SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.43De solução renegada a política ‘estrela’: o que levou à emissão de dívida conjunta na UEComunicação Política, inteligência artificial e ciberesfera índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Internacional em Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 2182-4452versão On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.43  Lisboa jun. 2023  Epub 22-Maio-2023

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2023.43/pp.45-65 

Artigo Original

Comunicação e inclusão: novos usos da língua para uma linguagem neutra

Joel Mateus Cabeia Mabialaa 

Ariane Parente Paivab 

a Estudante de Licenciatura em Língua e Literaturas em Língua Portuguesa na Universidade Agostinho Neto, Angola; académico bolseiro em Estudos Portugueses pelo Programa Procultura/AULP, na Universidade Nova de Lisboa

b Doutora em Ciências da Comunicação - Universidade Nova de Lisboa, Graduada em Comunicação Social - Universidade Federal do Ceará, Brasil


Resumo

Em forma de ensaio, faz-se uma reflexão atualizada sobre os processos sociais, culturais e políticos que surgem e têm impactado a comunicação em português nas formas oral e escrita. São processos que nascem especialmente sob o propósito de fortalecer a comunicação e gerar melhores resultados de inclusão e equidade, a exemplo dos sentimentos gerados e, em função deles, das novas apropriações e novos usos da língua para uma linguagem neutra de gênero. Numa perspectiva atualizada, que não se limita às normas gramaticais convencionais consolidadas no estudo do português, identificam-se outras formas de reconhecer e usar a língua, como algo vivo, em movimento, em que se atenta ao domínio e legitimação de formas de se comunicar e de promover uma maior socialização. Descrevem-se aqui quais são esses novos processos e seus elementos agentes de comunicação, desapegados da regra formal da língua, como se processam atualmente, sendo de um lado, aceitos e legitimados por diferentes grupos sociais (media, social media, organizações e empresas privadas e públicas, escola e universidade), de outro lado, questionados e criticados por pais, educadores, estudiosos da língua e até grupos políticos.

Palavras-chave: comunicação; inclusão; processos sociais; linguagem neutra; língua portuguesa.

Abstract

In an essay format, an updated reflection is made on the social, cultural and political processes that arise and have impacted communication in Portuguese in oral and written forms. These are processes that are born especially with the purpose of strengthening communication and generating better results of inclusion and equity, like the feelings generated and due of them, the new appropriations and new uses of language for a gender-neutral language. In an updated perspective, which is not limited to the conventional grammatical norms consolidated in the study of Portuguese, other ways of recognizing and using the language are identified, as something alive, in movement, in which attention is paid to mastering and legitimizing ways of communicating and to promote greater socialization. These new processes and their communication agent elements are described here, detached from the formal rule of language, as they are currently processed, being, on the one hand, accepted and legitimized by different social groups (media, social media, organizations and private companies and public schools and universities), on the other hand, questioned and criticized by parents, educators, language scholars and even political groups.

Keywords: communication; inclusion; social processes; gender-neutral language; portuguese language

Introdução

À luz de teóricos da comunicação e da sociolinguística, o poder da comunicação revela o seu sentido pleno quando usado para promover mais inclusão e igualdade social. A comunicação é mais que meios de informação de massa, é uma ação que, cada vez mais, confunde-se com a própria vida, e que devia ser usada para atender às necessidades das pessoas numa vida em sociedade (Bordenave, 2017), a comunicação e suas tecnologias que se faz a partir das relações interativas de uma sociedade em rede, que passa por inúmeras transformações sob diversas formas (Castells, 2007).

Nesse modelo de sociedade, a comunicação equivale a um “espaço público” que age como um “espaço cognitivo em que as mentes das pessoas recebem informação e formam os seus pontos de vista através do processamento de sinais da sociedade no seu conjunto” (Castells, 2007). É neste espaço cognitivo coletivo que, ao nosso ver, age a linguagem como um meio potencialmente inclusivo, pois assim necessário à promoção da igualdade e ao reconhecimento da diversidade.

Neste artigo, destaca-se a importância que os falantes/comunicadores dão à língua e às suas formas de linguagem nas suas relações sociais (Marcuschi, 2010); a língua reconhecida como um sistema de signos ligado a outros sistemas semióticos e a representações socialmente construídas (Corrêa, 2003), como um lugar de interação que leva ao estabelecimento de vínculos e compromissos (Koch, 1995). A importância de utilizar uma linguagem inclusiva se deve a razões políticas, cognitivas e linguísticas (Soares, 2017) e a uma consequente descoberta de novas palavras que venham descrever identidades sociais existentes e dar mais sentido à vida e à comunicação de muitas comunidades e organizações, um tópico de maior sensibilidade social e de uma mudança linguística que pode vir a ser “inevitável” porque representa reconhecimento e respeito, segundo o linguista João de Matos, investigador do Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa.

Através do uso da língua, veiculam-se as intenções dos falantes em busca de garantir a interação no processo comunicativo (Balsalobre, 2017), pois atualmente, em meio a processos sociais emergentes e a interação promovida entre os interlocutores, observam-se mudanças linguísticas em curso, visíveis nos meios e modos de uso da linguagem verbal (na modalidade escrita ou oral).

Há valor numa visão que seja não dicotômica entre fala e escrita, entre aqueles que se dedicam a analisar a língua como um conjunto de regras, mas que se preocupam também com os “fenômenos dialógicos e discursivos” envoltos (Marcus-chi, 2010, pp.27,28), e que fogem da perspectiva disso ser “inconveniente”, de “considerar a fala como lugar de erro e do caos gramatical” (p. 28), segundo o mesmo autor.

Entre as perspectivas de análise, Marcuschi se refere à perspectiva sociointeracionista (quando fundamentada por outras perspectivas mais teóricas e empíricas), um modelo de grande vantagem para os estudos da língua vista como um fenómeno interativo, dinâmico e de negociação, pois capaz de dar mais clareza à análise da relação e da produção de sentidos entre língua, práticas sociais e comunicação.

É sob essa perspectiva sociointeracionista, que abrange as mais variadas dinâmicas sociais da língua e da comunicação, que vamos analisar os processos sociais emergentes em torno do uso da linguagem neutra como linguagem inclusiva, assim como, os pontos discursivos contrários à sua adoção na fala e na escrita do português.

