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Revista Internacional em Língua Portuguesa

versión impresa ISSN 2182-4452versión On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.40  Lisboa dic. 2021  Epub 25-Feb-2022

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2021.40/pp.79-91 

Artigo Original

A preparação didáctico-metodológica dos professores primários para o ensino do Português em Moçambique: estudo de caso no IFP de Nampula, 2017

Feliciano José Pedro1 

1 Director Adjunto Académico da Faculdade de Letras e Ciências Sociais, Universidade Rovuma, Moçambique.


Resumo

O Português é língua oficial de Moçambique desde 1975, contudo, nem todos os moçambicanos têm a mesma relação com língua portuguesa. Segundo dados do Censo de 2017, apenas 47.4% da população fala Português e mais da metade da população moçambicana não fala esta língua. Para cerca de 12 milhões de moçambicanos, residentes na zona rural, o Português poderia ser considerado como língua estrangeira (LE). Mas, devido à conjuntura histórico-social que determina o português como língua oficial, o estatuto de LE, para este grupo de cidadãos, não é aplicável, valendo apenas o de língua segunda (LS). Segundo afirma Vigner (2001), do ponto de vista de ensino/aprendizagem, a LS é uma prática instável e delicada pois ela situa-se na mediana entre Língua Materna (LM) e LE. Dependendo da actividade, as práticas de ensino de LS podem ser emprestadas à LM ou à LE. Este estudo tem por objectivo analisar o processo de formação de professores primários em matérias de ensino do Português. Especificamente, pretende verificar o nível de preparação para fazer face à diversidade dos contextos (de alunos e dos estatutos que o português tem nas suas biografias linguísticas). Em termos metodológicos, o estudo é qualitativo e descritivo. Os dados são resultantes da análise do programa de formação e de questionários aos formadores de metodologia de Língua Portuguesa e aos formandos do Instituto de Formação de Professores de Nampula. As conclusões deste estudo apontam que os módulos focalizam mais aspectos políticos em prejuízo de aspectos didácticos e que os formadores e, consequentemente, os formandos fixam-se muito nas propostas dos módulos, apesar de estes servirem como simples documentos orientadores.

Palavras-chave: Didáctica de línguas; Língua oficial; Língua Materna; Língua Segunda; Língua Estrangeira

Abstract

Portuguese has been an official language of Mozambique since 1975. However, not all Mozambicans have the same relationship with Portuguese. According to data from the 2017 Census, only 47.4% of the population speaks Portuguese and more than half of the Mozambican population does not speak this language. For about 12 million Mozambicans, mostly living in the rural area, Portuguese could be considered as a foreign language (FL). However, due to the historical-social situation that determines Portuguese as official language, the status of FL for this group of citizens is not applicable, and only the second language status (SL) is applicable. Ac- cording to Vigner (2001), from the didactics point of view, SL is an unstable and delicate practice because it is located in the median between Mother tongue (MT) and FL, depending on the activity, SL teaching practices man be loaned from MT or LE. This study aims to analyze the process of training primary teachers in Portu- guese teaching. Specifically, it intends to verify the level of preparation to face the diversity of contexts (of students and the status that Portuguese has in their linguistic biographies). In methodological terms, the study is qualitative and descriptive. The data are the result of the analysis of the training program and questionnaires to portuguese language methodology trainers and students of the Instituto de Formação de Professores de Nampula. The conclusions of this study indicate that the modules focus more on political aspects to the detri- ment of didactic aspects; it indicates also that trainers and, consequently, trainees are very fixaised on what is proposed in the modules, while they should be seen as simple guiding documents.

Keywords: Language teaching; Offi language; Mother Tongue; Second Language; Foreign Language

Introdução

Existem vários adjectivos para classificar uma língua num dado contexto. De- pendendo de factores tidos como referência, uma língua pode ter o estatuto de língua oficial (LO), língua materna (LM), língua estrangeira (LE), língua segunda (LS), só para citar os mais importantes. Vários elementos contribuem para a definição destes estatutos mas, de modo geral, destacam-se factores históricos, políticos e sociais que determinam o estatuto da língua em cada meio.

