinadas as políticas linguísticas e educativa à língua oficial, a língua que não representa todos os angolanos.

Os países africanos cuja colonização foi portuguesa têm o português como língua oficial, apesar de estes terem diversas línguas nacionais. Essa realidade para o contexto angolano diz respeito ao projeto de construção do Estado-Nação assente em perspectivas político-económico, pois “os signos de identificação são muitas vezes mais locais do que nacionais” (Vieira, 2004, p. 160).

A característica do país tem suscitado inúmeras discussões em torno da diversidade linguístico-educativa. Das reflexões mantidas, tenho cogitado sobre a necessidade de um ensino mais inclusivo e agregador, associado à definição de políticas educativas e linguísticas que respondam às necessidades das comunidades.

A definição da língua portuguesa como a língua de ensino pela Constituição da República de Angola (CRA) (2010) ilustra a subalternização das cerca de 22 línguas nacionais, hierarquização linguística que torna os indivíduos cativos do eurocentrismo instalado, lugar em que o aluno vive um deslocamento de mundividências no sistema de aprendizado, os saberes locais/regionais abafados para adopção de um aprendizado desconexo que torna o indivíduo cada vez mais invisível. Mazula (1995 apudVieira, 2004) considera que alguns países de África teoricamente independentes infelizmente tentaram uniformizar a sociedade sob a capa de promoção da unidade nacional por intermédio da língua portuguesa.

Esse cenário que se pode apreciar nas escolas localizadas em zonas rurais angolanas reforça a ideia de que “a escola tornou-se uma agência ideológica do Estado com o fim de cumprir os objetivos do Partido-Estado” (Vieira, 2004. p. 172). É deveras desagradável e frustrante um aluno acorrer à escola e não poder compreender o que o professor tem ensinado. A presença do aluno em escola no contexto “rural” exige que se tenha em atenção a língua que ele melhor domina para que haja interacção no processo de ensino-aprendizagem, bem como a necessidade de definição de políticas linguísticas e educativas conexas, visíveis e praticáveis.

Do aludido leva-nos a refletir sobre a poscolonialidade e os lugares linguísticos no ensino em contexto rural angolano de formas a perceber as questões de (in)visibilidades em torno do recurso às línguas utilizadas no ensino, bem como perceber relatos da Constituição da República de Angola (2010) e da lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino 32/2020. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica associada às entrevistas realizadas a dois professores das áreas designadas rurais díspares.

Poscolonialidade em Angola: sobre as políticas linguísticas-educativas

Com a proclamação da Independência de Angola … os objectivos imediatos do novo regime consistiram na “destruição” dos marcos do regime colonial e na construção imediata de um novo país, social, política e economicamente diferente de forma a servir os milhares de angolanos que tinham sido excluídos discriminados e explorados pelo regime colonial (VIEIRA, 2004, p. 91).

A poscolonialidade vista na perspetiva das políticas linguístico-educativas pouco tem explorado o que limita a abrangência de que se necessita para o ensino equitativo em Angola. Colonialidade pode remeter a forma de domínio económico, político, social e ideológico que um país exerce sobre o outro. Também pode ser visto sob um olhar de sujeição que é imposta a uma nação. Pode-se depreender que a questão da poscolonialidade voltada à política linguística e educativa monolingue acolhida em Angola cria uma barreira linguística, psicossocial, cognitiva ao sistema de ensino-aprendizagem dos indivíduos que têm as línguas nacionais às de melhor domínio. O direcionamento do ensino numa perspetiva eurocêntrica leva muitos alunos a abandonar a escola, a ter baixo aproveitamento e a enfrentar situações de incompreensão dos conteúdos leccionados (Bernardo, 2018; Paxe, 2017; Augusto, 2013).

A quase nulidade de discussões voltadas à língua de ensino num contexto de diversidade linguística, isto é, no campo das políticas linguísticas em Angola, reduz cada vez mais o seu lugar nos espaços públicos e reforça a ideia de que “a escola em África continuou, na maior parte dos casos, um legado do sistema colonial, o que explica a sua natureza elitista e o fato de servir melhor os requisitos do modo de vida metropolitano do que o das nações africanas” (Zau, 2013, p. 106). O começo de uma discussão em volta das línguas nacionais em Angola passaria pela definição do estatuto das línguas nacionais, pois ajudaria a compreender os limites e as abrangências de utilização dessas línguas. Nessa perspetiva, as desigualdades sociais-linguísticas são descritas pela política linguística definida pela Constituição da República de Angola (2010), no artigo 19.º, 21.º e 23.º, cujos incisos voltam-se a questões das línguas (grifos nossos):

Artigo 19º (Língua)

1 - A língua oficial da República de Angola é o português.