Nesse interim, descrevem-se alguns processos sociais decorrentes de interações sociais que têm gerado novos usos da língua, a partir de alterações dos códigos de vida das pessoas, dos seus sentimentos, códigos que se revelam na prática dos meios de comunicação (e redes sociais digitais), imprimindo novas dinâmicas ao uso da língua portuguesa.

Processos sociais e novos elementos linguísticos

Por iniciativa de vários atores sociais, observa-se na chamada esfera pública um debate constante acerca de elementos linguísticos que estão desapegados do uso normativo da língua e que, em parte, têm sido requeridos, aceitos e legitimados por várias instituições (social media, imprensa, organizações e empresas públicas e privadas, grupos políticos e culturais, e por entidades de ensino e formação académica e profissional). São originários de processos sociais e de comportamentos de socialização e consumo que exigem novas apropriações e usos da linguagem verbal (falada e escrita), com a finalidade de fortalecer a ação inclusiva da comunicação. Movimentos de luta cívica eclodiram em várias frentes (cultural, política, económica) em defesa de mudança de novas políticas de educação e legislação para uma cultura social de inclusão para essas comunidades. Tomamos como exemplo o movimento em busca de reconhecimento de identidade e diversidade de gênero1. Desde a década de 1990, quando a comunidade LGBT2 passou a ser assim denominada, sendo a sigla representativa mundial das pessoas que viviam e vivem em ambiente de discriminação.

A sigla foi reconhecida após esforços de inúmeros movimentos ativistas, desde meados da década de 80, com a iniciativa de encontrar uma nomenclatura ou formato desta, que abrangesse as mais diversas identidades de gênero. (Já por volta de 1988, ativistas começaram a usar esse inicialismo nos Estados Unidos). Recentemente, as siglas foram expandidas conforme novas identidades de gênero foram sendo reconhecidas. Palavras como queer*, arco-íris* e também ally*3 foram acrescentadas e adotadas posteriormente, com intuito de abranger outras identidades, a exemplo de LGBTQA. Passou-se há alguns anos a usar a sigla LGBTQIA+.

Uma constante ação coletiva e cívica de pessoas que se sentiam não conformadas e queriam uma diversidade de vozes reconhecida (quando já socialmente agem múltiplas performatividades de gênero) defendeu fortemente um maior apoio à criação de estruturas gramaticais que não atribuíssem apenas um gênero gramatical aos seres humanos no discurso (Covas e Bergamini, 2021).

Como resultado, uma série de orientações internacionais passou a ser discutida e adotada por atores sociais que, nos últimos vinte anos, com intuito de responder a questões e direitos das pessoas que não se identificavam com os gêneros binários masculino e feminino, ou com outros gêneros que lhes eram convencionalmente atribuídos, ou ainda, quando persistiam sérias questões levantadas por pessoas que reuniam características diversas, portanto, diferentes aos gêneros antes reconhecidos.

Entre esses atores sociais referidos estão as organizações internacionais destinadas a ações de inclusão através da educação, cultura, ciência, paz e segurança, a exemplo de Unesco, ONU, Parlamento Europeu, escolas, universidades, media, grupos políticos, e entidades ligadas à causa de reconhecimento de identidade e gênero. Embora as várias propostas para uma linguagem neutra ainda não sejam aceitas e adotadas plenamente na gramática normativa, essa medida tem sido cultural e já presente nos procedimentos formais e institucionais de muitas dessas organizações internacionais. A linguagem neutra: a busca por uma comunicação mais inclusiva

Sendo a linguagem neutra4 essencialmente um tipo de linguagem usada pelos falantes para não demarcar um gênero ou para incluir na escrita e fala elementos apropriados, que não indiquem o gênero masculino ou feminino ou que se refiram à pluralidade de gêneros, percebe-se que por tais necessidades, ela já existe, já é real, sob o compromisso de diversas entidades e organizações poderem referir-se e responder às mais diversas pessoas, ultrapassando o uso exclusivo do gênero gramatical masculino em referência a todos os gêneros.

Tais necessidades emergiram de um forte contexto de reivindicações de comunidades implicadas e que exigem agora maior atenção social, desde quando as mulheres e outros gêneros, como os não-binários (que não se identificam com nenhum dos dois gêneros convencionais), passaram então a reclamar pelo reconhecimento de suas próprias referências. Passaram a exigir o uso de novas formas de referência, em que não se sentissem invisíveis na língua e que fossem contempladas para além da referência normativa linguística, geralmente feita aos homens.

Muitas entidades de atuação social coletiva optaram por tentar construir uma linguagem capaz de oferecer um resultado inclusivo da sua comunicação com a sociedade civil e instituições parceiras. Buscam atualmente uma linguagem que sirva de modo mais efetivo para dar visibilidade às novas realidades e ao direito de identidade de gênero, para promover uma comunicação com narrativas reais e próximas, que reconheçam direitos universais e especiais e seja antidiscriminatória (...), uma forma de identificar e expressar a existência de gêneros diversos (Covas & Bergamini, 2021), de expressar um caráter de ação capaz de promover o combate ao sexismo, ao machismo e à LGBTfobia, por governos, planos e políticas de educação em estejam em fase de análise ou ainda por consolidar (Vianna e Bortolini, 2020).

A comunicação em português dentro de mudanças emergentes

Sendo a expressão oral a primeira, basilar e mais fiel representação do uso de qualquer idioma, seguida depois pela escrita e pela gramática normativa, é cada vez mais na forma falada, seguida da forma escrita, que se podem identificar elementos e processos de mudanças que afetam e dinamizam o idioma português.

No ambiente das escolas de ensino do português, por exemplo, muitos alunos estrangeiros de português revelam o seu uso natural de algum tipo de linguagem neutra ou pronomes pessoais neutros quando se referem a si mesmos ou aos outros. Muitos casos são naturais de países que já o fazem.