Neste artigo, parte-se do pressuposto de que a metodologia e os manuais de ensino e aprendizagem de uma língua, num dado contexto, deviam ser definidos de acordo com o estatuto da língua nesse contexto, isto é, as metodologias para o ensino de uma língua dependem do estatuto dessa língua. Consequentemente, devido à diversidade de contextos de ensino em Moçambique, o ensino do português não podia ser feito com recurso à metodologias e manuais “globais” que não tomam em consideração as especificidades de cada contexto. Por exemplo, o livro de Português da 1ª classe, usado na cidade de Maputo é o mesmo usado na mesma classe no distrito de Mecuburi, província de Nampula.

Reconhece-se, no entanto, a dificuldade que a abordagem, acima exposta, representa do ponto de vista técnico, financeiro e social, pois implicaria, para o contexto de moçambicano, a elaboração de dois ou mais livros diferentes da 1ª classe (por exemplo), de modo a responder à especificidade de cada contexto particular. À partida, tal abordagem podia ser considerada discriminatória por alguns, mas a questão seria sobre a necessidade de se perceber até que ponto, a utilização do mesmo livro para alunos que não têm a mesma relação com a língua portuguesa, promove ou não a igualdade.

Reconhecendo o grau de dificuldade e o carácter polémico desta abordagem, neste artigo, o foco é o processo de formação de professores do ensino Primário, pois esta pode ser uma das formas de fazer face à esta situação de elaboração de livros diferenciados, por meio de sensibilização e consciencialização dos formandos sobre a diversidade de contextos e ainda preparando-os para fazer adaptações ou criar actividades que correspondam ao tipo de alunos, mediante contextualização dos conteúdos e manuais.

Uma formação, nesse sentido, passa pela tomada de consciência da existência dessas diferenças e pela capacidade de identificar e diferenciar os diferentes estatutos de uma língua. Durante a formação de professores, não se pode omitir essa realidade, por isso devem prever-se conteúdos que permitam o desenvolvimento de tais capacidades pelos formandos e futuros professores.

Assim sendo, este estudo pretende analisar o processo de formação de professores primários em matérias de ensino do Português. Especificamente, pretende verificar o nível de preparação dos professores para fazer face à diversidade dos contextos (de alunos e dos estatutos que o português tem nas suas biografias linguísticas).

Este artigo apresenta três partes: a primeira parte apresenta conceitos e uma radiografia da situação do português em Moçambique, a segunda parte apresenta a metodologia usada para este estudo e a terceira e última refere-se à análise dos módulos de formação de português e de didáctica do português e a análise e interpretação dos questionários submetidos aos inquiridos.

1. Breve contextualização teórica

Antes de se avançar para uma descrição da situação do português em Moçam- bique e das implicações no ensino e aprendizagem desta língua, começa-se por definir os diferentes estatutos de uma língua.

1.1. Língua materna

Língua materna é definida como “a língua da socialização”, (Grosso, 2004) ou então, segundo Sim-Sim (1997), como a língua adquirida espontânea e naturalmente, e que identifica o sujeito com uma comunidade linguística e constitui, igualmente, o primeiro instrumento de comunicação desde a mais tenra idade, sendo utilizado no país de origem do sujeito falante, Galisson & Coste (1983). Na perspectiva de Santos (2009), a denominação materna prende-se ao facto de, no passado, as mães terem sido “as únicas a educar os filhos nos primeiros anos de vida, fazendo com que a língua da mãe fosse a primeira a ser assimilada”.

Contudo, segundo Cuq & Grucca (2005, p. 90) e Cuq (2003, p. 151), não se pode dar uma interpretação literal ao adjectivo “materna” visto que a língua materna de uma pessoa não é necessariamente a língua falada pela sua mãe biológica, pode ser a língua do seu pai ou do contexto onde ela cresce. Com efeito, perspectivando clarificar a noção de LM, Cuq & Grucca (2005) e Mackey (1992) avançam, respectivamente, três critérios que permitem definir, identificar ou classificar uma língua como Materna, tais como: ordem de apropriação/primazia; modo de apropriação/domínio e o critério de língua de pertença1/associação.