Artigo 21º Reservado as tarefas fundamentais do Estado:

h) - promover a igualdade de direitos e de oportunidades entre os angolanos, sem preconceitos de origem, raça, filhação partidária, sexo, cor, idade, e quaisquer outra forma de discriminação;

n) - proteger, valorizar e dignificar as línguas angolanas de origem africana, como património cultural, e promover o seu desenvolvimento, como línguas de identidade nacional e de comunicação. Artigo 23º (Princípio de igualdade)

1 - Todos são iguais perante a Constituição e a lei.

2 - Ninguém pode ser prejudicado, privilegiado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de sua ascendência, sexo, raça, etnia, cor, deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas, ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social ou profissão (Grifo nosso).

O espaço reservado a língua portuguesa anula as ideologias linguísticas equitativas que circunscrevem as práticas sociais de seus grupos. A cosmovisão é um elemento a ter em atenção para a construção de um homem que reverbera o seu contexto. Porém, não é aceitável que na poscolonialidade ainda continuem a homogeneizar o país em favor da língua portuguesa. Por outro lado, não é concebível que, no século XXI, Angola ainda preserve uma cultura escolar que espelha uma realidade que não representa todos e nem se oferece a moldar, a conciliação entre o modelo adoptado e o local. Essas ações têm sido alvos de inúmeros questionamentos, uma vez que não facilitam o ensino-aprendizagem dos que têm as línguas nacionais como meio principal de comunicação.

Os países multilíngues e multiculturais são obrigados a adoptar um modelo que promova a equidade no ensino-aprendizagem. Abaixo destaca-se o artigo 16.º, incisos 1 e 2 da lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino 32/2020 que reforça o que a Constituição da República de Angola (2010) sustenta:

1 - O ensino deve ser ministrado em português.

2 - O Estado promove e assegura as condições humanas, científico-técnicas, materiais e financeiras para a expansão e generalização da utilização no ensino, das demais línguas de Angola, bem como de linguagem gestual para os indivíduos com deficiências auditiva.

Trata-se de um ato de formas e significado monolíngue, monocultual que o Estado adopta e que não concorda com a realidade linguística, situação que deteriora a socio-história e a sociolinguística. Nesse sentido, as políticas linguísticas e educativas tendem a legitimar uma visão de mundo alheio à realidade. Essas políticas linguísticas e educativas produzem a violência psicológica, social e simbólica ao dissimular e transfigurar os indivíduos em assujeitados. “A escola inibe a maioria dos alunos de expor suas ideias e argumentá-las, por isso sentem-se desmotivados e desinteressados na aquisição do saber escolar, sendo um dos motivos para o seu fracasso” (Reis e Marcondes, 2008, p. 3).

As políticas educativas em contexto de diversidade linguística, como é o caso de Angola, devem cultivar a democracia linguística e consequentemente incluir os excluídos de sua própria terra. Isso só será possível se se adoptar um modelo de ensino que não torna reféns e assujeitados os falantes das línguas nacionais. A falta de reconhecimento das línguas nacionais sustentada implicitamente pela Constituição da República de Angola (2010), pela lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino 32/2020 pode contribuir para o elevado número de crianças a abandonarem a escola, alto índice de reprovações; a proliferação de materiais didáticos que não reconhece a diversidade linguística, cenário que impede a construção de uma nação qualificada e contextual. É deste modo que Bolzan (2011, p. 86) sustenta que “ … a escola é o espaço favorável para suscitar uma ampla e instigante reflexão sobre as questões culturais e os desafios em desconstruir as práticas estereotipadas e discriminatórias. Daí a necessidade primeira da escola discutir e entender melhor o conceito de cultura”.

Discorrido sobre a poscolinialidade em Angola atendo-nos às políticas linguísticas e educativas, onde desenvolvemos alguns apontamentos sobre a conexão das duas áreas e as suas implicações para um ensino equitativo, o tema que se segue está voltado à questão da cultura escolar e da socialização do aluno sob formas de compreender a existência ou não de desconexões de lugares.

A cultura escolar e a socialização do aluno: lugares (des)conexos?

Várias são as implicações que a cultura escolar1 provoca na vida do aluno em contexto rural. A concepção da mundividência imposta pela escola tradicional não responde a necessidade, trata-se de mundos díspares onde a concepção de língua não é a adequada. Para a realidade multilíngue, a língua é resultado das práticas sociais dos grupos o que exigiria do Estado políticas linguístico-educativas que tivessem em atenção o uso da língua do aluno e a sua respetiva cultura. É nessa perspetiva que a “educação tem que se inserir em uma realidade onde não seja exceção ou paliativa, mas a modalidade mesma da transmissão da cultura” (Fernández, 2014, p. 82).

Na realidade multilíngue, que nutre o continente africano e de forma particular Angola, a língua oficial adotada não descreve o cenário sociolinguístico do país, por a língua de ensino ser desconhecida pela maioria da população residente em áreas designadas rurais. Por exemplo, no convívio familiar, nas brincadeiras com os amigos essas crianças falam frequentemente a língua nacional, mas no ambiente escolar são forçados a enfrentarem um processo de desconexão e de invisibilidade devido a ideologia, a língua e a cultura reinante na escola (Bernardo, 2018). Essa ação perpetrada pela escola através da lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino 32/2020 define a língua de ensino o português, o que torna o aluno despatriado da sua própria pátria, pois trata-se de língua, cultura e ideologia estranha ao seu convívio.