A reboque do que passou a se chamar de “esfera pública” a partir do século XVII, observa-se até hoje que a linguagem verbalizada é sempre um ambiente propício para espalhar o uso de novos elementos. Por seu constante uso no espaço do debate público, adquire alguma legitimidade e poder de classificação gramatical, ou ganha a atenção de estudiosos. Os elementos emergentes citados aqui servem para demonstrar o atual contexto do uso comum da língua portuguesa em busca de uma ação de comunicação mais inclusiva. São formas de expressão usadas pelos falantes da língua e que estudiosos de todo o mundo têm levado em conta porque tem sido a oralidade a fonte de mudanças e adaptações do idioma.

Uma nova forma de escrever o gênero tem revolucionado o uso da língua e gerado novas ideias como a adoção de elementos que simbolizem na sua mensagem o reconhecimento de gênero e identidade. Entre as propostas que ganharam destaque para promover o uso de uma linguagem neutra está também a do governo argentino que, em julho de 2021, reconheceu oficialmente os cidadãos não-binários, e criou a opção “x” no campo de gênero de documentos de identidade. Em outros países como Canadá, Austrália e Nova Zelândia foram adotadas medidas semelhantes.

Embora não seja a norma nacional nos Estados Unidos da América (EUA), vários governos estaduais passaram a admitir a indicação do gênero não-binário nas carteiras de motorista e certidões de nascimento (Graf, 2019). Nesse país, um número crescente de universidades já permite aos estudantes registrarem os seus gêneros e pronomes pessoais não-binários nos cadastros oficiais.

Como língua reconhecida entre as mais influentes do mundo pelo Parlamento Europeu, estratégias são agora adotadas para garantir a ideia de neutralização ou abstração de género na língua portuguesa. Esse é um modo de trazer alguma mudança ao Português que figura entre as línguas com marca de género, como o alemão, línguas românicas e línguas eslavas, em que os substantivos e os pronomes pessoais são variáveis em género.

Portanto, sendo o Português diferente de outras línguas, como o dinamarquês, o inglês e o sueco, como línguas que reduzem o uso de termos específicos quanto ao género e tem em sua estratégia, a neutralização, ou ainda, as línguas sem marca de género como estónio, finlandês e húngaro, em que não há género gramatical, nem género pronominal. São línguas que não necessitam em geral de estratégias específicas para serem inclusivas do ponto de vista do género.

Ao procurarem por uma comunicação mais estratégica e inclusiva em português, a fim de obter melhores resultados em suas atividades e objetivos, e para alcançar um maior número de pessoas, a imprensa, a publicidade, a política, as expressões culturais, por exemplo, têm somado esforços para terem uma linguagem mais abrangente e sensibilizadora, indo para além da normativa da língua formal.

Neste artigo, consideramos que nenhuma alteração no idioma deve ser forçada ou imposta ou esteja fora dos processos sociais naturais, apenas observamos aqui uma realidade e um debate preeminente, em que parte dos falantes e de organizações de ação mundial já adotam formas de expressão na linguagem verbal (escrita e oral) e por ser essa uma temática em que muitos estudiosos estão dedicando atenção em busca de propostas e soluções.

Comumente, essas variações são suscetíveis de investigação na língua e surgem das práticas sociais dos próprios falantes. São eles que ditam possíveis mudanças e novas normas, posteriormente passíveis de serem consolidadas e incluídas na língua ou acrescidas à linguagem destinada aos grupos que reclamam aceitação e inclusão social.

Numa perspectiva, em que não se pretende aqui questionar quaisquer normas gramaticais convencionais, consolidadas no estudo e uso da nossa língua portuguesa, recorre-se a este artigo como uma forma de olhar para a língua como algo vivo, em movimento. Ou ainda, observar a língua como uma prática social e comunicativa em que se atenta também à fala como gênero textual dos falantes/comunicadores e uma completa interação e dinâmica entre fala e escrita (Marcuschi, 2010).

Pretende-se mostrar elementos linguísticos que, sob várias estratégias discursivas, surgiram nos últimos anos, justificados pelo interesse de melhores formas de comunicação entre as pessoas, com as pessoas e sobre (a respeito) da realidade delas, no contexto da língua portuguesa.

O português e razões para uma linguagem neutra

O português é um idioma oficial em vários países: Portugal, Brasil, Timor-Leste, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Macau. Todos integram a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Segundo o Instituto Camões, ‘A língua portuguesa é uma das mais influentes do mundo, e tende ao crescimento de seus falantes nativos e dos que a usam como segunda língua’, afirma o último estudo do Instituto sobre a difusão do idioma português. Há afirmação internacional na cultura e na ciência; uma língua falada nos quatro cantos do mundo, porque está viva, tem uma longa história e é de uma família linguística de grande relevância: a românica’, ressalta em declarações à Agência Efe, Paulo Rebelo Gonçalves, da Porto Editora, uma das maiores editoras em português. Paulo considera o português uma língua que se renova todos os dias por todo o mundo’5.

A língua portuguesa foi também consagrada pela UNESCO desde novembro de 2019, por sua atuação crescente e é reconhecida como uma língua global de ciência, cultura, economia, diplomacia e paz . É a língua mais falada no hemisfério sul, sendo a quarta língua mais falada no mundo como língua materna, a seguir ao mandarim, inglês e espanhol (Observatório da língua portuguesa). É falada por mais de 260 milhões de pessoas nos cinco continentes, e em 2050 serão quase 400 milhões; em 2100 serão mais de 500 milhões, segundo estimativas das Nações Unidas, declarado pelo Instituto Camões.

Na economia, o português é língua oficial de 9 países membros da CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - e Macau. A expansão do português como língua de comunicação internacional é atribuída, sobretudo, ao crescimento econômico muito acentuado na última década do Brasil e de Angola. O Brasil é visto como um ambiente de maior projeção da língua portuguesa pelo crescimento econômico e pela pujança cultural.

O Instituto Camões, promotor internacional da língua portuguesa, sinaliza agora para os contextos da Ásia e África, como as mais novas forças emergentes em sua expansão. Na sua dimensão de crescimento, as projeções de organizações especialistas apontam que, até o final deste século, o continente africano terá o maior aumento do número de falantes, nomeadamente, em Angola e Moçambique.