Para Cuq & Grucca (2005), tomando como referência o critério de ordem de apropriação, pode definir-se como língua materna, a língua da primeira socialização, isto é, a primeira língua com a qual uma criança aprende a dar nomes às coisas do mundo à sua volta.

O segundo critério, o modo de apropriação, permite definir a língua materna

pelo facto de esta ser apropriada pelo indivíduo de forma natural e espontânea, isto é, a aprendizagem não é declarada, o indivíduo aprende a língua através da interacção com os membros da sua comunidade e, principalmente, com a sua família.

E, por fim, o critério de língua de pertença ou associação. Segundo afirmam Cuq & Grucca (2005, p. 91), nesta perspectiva valoriza-se mais o aspecto simbólico da língua em detrimento da sua função comunicativa. Com efeito, a LM constitui um elemento fundamental na constituição da identidade de um povo ou de uma nação.

Todas as línguas ou situações que não correspondam à descrição de LM são denominadas de Línguas Não Maternas (LNM) onde se enquadram, principal- mente, as designações de LE e LS.

1.2. Língua estrangeira

Geralmente, uma língua estrangeira define-se tomando como referência a língua materna. A LE define-se, neste caso, como sendo o sentido oposto da língua materna, ela não é a primeira na ordem de apropriação das línguas, não faz parte da primeira socialização da criança e nem é falada no contexto sociocultural do sujeito falante. O modo de apropriação é o critério que melhor permite estabelecer a diferença entre LE e LM. Se, por um lado, um indivíduo aprende sua LM de forma natural e espontânea, por outro lado, a LE é objecto de uma aprendizagem, geralmente, declarada e institucionalizada. Partindo deste pressuposto, Cuq & Grucca (2005 p. 93) definem a LE como sendo “toda a língua não materna”, coincidindo, de certa forma, com a argumentação de Stern (1983, p. 16) que considera que “in the past the term of foreing language was widely used in con- trast to native-language”. Esta definição é característica duma época em que a nomenclatura reconhecia apenas a LM e LE. Mais tarde, o aparecimento de novas situações, originadas pelas independências em África e pela imigração massiva na Europa, que não se adequavam às duas designações de LM e LE, tornou-se necessária a criação ou ponderação de um terceiro estatuto, o de LS.

1.3. Língua segunda

Segundo Stern (1983, p. 16), o termo LS designa uma língua não materna aprendida e usada dentro de um país e que tem, geralmente, um estatuto oficial e uma função reconhecida ou então usada na participação política, nas escolas e na economia, (Santos, 2012).

Cuq & Grucca (2005, p. 94) consideram que, no contexto francês, o conceito de LS aparece no xadrez didáctico vinte anos após a existência dos conceitos de LM e LE, porque estes últimos mostraram-se insuficientes, desajustados e inoperantes para descrever todas as situações onde o francês era utilizado, principalmente nas antigas colónias onde, embora não fosse língua materna da maioria da população, não podia ser considerado LE. Nestes contextos, o francês era uma LE, mas com um estatuto particular e de certa forma privilegiado.

A realidade da língua francesa descrita acima pode ser aplicável a língua portuguesa, visto que à semelhança do francês, o português é usado em contextos em que a esmagadora maioria da população não o tem como LM. No entanto, não constitui LE em virtude de fazer parte da conjuntura nacional, como língua oficial usada na administração pública e como língua de escolarização. Nesse sentido, Vigner (2001, p. 3) defende que “o ensino de uma língua como língua segunda não se aplica apenas ao francês porque o inglês, o espanhol e o português possuem também esta particularidade de serem ensinados a alunos que têm uma outra língua e uma outra cultura de origem”. O autor dá como exemplos, o caso do inglês nos países anglófonos de África, do espanhol nos países da América latina e do Português em Angola e Moçambique.