Houve uma vez que um dos meus meninos na sala esteve com dor de cabeça então ele chamou-me e disse: - Professora, “ntukwe unkoya”. Ele não fez gesto, apenas disse “ntukwe unkoya”. Eu fiquei parada, não conseguia perceber, na verdade o que ele quis dizer. Eu só entendi a palavra “ntu” que eu sei ser cabeça mas “koya” eu não fazia a mínima ideia o que é que ele quis dizer porque nós do Malembo dizemos “muntu ntanta”. Então eu fiquei! Depois perguntei para os outros, há um menino lá que veio da cidade e que já vive lá nos padres entende. Foi ele quem traduziu-me, professora, ele disse que a cabeça ta la doer. Então há expressões que eles usam que eu as vezes fico parada porque não consigo entender, eles é que traduzem para mim, não, ele quis dizer isso e eu vou aprendendo (MANGOVO, 2020, grifo nosso).

É necessário que o Estado defina políticas linguístico-educativas em função das regiões e sob atenção da diversidade linguística do país. Urge a inserção da língua de domínio do aluno no sistema de ensino-aprendizagem de formas a reduzir as assimetrias, a inferioridade causada pela língua hegemónica que motiva os distúrbios psicológicos, cognitivos que afetam o rendimento escolar. Neste caso, a escola como lugar de socialização do indivíduo deve primar pela redução das inúmeras dificuldades relativas a percepção de mundo, de cultura, de escrita, de leitura, de compreensão que estes alunos têm vindo a enfrentar. Além de a escola se preocupar com as condições mínimas para a efetivação do processo de ensino que vai desde as infra-estruturas, as carteiras, o quadro, o giz, até o apagador. Para Bolzan (2011, p. 88) “a exclusão social vem ocorrendo dentro e em torno do espaço escolar, produzindo-se e reproduzindo-se nas relações e contribuindo para que a escola seja um lugar de fracasso, desânimo e expressão de exclusão para importantes grupos étnico-cultural”.

Entretanto, a escola tem sido vista como a promotora de exclusão dos vários grupos sociais cuja língua que os representa é a nacional, o que distancia os valores sociológicos, culturais com a finalidade de desagregação da sociedade angolana, dos indivíduos que não têm o português como a língua de comunicação. Nessa perspectiva, a escolar promove uma barreia e se torna o principal aparelho ideológico do Estado por esta veicular princípios que caracterizam o partido no poder (Vieira, 2007).

Para que tenhamos um país livre de violência cultural, linguística de equidade torna-se necessário (re)pensar a função e os objetivos da escola para um contexto multilíngue. Essa ação passaria por (i) aceitar a realidade sociolinguística de Angola; (ii) definir objetivos para o ensino em contextos bi-multilíngue; (iii) ensinar na língua do aluno de forma a reduzir as assimetrias e familiarizá-lo; e (iv) elaboração de um plano curricular que inclua as culturas das comunidades. Contudo, a socialização do aluno só será possível se se tiver em atenção o papel fundamental que desempenha a língua no processo de ensino e na construção da personalidade do indivíduo. Para melhor elucidar a pesquisa apresentamos, no ponto que se segue, os aspetos metodológicos para a realização das entrevistas e da descrição dos sujeitos.

Percurso da pesquisa, procedimentos adoptados e sujeitos

O modelo de ensino monolíngue em contexto de diversidade linguística tem motivado reflexões que a problematizam devido a língua nacional ser o veículo de comunicação dos alunos de comunidades designadas rurais. O artigo resulta do projecto “Monolinguismo ou Multilinguismo Encoberto em Angola” que venho realizando. Depois de pesquisas efectuadas na província de Malanje que resultou no estudo de mestrado, o cenário linguístico-ideológico do país levou-me a realizar cartografias de pesquisas em escolas de algumas áreas designadas rurais da província de Cabinda para melhor propor um ensino equitativo e contextual a nível nacional. Pela robustez dos resultados obtidos da pesquisa levou-nos a recorta-los e apresentar em artigos.

Para tentar compreender as (in)visibilidades no processo de ensino-aprendizagem e o paradigma defendido pela escola resolvemos efetuar uma pesquisa qualitativa assente à duas entrevistas, a primeira foi direcionada a professora Inês Mangovo, da escola da Missão Católica de Lukula-Nzenze, Comuna de Tando- -Nzinze à leste de Cabinda e dista a 75 km da Capital da província, a segunda foi feita ao professor Sedeur Paulino, da escola primária de Bonde Grande, situada a 45 km à nordeste do município de Cabinda. Para o efeito, elaboramos um roteiro com 5 questões que nos permitiu perceber a (in)visibilidade da língua nacional e como eles lidam com essa situação em ambiente de sala de aula.