Em números de 2022, a rede do ensino de Português no estrangeiro (EPE) está presente em 17 países, através de 953 professores, abrangendo 1.406 escolas e 68.542 alunos dos níveis de ensino pré-escolar, básico e secundário, entre outras novas iniciativas de expansão do ensino do português e da difusão da literatura em português6.

No que se refere à normativa gramatical da língua portuguesa ensinada nas escolas admite-se até agora que o gênero masculino abrange o feminino, quando no plural ou no sentido coletivo, como uma forma que toma a parte pelo todo e uma predomina sobre o outro.

Isso tem gerado inúmeras reflexões e análises, bem como debates por especialistas, entre educadores e linguistas. Entre os que estão a favor da adoção de novos elementos linguísticos numa linguagem neutra, o argumento se concentra na necessidade real e urgente de adotar uma linguagem verdadeiramente inclusiva, que contribua para valorizar e respeitar a diversidade de gênero, não privilegiando um determinado grupo em detrimento de outros (lutar contra situações de sexismo), e sim, gerando permanente reflexão sobre a diversidade de gêneros, já reconhecidos pela ciência.

Esse argumento tem sido combatido por alguns grupos de pais, educadores, e grupos políticos, que não reconhecem na ciência fundamentos para explicar os conceitos em torno da identidade de gênero, ou ainda, como não sendo este um tema pertinente ou suficiente para mudanças na língua. Argumentam que o masculino já é um gênero neutro desde os primórdios da língua e que num sistema natural de definição de gênero já atende à necessidade de ser genérico e neutro. Consideram essa a resposta suficiente quando se faz um combate à discriminação ou ao preconceito. Acusam a criação de uma “agenda de gênero” que, segundo os mais críticos, tem gerado pressão psicológica e pânico entre as crianças e os jovens, contrariando a missão de instituições que defendem os valores da família, os valores morais e religiosos tradicionais (Junqueira, 2017, 2018; Dall´orto, 2016). Há outros contra-argumentos a essas novas práticas, como por exemplo, a afirmação de que sendo uma língua neolatina como o espanhol, o português tem um natural sistema de gênero na sua origem normativa, sem fazer relação com qualquer intenção de desvalorização do gênero feminino ou de outros grupos identitários de gênero.

Para especialistas que têm se aprofundado na problemática, no campo da formação pessoal e profissional, a inclusão social precisa ser parte da dimensão pedagógica. Isso porque nos locais de ensino e formação, o bom desempenho escolar dos estudantes depende de modo fundamental da aceitação e do apoio às suas pessoas e suas identidades de gênero.

João Nemi Neto (2018), professor de português na Universidade de Columbia em Nova Iorque, comenta a necessidade de uma pedagogia e conteúdos adequados no ensino de línguas que envolva o reconhecimento de expressões de gênero sem a necessidade de aplicação de rótulos ou identidades fixas às pessoas. Alerta que é preciso maior comunicação e transparência no debate escolar sobre temas de gênero e sua diversidade para garantir o sucesso acadêmico dos estudantes.

Nas universidades, essa inclusão tem sido mais pedida hoje do que antes, num contexto de muitos desafios enfrentados para combater a discriminação, a marginalização e alguns casos de violência, fatores negativos que impedem o desenvolvimento acadêmico dos estudantes (Beattie et al., 2021).

Reconhecem­se novos gêneros, surgem novas práticas

Ativistas de dentro do movimento feminista e grupos de gênero diversos questionam o binarismo masculino-feminino como capaz de traduzir todos os indivíduos de uma sociedade, que inclua e reconheça pessoas trans não binárias, intersexo e as que não se identificam com os gêneros feminino e masculino. Suas questões pressionam a normativa da língua portuguesa quanto à adoção de um “gênero neutro”.

Mas a linguagem neutra (ou linguagem não binária) não tem sido propriamente uma obrigação imposta por movimentos da causa LGBTQI+7, abrange um campo de discussão muito maior e que vem crescendo nos últimos anos entre estudantes e especialistas, que propõe modificações na língua portuguesa para incluir pessoas trans, não binárias, intersexo e as que não se identificam com os gêneros feminino e masculino. A ideia mais generalizada agora é criar um gênero neutro para ser usado ao se referir a coletivos ou a diferentes identidades de gênero.

Desde o ano de 2008 que o Parlamento Europeu, em sua natureza e missão multilingue e legislativa, vem adotando orientações linguísticas, a fim de oferecer diretrizes sociais para se poder contar com uma linguagem neutra do ponto de vista do gênero. Foi a primeira organização internacional a adotar tais orientações e diretrizes através da iniciativa pioneira do Grupo de Alto Nível sobre a Igualdade de Género e a Diversidade (Dimitrios Papadimoulis, 2018). Essa iniciativa é fruto de uma estreita colaboração entre os serviços linguísticos e administrativos de várias entidades.

Em documento oficial, publicado em 2018, o Parlamento Europeu sugeriu adotar na redação dos atos legislativos uma linguagem verdadeiramente inclusiva do ponto de vista do género, em que se evite, tanto quanto possível, a utilização em particular do masculino genérico, sem deixar de respeitar o requisito de clareza. Vários órgãos legislativos dos Estados-Membros europeus já procederam à adoção dessas recomendações que, em geral, não fogem às normativas da língua. Por causa das necessidades reais que surgiram, em Portugal, por exemplo, já foram adotados atos legislativos escritos com este tipo de linguagem, sendo atos de fala que se referem, inclusivamente, à especificação do género («o/a»).

Em Portugal, o Ministério da Defesa, em 18 de setembro de 2020, produziu uma diretiva que recomenda o uso de linguagem neutra e inclusiva em certidões e registros civis. Em vez de “nascido em”, usar “data de nascimento”; em vez de “os políticos”, usar “a classe política”.

Muitas outras organizações e empresas, nos setores público e privado, têm seguido essa mesma diretriz, sob o propósito de estarem atualizadas e conseguirem promover e efetivar uma comunicação mais inclusiva, igualitária e eficaz junto às pessoas.

O Parlamento Europeu se diz mais empenhado que antes em defender a igualdade de género e lutar pela não discriminação com base no género, com o compromisso de utilizar uma linguagem sensível à dimensão de género (...), mas também assegura que pretende continuar a buscar alternativas verdadeiramente neutras e inclusivas, segundo Papadimoulis (2018).