1.4. Situação do Português em Moçambique

Existem vários estudos e publicações sobre o Português em Moçambique, dentre os quais destacam-se os de Gonçalves (1990), Firmino (2000, 2001), Ngunga & Bavo (2012). A maioria destes trabalhos aborda aspectos relacionados com a gramática da língua portuguesa e, sobretudo, com as particularidades lexicais ou sintácticas do português falado em Moçambique. Importa referir porém a criação muito recentemente de uma Cátedra de língua portuguesa que tem como um dos seus eixos temáticos a didáctica do Português LS.

Neste artigo, faz-se uma breve descrição baseada nos dados do Censo 2017 apenas para consubstanciar a posição sobre a necessidade de um ensino que tome em consideração a relação que os alunos têm com a língua portuguesa, ou seja, um ensino contextualizado. Segundo os dados do Censo de 2017, o estatuto do português em Moçambique é heterogéneo e múltiplo, o que nos leva a concluir que esta língua goza de dois estatutos o de LM e o de LS, pois de acordo com o mesmo censo cerca de dez milhões e quinhentos mil moçambicanos (equivalentes a 47,4%) falam português. Deste universo, mais da metade (aproximadamente seis milhões, correspondentes a 57% reside nas zonas urbanas). Os mesmos dados apontam ainda que 16,8% da população total do país fala o português com maior frequência em casa e 16,6% consideram-no como sua língua materna.

Conforme ilustram os dados acima, mais da metade da população moçambicana (cerca de onze milhões e setecentas mil pessoas, correspondentes a 52,6%) não fala e, em certos casos, nem compreende o Português. Mesmo os que falam e compreendem o português, no seu dia-a-dia, preferem comunicar-se usando outras línguas maternas ou nacionais. Estes dados sustentam a necessidade de uma abordagem do ensino do português em Moçambique de forma diferenciada. Outros estudos, por exemplo Ngunga & Bavo (2011), demonstram que o português tem maior expressão nos grandes centros urbanos. Neste sentido, o nível de desenvolvimento determina a relação com a língua portuguesa, quanto maior for o desenvolvimento, menor é a distância com esta língua e quanto menor for o desenvolvimento maior é a distância com a mesma.

Exceptuando o factor língua oficial, que é uma denominação meramente política, podemos concluir que o português em Moçambique goza de dois estatutos: o de LM e o de LS. Entretanto, uma breve observação e análise dos contextos onde o Português é LS permite afirmar que existem vários níveis de LS, isto é, o estatuto de LS não é homogéneo para todos os moçambicanos.

1.4.1. Implicações do ponto de vista de ensino da língua

“Sabemos que cada situação é um mundo em si, que cada história de aquisição duma língua é pessoal, que cada sala de língua é singular”. CAMBRA GINE, (200, p. 31)2

Como se pode depreender, pelo exposto acima, a língua pode ser materna, segunda e estrangeira. Por conseguinte, a pedagogia ou a metodologia de ensino de uma língua é determinada pelo estatuto e posição dessa língua. A esse respeito, Kwofie (2004, p. 135) considera não lógica a aplicação de mesmos métodos para ensinar uma língua a duas crianças provenientes de contextos diferentes onde um é do contexto de LS e o outro de LM. A primeira conhece apenas algumas palavras de uma língua, que dificilmente usa, enquanto a segunda fala fluentemente essa língua e não conhece a outra língua.

Assim sendo, para o contexto de Moçambique, não basta estabelecer a diferença entre LM e LS mas é necessário também diferenciar os contextos em que Português é LS. O estatuto de LS, em Moçambique, não é homogéneo para todos os alunos, a posição do português LS não é a mesmo para um aluno de um centro urbano e outro de uma localidade ou aldeia rural. Mesmo que o primeiro aluno não fale português fluentemente está mais ou menos familiarizado com os sons desta língua diferentemente ao segundo. Para alguns alunos dessas zonas rurais, o português pode ser completamente estranho e pode constituir uma espécie de LE, todavia por imperativos históricos, sociais e políticos esse estatuto não é aplicável.