Os professores são estudantes do 4,º ano do Instituto Superior de Ciências da Educação da Universidade 11 de Novembro, instituição vocacionada a formar professores e estando a trabalhar em áreas designadas rurais, mostraram-se disponíveis e interessados a participar da pesquisa.

As perguntas da entrevista foram reajustadas em função da necessidade que houve em esclarecer a situação, o que a torna semiestruturada. A entrevista feita a professora teve uma duração de 10 minutos. A professora parecia estar agitada no momento em que respondia as questões o que julgo influenciar nas respostas muito sintéticas. Já a do professor teve mais a vontade, descontraidamente foi respondendo as questões e fazendo fluir o seu discurso, tendo por isso levado uma duração de 30 minutos. As entrevistas foram efetuadas em momentos diferentes: a professora concedeu a entrevista na instituição em que estuda, Instituto Superior de Ciências da Educação-ISCED-Cabinda, no Departamento de Ensino e Investigação em Língua Portuguesa, no final do mês de Março de 2020. Enquanto o professor, a entrevista foi ao telefone devido a pandemia da covid-19 e ao Decreto de Estado de Emergência que suspendeu o exercício de qualquer atividade. Tendo a necessidade dos dados para compilar o artigo, fomos por esta via.

Na secção subsequente, tratamos aspectos relacionados à língua de casa e à língua da escola de formas a percebermos como se dá esse fenómeno no interior da sala de aula. A referida secção terá como suporte duas entrevistas realizadas em professores de escolas localizadas em áreas designadas rurais. A análise dos excertos das entrevistas são a base empírica, de forma a inferir sobre a experiência de ser professor numa localidade em que a língua de ensino não é a mesma que a do aluno.

Entre a língua de casa e a língua da escola: relatos de experiências de dois professores no ensino em contexto rural

A função da educação pode ser alienante ou libertadora, dependendo de como for usada, quer dizer, a educação como tal não é culpada de uma coisa ou outra, mas a forma como se instrumente esta educação pode ter um efeito alienante ou libertador (Fernández, 2014, p. 82).

Apesar da relevância que se atribua a lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino 32/2020, que define a língua de ensino, não é justificável o fato de que o contexto angolano, de diversidade linguística, adote um modelo de ensino-aprendizagem monolíngue que reforça a invisibilidade e a violência. Bernardo (2018), Bourdieu, Passeron (2014) demonstram que as instituições de ensino vivem inculcando culturas que, muitas vezes, não se adequam ao contexto em que se inserem. O monopólio linguístico-cultural adotado pelas instituições de ensino, embora nas vestes de neutralidade, promovem a violência simbólica e reproduzem a injustiça social ao impor um modelo de ensino que perturba a construção cognitiva. A homogeneização linguística com a sustentação de “modernidade” oculta o sentido de língua como prática social e de cultura. Essa ação de transformação da realidade linguística do aluno pode reprimir e interferir no desenvolvimento psicológico, cognitivo, pois a língua falada no seio familiar é a nacional e no ambiente escolar é o português. Paulino (2020) questionado sobre sua experiência de professor em contexto rural destaca:

é um ambiente diferente visto que a nossa língua oficial é português e a língua que temos de ensinar é português mas tem sido um pouco diferente porque o nosso ensino lá podia ser feito na língua local porque o então Secretário da Educação Padre Congo, acontece que não tenho muito domínio nessa língua local. Quando estão com professores e pessoas que não são daquela localidade falam português com um pouquinho de ibinda mas quando estão com os seus familiares falam somente o ibinda, vivem com os mais velhos, pais e avós e essas pessoas não falam o português. Então, durante as aulas vou falando português normalmente e se por ventura haver qualquer situação que o aluno não compreenda eu peço mesmo ajuda a um outro professor residente que nos ajuda algumas vezes traduzir alguma coisa para a língua local, uma transferência da língua portuguesa para o ibinda, sempre que os alunos não puderem compreender qualquer coisa … (Paulino, 2020, grifo nosso).

Esse fragmento da entrevista mostra a necessidade de interação entre a língua de casa e a língua da escola num cenário de heterogeneidade linguística, impondo- se, dessa forma, um novo paradigma no ensino em Angola, pois, a adoção da língua portuguesa como a língua de ensino não representa todos os angolanos e impõe a cultura, ideologia eurocêntrica. É nessa linha de pensamento que Vieira (2004, p. 171) sustenta que “a educação não é só um instrumento de emancipação do sujeito, ela pode ser também um veículo de inculcação de valores ideológicos e culturais das classes dominantes sobre as dominadas”.