Movimentos ativistas em prol das questões das comunidades especializadas no estudo e reconhecimento da identidade e gênero ajudaram a trazer a esse debate uma sequência de orientações novas variáveis como a questão da existência de novas identidades e gêneros, não contemplados numa sequência de orientação, em geral, destinadas a um contexto apenas binário.

Alguns manuais de redação da imprensa consideram pertinente essa questão e sugerem que jornalistas e outros profissionais da comunicação e da política perguntem antes às pessoas como querem que sejam referidas e identificadas, tendo atenção a termos de tratamento que respeitem e dêem mais sentido às suas experiências pessoais e profissionais.

No Brasil, por exemplo, os manuais de redação de jornais de grande circulação da imprensa mainstream brasileira (Folha de São Paulo, O Globo, Editora Abril, Senado Federal) estão servindo para incluir as novas orientações (seguidas por outros países) na ação de apuração das informações e na produção de conteúdos dos seus repórteres, alertando para o uso de uma linguagem não sexista.

Muitas das orientações foram compiladas inicialmente no Guia para Jornalistas sobre Gênero, Raça e Etnia, da Federação Nacional dos Jornalistas do Brasil, construído junto com a ONU Mulheres, lançado em 2011. Esses manuais de redação jornalística são guias historicamente relevantes para a atividade jornalística no Brasil. São igualmente referência credível para professoras e professores no centros de ensino do Jornalismo nesse país. São reconhecidos como modelos que tendem a atualizar-se e acompanhar as transformações sociais e linguísticas no maior país de língua portuguesa.

A imprensa brasileira, representativa da comunicação mainstream em língua portuguesa, lançou um dos princípios fundamentais para a adoção de uma perspectiva de gênero, mas também de etnia e cultura, na prática jornalística: A promoção da igualdade de tratamento de homens e mulheres, de culturas, em que o combate ao racismo e ao etnocentrismo estejam inclusos na comunicação social. Esse é um reconhecimento de que a mídia - na qual a atividade jornalística se inclui - tem uma grande responsabilidade nessa promoção porque tem o poder de influenciar comportamentos, opiniões, definir pautas para o debate público e atuar como espaço privilegiado para a comunicação e a intervenção pública (Guia para Jornalistas sobre Género, Raça e Etnia, 2011).

Entre as novas práticas sugeridas pela ONU e Fenaj para as redações jornalísticas, destacam-se o tratamento equitativo aos homens e às mulheres em todas as pautas e discursos (economia, política, cultura, sociedade, etc). Seguem abaixo algumas dessas orientações aos jornalistas e à toda a redação:

“Faça a opção pela diversidade de opiniões numa perspectiva de gênero, raça e etnia. Lembre-se que as mulheres são fontes igualmente qualificadas para atuar, sobretudo, nos espaços tradicionalmente masculinos;

Ao produzir notícias sobre economia, política ou tecnologia - espaços tradicionalmente dominados pelos homens -, inclua as mulheres na perspectiva de gênero, raça e etnia como fontes especializadas nessas áreas. Ao selecionar imagens, fotos ou ilustrações, mostre mulheres negras e indígenas em posições positivas de poder e de destaque;

Cuidado para não dar ênfase diferenciada aos erros ou às experiências fracassadas vividas pelas mulheres, em especial as mulheres negras e indígenas, nas funções que desempenham e, ao mesmo tempo, minimizar esses erros ou experiências de fracasso quando são os homens que enfrentam situações semelhantes;

Ao noticiar sobre o resultado negativo de um ato realizado por uma mulher, sempre que possível, inclua a opinião de outras mulheres sobre o caso. Comente sobre as experiências de fracasso já vividas por homens e mulheres em situações semelhantes;

Sempre que possível, aproveite o gancho dos acontecimentos no dia a dia e aprofunde o debate, utilizando a perspectiva de gênero, raça e etnia.

Por exemplo: a notícia sobre o crescimento ou declínio de vagas de emprego em um (ou mais) setor pode gerar uma reportagem contextualizada sobre o acesso das mulheres, em especial das mulheres negras e indígenas, a este campo e entrevistas com especialistas femininas sobre as condições de desigualdade que ainda precisam ser superadas para promover a equidade no mercado de trabalho.”

Fonte: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/01/guia_jornalistas.pdf

Para uma linguagem neutra com cunho inclusivo, as sugestões do Guia são evitar usar o gênero masculino para generalizar as situações. O Guia sugere ainda o uso de genéricos reais como idade, grupos sociais, a exemplo de:

Sugestões Sim Não
Evite usar o gênero masculino para generalizar as situações. Nesses casos, prefira os genéricos reais (idade, grupos sociais, etc.). Os povos indígenas denunciaram violações... Os indígenas denunciaram violações...
Prefira as duas formas - o feminino e o masculino - para destacar a participação das mulheres. Trabalhadores e trabalhadoras reivindicam um aumento de ... Os trabalhadores reivindicam um aumento de...
Se possível, feminilize alguns cargos e profissões. A Presidenta Dilma Rousseff declarou que... A Presidente Dilma Rousseff declarou que...
Evite o uso de adjetivos que reforcem os estereótipos sobre as mulheres. Em Brasília, as mulheres adotam uma política de contenção de despesas... Em Brasília, está instalada a política de salto alto...
Evite o uso de verbos ou adjetivos que reforcem os estereótipos sobre os grupos aos quais as mulheres pertencem tais como negro/a (no sentido negativo), denegrir, indolentes, etc. O grave problema da morte materna tem revelado que... A face negra da morte materna tem revelado que...

Fonte com adaptação e tradução livre: “Como dices? Guía para una comunicación con equidad de género”, Mugarik Gabe ONG de Cooperación al Desarrollo, 2010)

Para reconhecer todos, indiscriminadamente, muitos grupos ativistas defenderam inicialmente propostas ortográficas como trocar “o” e “a” que em português são vogais-morfemas e que definem o gênero das palavras, para “x” ou “@”. Por exemplo, “todxs” em vez de “todos”. A frase “você é maravilhoso” ficaria “você é maravilhosx” ou “você é maravilhos@”. O uso do sinal gráfico arroba (@) no lugar de -o, -a ou mesmo -e tem sido explorado por vezes como “@s trabalhador@s”.