2. Metodologia

Tendo em conta os objectivos, o modo de abordagem privilegiada na análise e interpretação dos dados, esta pesquisa é descritiva e de natureza qualitativa. Para a recolha de dados, foram combinadas as técnicas de análise documental e de questionário, este ultimo contendo questões mistas ou semifechadas na medida em que as perguntas continham, maioritariamente, duas partes: uma fechada e outra aberta. A parte fechada, constituída por perguntas do tipo Sim ou Não, servia de pretexto para colher a justificação e/ou argumentação dos inquiridos. A análise documental, neste estudo, foi usada na exploração dos módulos de formação, ao passo que os questionários serviram para colher percepções e pontos de vistas dos formadores e formandos. Como método de análise de dados, recorreu-se à uma das técnicas da análise de conteúdo (Bardin, 2011) que consistiu na reinterpretação e compreensão dos conteúdos dos módulos de Português I e de Didáctica do Português e das respostas de 14 participantes, dos quais 4 formadores e 10 formandos.

De salientar que tinham sido previstos e distribuídos 20 questionários aos formandos e 8 questionários aos formadores. Destes, receberam-se de volta 10 questionários dos formandos correspondentes a 50% e apenas 4 dos formadores (também 50%). A quantidade dos questionários recebidos de volta é de certa forma insatisfatória e não se sabe por que motivos não houve tanto interesse em responder à estes questionários uma vez tratar-se de um assunto de interesse da- quela comunidade estudantil.

3. Análise e interpretação dos dados

Os resultados são fruto da análise dos módulos de formação das disciplinas de Português I e de Didáctica do Português e da análise e interpretação de dois questionários (um para formadores e o outro para formandos).

3.1. Resultados da análise dos módulos de Português I e de Didáctica do Português

O módulo de português 1 não aborda nenhum assunto relacionado com o Português em Moçambique, muito menos aspectos de ensino e aprendizagem desta língua. Nele, abordam-se questões de língua no geral. Entretanto, no módulo de didáctica de português estão previstos conteúdos sobre o tema em análise.

Uma observação do índice permite identifique a primeira unidade versa sobre a língua portuguesa no contexto de Moçambique, enquanto a segunda unidade aborda princípios gerais da didáctica do português como LS. Não há quaisquer dúvidas sobre as intensões destas duas unidades, como se pode ler numa das passagens:

... porém deve-se ter sempre presente de que, para a maior parte das crianças em idade escolar o Português é uma língua segunda, isto é, as crianças têm como língua materna, uma língua bantu e, e de maneira geral, as crianças aprendem o Português na escola. (Módulo de didáctica de português, s/d p. 20)

Contudo, uma análise mais cuidadosa permite afirmar que o assunto não é abordado com profundeza, por exemplo, dum universo de 7 unidades que com- põem o programa deste módulo apenas uma é que é reservada à questão do Português em Moçambique e da didáctica do português como LS. No nosso entender, dada a importância e sensibilidade desta matéria, dever-se-ia reservar mais espaço e/ou tempo no módulo sobre a questão de ensino do Português.

Os autores do módulo reconhecem e alertam os formandos e formadores sobre a especificidade do ensino da LS em relação à LM, por isso escrevem: “a didáctica da língua portuguesa como língua segunda deve propor metodologias próprias e não métodos de Língua Portuguesa como materna, para o estudo deste tópico, veja Gomes et all (1993, pp. 33-42)”.

Os autores do programa limitam-se em remeter os formadores e formandos à leitura da obra de Gomes (1993). A citação acima demonstra a intensão de sensibilizar os formandos (futuros professores) sobre a particularidade de ensinar uma LS apesar de não ser suficiente, pois carece de aprofundamento. Não se demonstra o que torna essa didáctica específica das outras e qual é a sua relação com elas. Os conceptores não fazem nenhuma menção à Didáctica da LE, mas como foi referido anteriormente a Didáctica de LS é posterior à existência da Didáctica de LE e da LM. É importante abordar o ensino de uma LS de forma comparada com as didácticas de LE e de LM, visto que, de acordo com Cuq (2003, p. 109), “no ensino de uma língua segunda as metodologias são emprestadas à LE ou LM”.