O relato de experiência do professor Paulino cogita uma questão que se prende a participação da família na formação dos seus filhos, pois julgamos que devia ser uma relação saudável entres os interventores, família-escola. Se a política educativa é de esforços duplos entre a escola-família, como os pais, falantes da língua nacional, podem participar na formação dos seus filhos com o uso de uma língua alheia?

Timbane; Ferreira, no seu artigo “A família, a escola e o aluno: quem ensina o que e para quê?” destacam que

A família é uma escola e a escola é família. Tanto em um como em outro ocorre aprendizagem e essa aprendizagem ocorre de diversas formas. Enquanto na família atuam os pais, os irmãos, avós e outros membros, na escola atuam o professor, a coordenação, os diretores e outras forças ativas da sociedade. Tanto a família quanto a escola se empenham na transmissão do conhecimento, na transmissão de valores e atitudes que visam formar um cidadão pleno que assuma as responsabilidades de dar continuidade a normalidade da espécie humana. Em outras palavras, a família e a escola são instituições de ensino. Sendo assim, a harmonia dos dois traria mais vantagens para o aprendente (Timbane; Ferreira, 2019, p. 211).

É nessa perspectiva que a construção do monolinguismo no ensino impede a participação dos pais no processo de formação do seu filho o que invalida a ideia de que a família é fundamental para a construção do indivíduo ao tornarem disfuncional e banal a responsabilidade de os pais participarem da formação de seus educandos (Imbamba, 2010). O Estado deve perceber que, no processo de aprendizagem, intervêm pais, irmãos, tios, avós e até amigos mais próximos. Se se ti ver em atenção que a língua falada pelos encarregados de educação/pais e demais interventores no processo não é a língua de ensino os coparticipantes do processo de ensino vêem-se frustrados, tornam-se impotentes por falta de domínio da língua de ensino que não os representa. Porém, as duas realidades promovem um conflito de interesses em que muitas vezes os pais não se revejam forçando-os a retirar os seus filhos da escola para a vida prática da lavra/roça, da caça, da pesca.

Embora seja responsabilidade do Estado proporcionar o ensino-aprendizagem, julgamos que a família tem um papel fundamental nesse processo, uma vez que é a partir do seio familiar que o indivíduo começa a ser ensinado. A escola ainda não tem exercido o seu verdadeiro papel, pois, a “instituição ainda não goza da reputação do prestígio que lhe cabem no seio da sociedade; continua marginalizante e longe de responder às exigências da sua verdadeira natureza” (Imbamba, 2010, p. 148)

Para melhor compreender o que destacamos, observemos os excertos da entrevista, quando questionados sobre a sua (re)adaptação em ensinar no contexto em que os alunos falam mais a língua nacional:

A única novidade seria mesmo a língua por causa do contexto mas desde o ano passado eu comecei a aprender a mesma língua. Já consigo até falar alguma coisa, já consigo traduzir, graças a Deus. Os meus alunos por vezes ficam a sorrir de mim mas tem sido muito bom, eles se riem mais depois corrigem o professor e como estou sempre com eles lá e eles ficam comigo tem me ajudado bastante e estou a gostar … Por exemplo, na matemática em geral os alunos têm sempre problemas em matemática, mesmo até que são alunos que estão mais acomodados em português, não têm diferença de língua com o professor sempre revelam alguma dificuldade na matemática. Não tem sido necessário recorrer aos professores que aqui residem para esclarecer qualquer tema, essa ajuda do professor esclarecer qualquer tema tem sido mais nas aulas de português devido ao ensino do vocabulário, devido a leitura, devido a pronúncia das palavras, eles têm uma base na pronúncia do fyote e tentam também transportar essa mesma pronúncia ou até mesmo a organização sintáctica da frase, né, faço aqui o pleonasmo tentam também transportar para o português, a forma como eles organizam as frases, eles pensam na língua nacional/local e faz uma, como os brasileiros dizem uma tradução ao pé da letra e cai sempre mal na língua portuguesa. (PAULINO, 2020, grifo nosso).

Nós ensinamos em português, só que eles é que estão mais acostumados com o fyote (MANGOVO, 2020).

Paulino (2020) declara, de forma implícita, um ambiente de ensino que nem sempre se encaixa no contexto, o que leva a afirmar existir um clima de tensão a dado momento e de negociação em outro. O clima de tensão é visível quando o aluno, através das exigências impostas pela escola, por exemplo, em momento de construção sintáctica o aluno vê-se forçado a realizar uma transferência da construção sintáctica da língua nacional ao português, por outro lado, apresenta um discurso híbrido em que a língua nacional e o português vão se adentrando uma na outra, além destes terem uma pronúncia da língua nacional em vez da língua de ensino.