No mundo lusófono (de língua portuguesa), o uso do arroba (@) cresce entre o meio académico e publicitário.

O uso do “x” ainda é comum em algumas iniciativas de inclusão de grupos LGTBQIs. Entretanto, o mais adequado e adaptável tem sido o uso da vogal “e” no final de palavras como adjetivos. Para responder a esta necessidade, foram adotados novos pronomes e substituídas vogais a exemplo de “o” e “a” por “e”, como em “todes”. No caso do uso de Todxs e Todes, estudos da Universidade de Washington8 indicam que esses e outros usos diminuem preconceitos entre as pessoas pois traz uma linguagem que vai além do binarismo homem/mulher.

Há terminações e sufixos em x que também vêm sendo adotados para neutralizar palavras, como em todxs em vez de “todos e todas”, meninxs para “meninos e meninas”, no pronome elx em vez de ele e ela9, e no adjetivo latinx em vez de latino ou latina.

Para a gramática, foram ainda desenvolvidas sugestões de alterações como no caso dos recém-criados pronomes neutros o sistema elu , no português, que estabelece “neopronomes” pessoais como “elu”, “delu”, “nelu”, “aquelu” para referir, por exemplo, pessoas não-binárias.

Historicamente, a barra (/) foi o símbolo mais utilizado com essa função, como em candidato/a. Em exemplos como esse, no entanto, seu uso mantém a marca de separação entre os dois gêneros. Ela é recomendável, portanto, apenas quando não é possível fazer a síntese de letras: “o/a estudante”; ou quando um dos dois vocábulos é formado não por substituição de uma letra, mas por seu acréscimo/supressão: “o vencedor será escolhido pelo juiz”, logo, deveria ser grafado, de forma neutra, “o/a vencedor/a será escolhido/a pelo/a juiz/a”. Porém, na forma clássica seria com parênteses: “os(as) senhores(as) alunos(as)”.

Há ainda o símbolo æ 10, proposto em Português com Inclusão de Gênero (PCIG) em substituição a “e/a”. A proposta é igualmente válida para o espanhol. Assim, “escritoras e escritores” ou “escritores/as” deveria ser substituído por “escritoræs”. O sufixo -ae também foi proposto, bem como elae e elæ.

Há uma outra proposta de difusão do chamado “arroba minúsculo”, por razões estéticas e a fim de diminuir a impressão negativa que um @ em tamanho natural no interior de palavras costuma causar aos leitores. Como as fontes gráficas padrões não trazem um arroba minúsculo, a sugestão feita pelo PCIG é a de manualmente escolher uma fonte menor para o arroba (a sugestão é de algo entre 25% e 40% menor que a fonte das demais letras), como por exemplo amig@s, senhor@s.

Porém, muitas contestações se levantaram acerca dessas propostas por servirem apenas e exclusivamente para a linguagem escrita e impossível de se pronunciar oralmente, podendo confundir o aprendizado e a leitura de pessoas com dislexia ou que dependam de alfabetos formados em adaptação à compreensão como no caso de pessoas com deficiências visuais.

Para contribuir, Rosa Laura, ativista brasileira da causa trans, não binária, gravou um vídeo11 em seu Instagram explicando como utilizar a linguagem neutra no dia-a-dia. O vídeo viralizou nas redes sociais, gerando grande apoio, mas também milhares de críticas, por aqueles que consideraram a proposta um capricho do ativismo trans.

Muitas propostas têm encontrado fortes barreiras, nomeadamente das academias de Letras, de linguistas e de educadores.

Andressa Muniz (2018)12 descreve uma discussão importante que já vem acontecendo na França, através do movimento “Écriture Inclusive” (“Escrita Inclusiva”, em português) que tem defendido que: a língua francesa é intrinsecamente machista e que, por isso, esse movimento considera importante reivindicar a adoção de gênero neutro como uma tentativa de combater preconceitos. Para esse grupo, a mudança no uso da língua francesa seria um modo de mudar as mentalidades das pessoas no país, que eles consideram muito machistas. Sobre esse caso, a Académie Française, equivalente à Academia de Letras em França, contra-argumentou que uma escrita feita desta forma representa um risco mortal para a língua francesa.

Andressa Muniz acredita que tentativas de minimizar ou eliminar os preconceitos acabam por se tornar “um modo questionável de mudar uma língua›› por seu caráter não muito funcional e sem muito apoio científico. Lembra que no latim as três designações inicialmente existentes já eram: feminina, masculina e neutra.

Para Monaretto e Pires (2012)13, as chamadas formas neutras de adjetivos e substantivos no latim foram absorvidas com o tempo por palavras de gênero masculino. “A única marcação de gênero no português é o feminino. O neutro estaria, portanto, junto ao masculino.”

Sirio Possenti, professor da Unicamp, cita que a única marcação de gênero é o feminino e que os substantivos com marca de gênero, em português, abrangem a todos, dentro de uma regra de “masculino genérico”, que está nas origens da língua portuguesa.

Para Monique Amaral de Freitas, doutoranda em Linguística pela USP (Universidade de São Paulo), apresentadora do podcast “Linguística Vulgar”14 e colunista no blog “Cientistas Feministas”15, todo este debate está longe de ser esgotado, mas se revela bastante relevante. Para a linguista, há uma relação de duas vias, mão dupla, entre língua e sociedade. A língua é uma ação sobre o mundo e gera consequências diversas e nos leva a pensar sobre outras questões, comenta. No que se refere a promover a questão da inclusão, Jonas Maria, produtor de conteúdo LGBTQI+ e graduado em Letras. acredita que a implementação de uma linguagem neutra seria uma forma inclusiva funcional para grupos marginalizados porque quando se fala em linguagem inclusiva, está a se falar de relações de poder, gênero, marginalidade e também da possibilidade de promover uma mudança de perspectiva.