Da análise do conteúdo interior destas duas unidades, constata-se que em nenhum momento, no módulo, aborda-se o facto de o português poder ser LM para alguns moçambicanos. Outra constatação prende-se com o facto de o ponto 5.3.2. deste módulo intitular-se “Conceito de Língua”, entretanto são apresentados, apenas, os conceitos de LM, LS e língua veicular. Como consequência, os formandos irão definir o conceito de língua com base nesses termos que parecem ser estatutos de uma língua e não o conceito de língua. Para uma visão mais ampla, a língua devia ser definida do ponto de vista da ciência linguística. Mesmo definida a língua nos termos em que os autores escolheram, nenhum exemplo é apresentado para ilustrar cada um dos casos.

Curiosamente o conceito (o estatuto) de LE está ausente destas definições. Será que este conceito não é necessário? Os conceitos de LM, LE e de LS deviam ser abordados de forma contrastiva e com base em exemplos do dia-a-dia do formando.

Em seguida apresentam-se os resultados dos questionários aos formadores e formandos, estes últimos são o testemunho da forma como os conteúdos dos módulos são assimilados.

4.2. Resultados dos questionários

Dada a natureza deste trabalho, para o questionário, não será feita uma análise questão por questão, mas apenas as tendências gerais das respostas dos inquiri- dos. A análise é baseada em duas abordagens : os estatutos conferidos ao português e o estatuto como condição para a escolha da metodologia de ensino.

Na primeira abordagem, esperava-se que ambos respondessem que: “o português em Moçambique é simultaneamente Língua Oficial, LM, LS e eventualmente LE”. Para aferir esta abordagem, foram formuladas as questões 1; 2 e 3 aos formadores e as questões 1 e 3 aos formandos (ver apêndice). Na segunda, esperava-se que os inquiridos explicassem que “o facto de o português em Moçambique identificar-se com essas três etiquetas, tornam o contexto variado e heterogéneo, por isso a necessidade de se adequar os métodos de ensino para cada situação”. Esperava-se, igualmente, que reconhecessem que, de um modo geral, “o ensino de uma língua segunda requer uma metodologia específica que se inscreve na mediana entre metodologia da LM e metodologia da LE”. Para esta segunda abordagem, foram formuladas as questões 4 e 5 aos formadores e as questões 2; 4 e 5 aos formandos.

4.2.1. Estatutos conferidos ao português

Dos quatro formadores que responderam ao questionário apenas dois é que foram ao encontro do que era esperado, os restantes não identificaram claramente os estatutos de uma Língua. Um dos formadores que respondeu segundo o esperado, foi mais adiante ao referir-se aos outros estatutos e funções do Português em Moçambique, tais como língua de escolarização, língua veicular e língua de unidade nacional, para além de ter denunciado, igualmente, a superficialidade com que são abordados esses estatutos nestes módulos e proposto que a sua abordagem devia ser aprofundada.

Em resposta às questões colocadas, tendo em vista a aferição desta abordagem, nenhum dos formandos identificou simultaneamente os três estatutos do português em Moçambique. Cada formando identificou um e outro estatuto, mas nenhum se referiu ao facto do português poder ser LM para alguns moçambicanos. A maioria apontou o facto de o português ser uma língua de unidade nacional.

Fazendo uma análise global destes resultados, pode concluir-se que os estatutos do português em Moçambique foram objecto de aprendizagem durante a formação, mas os formandos ainda não os utilizam quando necessário. Nos módulos, frisa-se a questão do português como língua oficial e de unidade nacional, conceitos meramente políticos, em detrimento de conceitos como LM, LS e LE que levam à uma reflexão didáctica.

4.2.2. Estatuto da língua como condição para a escolha da metodologia de ensino

De forma geral, os resultantes referentes a esta abordagem indicam que os quatro formadores foram ao encontro desta segunda expectativa, porque consideraram haver necessidade de sensibilizar os formandos sobre os contextos de ensino do Português em Moçambique. Contudo, à semelhança dos módulos, nenhum se referiu ao facto do ensino de uma língua segunda requerer uma metodologia específica e, de certa forma, diferente das de LM e LE.