Outro aspecto não menos importante prende-se com o ensino da matemática em que, segundo o relato de Paulino (2020), os alunos têm encontrado inúmeras dificuldades. A nosso ver, essas dificuldades não se restringem somente no âmbito pedagógico mas também existem por questões linguísticas, culturais e de ideologia que divergem daqueles impostos pela escola do contexto urbano. Porém, não se concebe a homogeneização do ensino para os dois contextos. Por exemplo, na língua nacional o vinte e dois é descrito duas vezes dez mais dois o que, a nosso ver tem uma concepção própria que não se encaixa no português. Acredita-se que “as escolas rurais devem merecer um tratamento específico e diferenciado partindo de uma organização e estrutura que vá de encontro as necessidades de cada contexto”2 (Olivares, 2015, p. 668, tradução nossa). Entretanto, fica evidente a urgência de reconhecer a diversidade linguística e a heterogeneidade como marcas específicas que exigem termos em atenção os contextos de ensino-aprendizagem.

A Association for the Development of Educacion in África - ADEA, na conferência africana sobre a integração das línguas e culturas africanas no ensino, realizada em 2005, em Windhoek, destacou existir maior rendimento escolar nos alunos de escolas bilíngues, cujo desempenho na matemática, nas ciências e nas línguas são notáveis comparativamente com alunos monolíngues. Acrescentou ainda no mesmo evento o Ministro da Educação Namibiana que o uso das línguas locais no sistema educativo reforça a relevância, a eficiência e qualidade de educação em África.

O fato de o professor necessitar nas aulas, principalmente de língua portuguesa, de outro professor que o auxilie, cogita o seguinte questionamento: Se por algum motivo o professor que auxilia a aula do professor Paulino não aparece, como se desenrolará a mesma na sua ausência? As instituições de formação de professores formam os professores para atuar em que contexto? Verifica-se um défice de o professor ser formado por uma instituição vocacionada ao ensino mas não ter no seu plano curricular a disciplina de língua nacional e cultura, permitindo que o futuro professor tenha bagagem para poder responder a necessidade que se impõe no ensino em contexto rural. O professor, nessas circunstâncias, precisa de ser cauteloso de formas a não ferir a auto-estima do aluno ao ponto de influenciá-lo a desistência. Por outro lado, vertificamos um clima de negociação pelo fato de o professor, mesmo sabendo que a língua nacional não é a língua de ensino, procurar formas de aprender, de modos a facilitar a aprendizagem dos alunos, principalmente nas aulas de língua portuguesa.

É interessante observar as oscilações que levaram a professora Mangovo a dada altura assumir que o ensino é feito em português, mas na questão subsequente mostrar que na prática o ensino monolíngue em contexto designado rural promove um apagamento do aluno. Podemos depreender dessas oscilações, em torno da língua usada no processo de ensino-aprendizagem, que é motivada por ser uma atitude não oficial e que de certa forma poderia colocar em risco a sua atuação, visto que “a escola dita qual linguagem o aluno deve usar quando fala com o professor. Tudo isso e muito mais a escola sempre impôs sem negociação nem com os pais e responsáveis dos alunos” (Timbane; Ferreira, 2019, p. 206).

A aula tem sido em fyote na sua maior parte e em português em simultâneo. Na verdade usa-se mais o fyote mas também não podemos os acostumar a usar somente o fyote temos de puxa-los também para o português, então usa-se as duas línguas. Há expressões que eu uso em português eles não entendem nenhum bocado e ficam simplesmente a olhar para mim, então tenho de explicar em fyote para os fazer perceber o que os quis dizer (MANGOVO, 2020).

Relativamente a questão relacionada com a definição da língua portuguesa como a língua de ensino, somos de opinião que ela aliena e instrumentaliza o indivíduo tornando-o oprimido. A língua de casa vai sofrendo uma pressão implícita quando no contato com professores e pessoas desconhecidas o aluno é forçada a falar em português. A escola carece de ensino mais contextual, onde a língua e a cultura do aluno sejam integradas de formas a devolver a responsabilidade da família fazer parte da formação do seu filho. A forma contundente de imposição implícita da língua portuguesa legitimada pela cultura escolar, a lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino 32/2020 que alega a inserção da língua nacional estar dependente de um diploma legal mostra a redução a que foi submetida a língua nacional. Por outro lado, podemos depreender que os professores enfrentam uma situação de vulnerabilidade que os obriga a estabelecerem negociação linguística para tornar o processo de ensino-aprendizagem eficaz. Nessa vertente, a escola, através do sistema de ensino, deve inculcar conhecimentos que reforcem a aprendizagem obtida no ceio familiar, porém urge a escola estar numa relação saudável no campo linguístico, cultural e ideológico.

É preciso ter coragem de introduzir um novo tipo de escolaridade, mais, mais exigente, mais sólida, mais profundo, mais crítico, mais humano, que não se contenta de conferir aos jovens uma bagagem de informações mais ou menos úteis, mas procura fazer-lhes compreender e assimilar ideias, as ideias verdadeiras sobre o homem, sobre o mundo, sobre a sociedade” (IMBAMBA, 2010, p. 149).