O uso ou a negação do masculino genérico pode ser político, sempre dependendo do contexto e do objetivo do interlocutor, argumenta Vivian Cintra, Professora de Língua Portuguesa, Coordenadora Pedagógica e Mestre em Linguística pela USP (Universidade de São Paulo). Vivian lembra que a língua recebe fortes influências da cultura e da época vivida. “Em uma sociedade patriarcal, fazer questão de utilizar o feminino para dar visibilidade, discursivamente, a mulheres, configura uma forma de resistência para elas. Talvez, para as pessoas que têm a preocupação de usar formas mais neutras para se expressar, manter-se empregando o masculino genérico seja uma postura de aceitação da dominação masculina na nossa sociedade ou da lógica binária segundo a qual homens só podem se expressar no masculino, e mulheres, no feminino16.

No ambiente administrativo e político, por exemplo, houve um processo da feminização na língua portuguesa, quando se passou a adotar termos femininos (a exemplo de o/a presidente/a como O Presidente e A Presidenta, quando, no Brasil, por ocasião da eleição e posse de Dilma Rousseff, a primeira mulher na Presidência nesse país, esse tornou-se um fato histórico que marcou esse país por duas eleições, em 2010 e em 2014).

Outros recursos criados para uma linguagem neutra

As práticas linguísticas tendem a convergir com as práticas sociais dos falantes de uma língua. No caso da língua portuguesa, uma entre as línguas mais utilizadas nas redes sociais e na web do mundo inteiro, segundo métricas Socialbakers17, apresentam-se a seguir variações que têm surgido nas dinâmicas de comunicação dos falantes de português.

Na fala e na escrita dos povos lusófonos, impulsionadas por contextos sociais vividos e seus significados culturais, são variações que têm adquirido destaque pelo uso já consolidado e permanente de organizações internacionais e pelos media de comunicação e redes de interação18 nesses países, e que têm exigido atenção nos estudos e debates de especialistas da língua e da comunicação.

Recurso às formas duplas: No caso das línguas românicas, como é o português, a preferência pelo emprego de formas duplas resulta das dificuldades de recorrer sistematicamente à neutralização ou abstracção do género gramatical devido à alta incidência de termos com marcas morfológicas de gênero e à concordância em género (Abranches, 2009). Um dos primeiros passos para se ter uma linguagem mais inclusiva de gênero foi a redução do uso do masculino como termo genérico e a sua substituição por formas consideradas como não discriminatórias ou que respeitassem o direito de homens e mulheres à representação linguística da sua identidade. Tal solução implicou no uso de formas masculinas para designar homens, de formas femininas para designar mulheres, e das duas formas, em separado, para designar homens e mulheres. Este recurso foi adotado para atender e definir o gênero respectivo à pessoa a que se destina a mensagem ou que recebe a mensagem, passou-se a utilizar variáveis duplas, para masculino e feminino.

A utilização de formas duplas foi considerada como recurso mais adequado e eficaz relativamente aos propósitos de visibilidade e simetria dos dois gêneros masculino e feminino, adotado como recurso mais adequado aos propósitos iniciais e recomendado19 para se definir uma linguagem neutra inclusiva, pois evidenciava uma simetria de gênero. Inicialmente este foi considerado um recurso que se refere de forma explícita a ambos os sexos, de forma igual e paralela, tornando visível na linguagem o gênero invisível, em maior proporção, as mulheres, através da marcação sistemática e simétrica do gênero gramatical como coerente e legítima para uma linguagem neutra inclusiva. Assim, por exemplo, foram adotadas práticas como falar e escrever: avó e avô, pai e mãe, filhas e/ou filhos, enteados e/ou enteadas; em vez do uso exclusivo do genérico (para plural) anteriormente usado: avós, pais, filhos, enteados.

Recurso a barras e parênteses: O uso de barras e parênteses tem sido bastante recorrente para definir os dois gêneros convencionais da língua, antes de usar substantivos invariáveis, a exemplo de o/a paciente, o/a chefe, o/a estudante, o/a presidente, o/a cliente. Noutra situação, tem sido utilizada para acrescentar a terminação feminina à masculina a exemplo de o/a trabalhador/a, o/a funcionário/a, a/o cidadã/ão, a/o médica/o.

No caso das formas de gênero, no singular ou no plural, órgãos da administração pública aconselham o uso da barra e dos parêntesis.

No caso de formulários informatizados, instituições públicas sugerem a inclusão de opções de feminino ou masculino. (Abranches, 2009).

No Brasil, o governo federal e muitos órgãos públicos, bem como a imprensa nacional, usou por muitas vezes a forma “Presidenta” ao se referir à Dilma Rousseff, por ocasião do seu governo e por preferência explícita de Dilma.

Substituição por genéricos, neutralização: A opção por usar termos coletivos ou termos abstratos foi uma solução inicial para designar ambos os gêneros, sem fazer referência ao gênero masculino e feminino. Essa opção tem sido recorrente em documentos formais públicos, mas também adotados por empresas de modo geral, a exemplo de: “A pessoa que solicita…”, “As pessoas interessa­ das…”, “O pessoal da empresa…”, “A diretoria da empresa….” ou prono­ mes indefinidos como: Alguém, Alguma pessoa, Quem…

A neutralização ou abstração é um recurso que revela algum resultado efetivo em formas de tratamento, mas para outros grupos não funciona a contento, por não incluir todas as especificidades de gênero e não ser específica e portanto, ser mais inclusiva.

Conclusões

Toda língua, assim como a própria comunicação, é algo vivo e estreitamente ligado à vida em sociedade e, portanto, às práticas sociais. Por essa razão, tem sido um desafio para as organizações e estudiosos adaptarem-se às novas necessidades sociais e culturais.

Na língua portuguesa, expressões que usam letras, símbolos e números, bem como sufixos específicos, estão criando novas chances oportunidades de uso da língua, pelo menos, um uso não muito formal, mas que pode vir a ser muito eficiente porque potencializa a comunicação para fins políticos, culturais ou sociais. Esse é um contexto importante a ser considerado e analisado ao máximo pelos estudiosos atuais quando o Português é um idioma comum entre muitos povos de países em diferentes continentes: África, América (do Sul), Europa, Ásia e Oceania. Possui, portanto, um caráter multilíngue, pois convive e interage há séculos com outras línguas locais ou nativas desses povos, sendo a única língua em comum nesses cinco continentes.