Embora os formandos não tenham identificado os estatutos, de que goza o português em Moçambique, as respostas às perguntas que visavam certificar esta segunda abordagem são de certa forma aceitáveis. Os formandos reconhecem a diferença de contextos de ensino do português em Moçambique e sabem que o contexto determina o nível de dificuldades do processo de ensino e aprendizagem da língua. Por exemplo, um dos inqueridos respondeu:

Ensinar português na escola 7 de Abril é fácil porque a maior parte dos alunos já tem o conhecimento do português, e num distrito também é normal apesar de que nem todas crianças sabem falar português. Enquanto numa localidade o professor faz muito esforço para que os alunos aprendam3.

Contudo, nenhum formando apontou a necessidade de uso de metodologias específicas de ensino de LS. A maior parte dos formandos evidenciou a necessidade de uma abordagem bilingue nesses contextos. Esta focalização na abordagem bilingue é o resultado dos conteúdos abordados durante a formação, visto que nos módulos em análise a interferência das línguas Bantu e a abordagem bilingue são identificadas como princípios gerais de ensino de português como LS em Moçambique.

Conclusão

Este estudo partiu de preocupações do senso comum que apontam para um fraco domínio da língua portuguesa por parte dos alunos do ensino primário em Moçambique, portanto a intensão foi de analisar o processo de formação de professores deste subnível de ensino.

A análise consistiu em verificar o nível de preparação e de conscientização dos formandos em matérias de diversidade de contextos em que se ensina português em Moçambique, através da análise de módulos de formação e de dados recolhi- dos a partir de dois questionários submetidos aos formadores e formandos.

Feita a análise e interpretação dos dados, pode concluir-se que os resultados são positivos, pois permitem compreender como decorre o processo de formação de professores. De entre vários aspectos que sobressaem deste estudo, destacam-se os seguintes:

Nos módulos, estão previstos conteúdos que permitem sensibilizar os formandos sobre a especificidade e a diferença de contextos de ensino do português em Moçambique, mas existe uma forte focalização sobre os aspectos políticos (Língua oficial e língua de Unidade nacional, que não apontam para a forma como cada uma se deve ensinar) em prejuízo de aspectos didácticos (LM, LS e LE, que dão alguma indicação sobre os cuidados a ter do ponto de vista de ensino).

Os formadores e formandos não vão muito além do que aquilo que vem expresso nos módulos, sendo que os formadores, em primeiro lugar, deveriam tomar o módulo como um simples documento orientador, isto é, não limitar-se ao que nele vem prescrito. Estes deveriam, também, recorrer as outras fontes bibliográficas, com vista a dar mais subsídios teóricos aos seus formandos.

Nas abordagens não se faz referência ao facto do português ser LM para alguns moçambicanos, assim como também não se aborda o conceito de LE. Para uma visão global e integrada do ensino de uma língua, como é o caso do ensino do português em Moçambique, seria necessário abordar os conceitos de LM e LE, dando exemplos do dia-a-dia do aluno, o que permitiria uma melhor leitura e interpretação dos contextos de ensino do português em Moçambique. Esta conceitualização devia ser acompanhada de algumas considerações sobre similaridades e diferenças das metodologias de ensino de cada um destes casos.

Figura 1 APENDICE 1 – QUESTIONÁRIO AOS FORMANDOS. 

Figura 2 APENDICE 2 - QUESTIONÁRIO AOS FORMADORES. 

Referências

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1. Traduzido da expressão original em francês : Langue d’appartenance.

2. Traduzida da sua versão original em Francês : « Nous savons que chaque situation est un monde en soi, que chaque histoire d’acquisition d’une langue est personnelle, que chaque classe de langue est singulière ».

3. Transcrição da resposta de um dos inquiridos, em resposta à questão 4 do questionário aos formandos.

Recebido: 16 de Dezembro de 2020; Aceito: 28 de Fevereiro de 2021

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