A escola não reconhece e não valida a língua e a cultura dos atores envolvidos no processo de ensino-aprendizagem (alunos, família e comunidade), define o que e em que deve ou não ser ensinado, o que é importante ou válido para ser ensinado, inibindo o desenvolvimento psicológico, cognitivo do aluno. Levanta-se, pois, a questão de o plano curricular não admitir ajustamentos tendo em conta o contexto, o que impede a construção de uma sociedade democrática e justa.

… as aulas já estão programadas, o Estado já tem um determinado programa e o professor deve cumprir esse programa, não pode criar um outro programa. É uma obrigatoriedade cumprir com o programa porque o Estado é autoridade máxima e ele nos deu os programas nós, os professores devemos cumprir taxativamente como está no programa. (PAULINO, 2020). Tenho seguido apenas o que o plano curricular orienta. Não tenho perguntado aos outros colegas se têm adoptado outros mecanismos. A questão cultural que temos seguido, o facto de ser uma escola católica, escola missionária, temos tido há momentos de aula, uma disciplina se posso assim dizer ligada a religião (MANGOVO, 2020, grifo nosso).

Os pronunciamentos feitos até aqui mostram claramente que é do conhecimento dos professores que alguma coisa não vai bem em relação a definição de políticas linguístico-educativa em Angola, o espaço escolar não reflete a realidade linguístico-cultural do aluno o que obriga os professores a extrapolarem com o recomendado por lei e tentarem desenvolver um ensino equitativo, mas é ainda visível o quão reféns eles se encontram num fazer que passa a cultura alienante e, no fim, sendo culpabilizado pelo baixo aproveitamento e desempenho dos alunos.

Entretanto, quanto à presença da língua e cultura no sistema de ensino-aprendizagem, a conferência da União Africana, na decisão sobre a relação entre cultura e a educação, DEC 96 (VI), nos pontos 3 e 4, destaca que os valores e património culturais constituem a base da educação a todos os níveis e que reconhece a importância das línguas africanas como meio de instrução e veículo de cultura na realização do renascimento africano.

O lúdico pode estimular o aluno ao remetê-lo a sua cosmovisão pois é desse meio em que o aluno se descobre e encontra a sua criatividade, dando a possibilidade de construção de um raciocínio analítico-crítico. Porém o lúdico-musical pode contribuir na melhoria do ensino-aprendizagem agregando valores linguísticos, culturais e ideológicos de sua comunidade. Partindo do pressuposto, procuramos compreender se a língua do aluno (de casa) tem sido contemplada no ambiente escolar no momento lúdico-musical.

Desde a minha formação como professor de ensino primário lá na escola de formação de professores nós tínhamos essa disciplina como metodologia de ensino, a educação musical e desde lá nós aprendemos apenas músicas em português, em língua oficial, não me lembro ter aprendido alguma música em língua nacional. … Temos tido algumas dificuldades no ponto de vista da pronunciação das palavras e também apresentam alguma dificuldade quanto ao compasso, tem vezes que cantam um pouquinho descompassadamente, a vezes que não conseguem seguir o compasso. O professor se ficar em frente a dar um compasso ternário ou quarternário eles não conseguem seguir o professor porque não entendem como funciona esse compasso. O professor tem de mostrar a criança que a música também faz parte da nossa cultura. E gostei até da questão, é mesmo uma questão muito importante, temos que introduzir música na nossa língua também para que de uma maneira ou outra possamos mais uma vez levantar a nossa cultura que parece estar assim um pouquinho no passado mas não temos músicas em línguas nacionais, eu particularmente não me lembro de ter ensinado. … algumas vezes pedimos ao aluno que cante qualquer música e eles trazem as músicas dos grupos corais, essas músicas dos grupos corais são mais em ibinda ou kikongo, eles trazem essas músicas, mas qualquer música social com um caris em ibinda é mesmo difícil … (Paulino, 2020, grifo nosso) Eh… a maior parte das canções são mesmo em português. Em fyote muito pouco as canções, das canções que conheço é mais ligada a igreja então acho que cantarolar para as crianças na escola tem de ser aquelas de animação e tudo mais fora das … Foi diferente eles terem aprendido uma canção na língua fyote e não em português. Foi diferente porque teve uma canção que eu ensinei a eles em português que, penso eu que levou um mês para eles dominarem mas a canção que eles, a canção em fyote só foi apenas num único dia e pám. (Mangovo, 2020, grifo nosso)

O relato dos professores mostra, claramente, um ambiente excludente ao recorrerem somente a língua portuguesa para o momento lúdico-musical. A música quando contextual e na língua de seus destinatários desempenha um papel fundamental no desenvolvimento psicológico, cognitivo, psicomotor e sócio afetivo do aluno. Partindo do pressuposto de que a música está na vida e na cultura das comunidades e agrega valores linguísticos, culturais, sociais e éticos, permite também a expressão de sentimentos: O lúdico-musical em português em contexto em que a língua nacional é predominante serve para quê? Lúdico-musical em português para quem?

A música transporta uma espiritualidade e permite ao indivíduo a interação com a sua mundividência: pais, avós, irmãos, amigos, entre outros. Essa mundividência e espiritualidade marginalizadas pela escola tornam o aluno deslocado psicologicamente da sala de aula, pois a língua de casa, ao ser desconsiderada, desincentiva no aluno a absorção do conhecimento. Segundo a professora Mangovo, embora não seja costume ensinar músicas em língua nacional, no dia que o fez percebeu que a aprendizagem da música em língua nacional teve uma duração de um dia enquanto a música em língua portuguesa foi necessário um mês para que os alunos aprendessem.

No nosso entender, existe baixo estímulo do aluno aprender em língua portuguesa comparativamente com a língua nacional o que exige do Estado a (re) definição de políticas linguístico-educativas na poscolonialidade que espelhe a diversidade linguística do país. Por outro lado, ficou evidente que os alunos sentem a presença da igreja como preservadora da língua que os identifica, por isso, estes resolvem cantar músicas religiosas em língua nacional quando solicitados pelos professores. Entretanto, sendo a língua nacional do seu ambiente, urge o professor ser um mediador atendo-se aos conhecimentos linguísticos, culturais e ideológicos levados à escola, dando a possibilidade de o aluno se sentir entrosado.

Entendemos, portanto, que existe um fraco desenvolvimento cognitivo, afetivo e social do aluno ao ser ensinado na língua da escola (língua portuguesa). O ensino-aprendizagem precisa ser libertador e isso só começa a ser possível quando a escola inserir a língua de casa (língua nacional) e sua cultura no sistema de ensino-aprendizagem de formas a reduzir as assimetrias que o monolinguismo escolar impõe. Fica evidente a necessidade de a escola tornar-se aliada da família visto que as duas instituições têm uma missão a cumprir para a formação do homem. Para que a aprendizagem ocorra sem sobressalto, é necessário ainda que a escola faça recurso da língua nacional no ensino e possam transmitir os valores culturais e ideológicos dessas comunidades.

Palavras finais

A poscolonialidade e lugares linguísticos no ensino em contexto “rural” angolano visou refletir os lugares linguísticos no ensino, em áreas designadas rurais de modos a perceber questões de invisibilidades dos alunos num contexto pós-colonial, situação que nos levou a perceber a carência de (re)definição de políticas linguístico-educativas para a construção de um país imparcial, tendo em conta a realidade sociolinguística.

Com base nas entrevistas efetuadas aos professores, percebeu-se que o modelo de ensino vigente em Angola segrega, legitima e hegemoniza cada vez mais a língua portuguesa, o que se impõe (re)pensar a ideologia e a cultura escolar em contexto de diversidade linguística, partindo da inserção das línguas e das culturas das comunidades no plano curricular. O sistema de ensino-aprendizagem deve pautar-se pela adoção da língua do aluno, pois a qualidade do ensino na sociedade está condicionada, em partes, a participação dos pais no processo. Essa mudança de paradigma dará corpo às línguas nacionais, às culturas e a recuperação das ideologias da sociedade angolana.

Por outro lado, as mudanças de paradigmas que almejamos para as escolas em contexto “rural” é que o ensino na língua do aluno seja um fato e contemple as práticas linguístico-culturais desses grupos de formas a visibilizar a sua cosmovisão, bem como permitir que o aluno se abra para expressar o que sabe, o que pensa sobre determinados assuntos. Para tal, é necessário que as instituições de formação de professores do nível médio e superior insiram no plano curricular a disciplina de língua nacional e culturas, de formas a garantir uma melhor pre paração do sujeito candidato a professor que atenda as necessidades linguísticas- -culturais das comunidades. Entretanto, a cultura escolar eurocêntrica, carregada de autoridade, deve coabitar com a cultura da comunidade de modos a minimizar as invisibilidades linguísticas, ideológicas e culturais reinantes nas escolas em localidades designadas rurais, que têm como guia a lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino 32/2020, assegurando um ensino-aprendizagem contextualizado, sem desprimor da diversidade linguística e cultural de Angola.

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1. Cultura escolar, a nosso entender são normas adotadas pela escola com a finalidade de impor ao indivíduo aprendente ideologias de vária ordem sendo passível de agregar ou segregar o aluno. Para Frago (1995 apud Schmoeller e Dallabrida , 2017, p. 86) cultura escolar é o conjunto de aspectos institucionalizados que caracterizam a escola como organização (FRAGO, 1995 apud SCHMOELLER e DALLABRIDA , 2017, p. 86). Também pode ser vista “como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (JULIA, 2001 apud SCHMOELLER e DALLABRIDA , 2017, p. 86).

2. La escuela rural exigen un tratamiento específico y diferenciado a partir de una organización y estructura acordes con las necesidades de cada contexto (OLIVARES, 2015, p. 668).

Recebido: 14 de Dezembro de 2020; Aceito: 26 de Abril de 2021

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