O português tem sido um idioma entre os mais procurados por novos aprendizes e mais falados, sendo do conhecimento de dezenas de povos estrangeiros, que dele necessitam como recurso comunicacional em contextos sociais, culturais, profissionais, para fins comerciais ou de negócios.

Há também uma imprensa abrangente e poderosa que interpreta e reporta ao mundo a imagem da realidade de muitos dos países de língua portuguesa e que usa uma linguagem neutra, respeitando as diferentes variantes da língua, por considerar ser necessário para a democracia nesses países, produzindo uma comunicação inclusiva.

Na comunicação em português, os mecanismos das mudanças linguísticas têm sido estudados desde o século XIX, reconhecendo a língua em seu poder de comunicação como instrumento não homogéneo e não estático de comunicação e ação. Desde o século XIX, estudos apontam que a lingua é um caminho a ser pesquisado como meio de entender e interagir em sociedade, que nos ajuda a “organizar o pensamento e a construir a nossa realidade”, segundo a socióloga e investigadora Mara Pieri. A socióloga destaca ainda que há estudos que mostram as vantagens da linguagem inclusiva: uma investigação publicada em 2015 revela que a apresentação de profissões utilizando a forma masculina e feminina de nomes de empregos estereotipadamente masculinos (por exemplo, engenheiro e engenheira) a crianças do ensino primário contribuiu fortemente “para que as crianças reportassem níveis superiores de auto-eficácia relativa a essas profissões”.

Pela relevância do tema na ciência e para obter determinados objetivos como de inclusão de grupos e pessoas, consideramos fundamental a continuidade da pesquisa nesse campo e a criação de novas soluções para a linguagem verbal, a fim de assegurar a igualdade.

Referências

Abranches, Graça (2009), Guia para uma linguagem promotora da igualdade entre mulheres e homens na administração pública. Lisboa. Comissão para a Igualdade de Género, cadernos Trilhos da igualdade. [ Links ]

Balsalobre, Sabrina Rodrigues Garcia (2017). Expressões de poder e de solidariedade em Moçambique e em Angola: observando a inter-relação entre gênero e formas de tratamento. África em Língua Portuguesa. Variação no português africano e expressões literárias. Revista Internacional em Língua Portuguesa (RILP). Publicação AULP - Associação das Universidades de Língua Portuguesa. [ Links ]

Bordenave, Juan E. Díaz (2017). O que é comunicação? Brasiliense. Castells, Manuel (2005). A sociedade em rede. Disponível em: https://www.academia.edu/download/35720733/05__A_Sociedade_em_Rede.pdfLinks ]

Corrêa, Manoel Luiz Gonçalves (2003). Linguagem & comunicação social: visões da lingüística moderna. Parábola. [ Links ]

Dall’orto, Giovanni. (2016) I turbamenti del giovane Gender. Hermes - Journal of Communication, Lecce, n. 7, pp. 33-60, 2016 [ Links ]

Diversity BBox (2020) - consultoria de diversidade. Pronomes neutros ganham espaço nas ruas, redes sociais e até em empresas. Disponível em: Disponível em: https://diversitybbox.com/pt/pronomes-neutros-ganham-espaco-nas-ruas-redes-sociaise-ate-em-empresas/ . Acesso em 24 de outubro de 2020. [ Links ]

FENAJ e ONU Mulheres (2011), Gênero, Raça e Etnia. Guia para jornalistas 2011) [ Links ]

FSN Covas, LM Bergamini (2017). Análise crítica da linguagem neutra como instrumento de reconhecimento de direitos das pessoas LGBTQIA+ Brazilian Journal of Development, scholar. archive.orgLinks ]

Gorisch, Patricia. O Reconhecimento dos Direitos Humanos LGBT: de Stonewall à ONU. Curitiba, Editora e Livraria Appris, 2014, GUIA de linguagem inclusiva. Todxs nós. HBO. 2020 . Disponível em: Disponível em: https://pji.portaldosjornalistas.com.br/wp-content/uploads/2020/05/GuiaTodxsNos.pdf . Acesso em 24 de outubro de 2020. [ Links ]

Junqueira, Rogério Diniz. A invenção da “ideologia de gênero”: a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero. Revista Psicologia Política, São Paulo, 2018. (no prelo). [ Links ]

Junqueira, Rogério Diniz. “Ideologia de gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária - ou: como a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural”. In: RIBEIRO, Paula R. Costa; MAGALHÃES, Joanalira C. (Org.). Debates contemporâneos sobre Educação para a sexualidade. Rio Grande: Ed. da FURG, 2017. p. 25-52. [ Links ]

Koch, Ingedore Grunfeld Villaça. (1995). A Inter-ação pela Linguagem. Editora Contexto Marcuschi, Luiz Antônio (2010). Da Fala para a Escrita: Atividades de Retextualização. São Paulo: Cortez, 2001. [ Links ]

Mugarik Gabe ONG de Cooperación al Desarrollo, 2010), “Como dices? Guía para una comunicación con equidad de género”. [ Links ]

Parent, Mike C.; DeBlaere, Cirleen; Moradi, Bonnie (24 de abril de 2013). «Approaches to Research on Intersectionality: Perspectives on Gender, LGBT, and Racial/Ethnic Identities». Sex Roles (11-12): 639-645. ISSN 0360-0025. doi:10.1007/s11199-013-0283-2. [ Links ]

Viana, C e Bortolini, A. (2020). Discurso antigênero e agendas feministas e LGBT nos planos estaduais de educação: tensões e disputas Discurso antigênero e agendas feministas e LGBT nos planos estaduais de educação: tensões e disputas. [ Links ]

Notas

1)“Gênero” como uma categoria de análise relacional que permite observar as relações sociais em suas mais variadas dimensões, respeitando os múltiplos modos de ser masculino e feminino fora do determinismo de uma divisão biológica e única entre os sexos. (Gênero, Raça e Etnia. Guia para jornalistas. FENAJ e ONU Mulheres, 2011)

2)LGBT é uma sigla que significa Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgênero. A sigla tornou-se popular como uma autodesignação, e esta, bem como algumas de suas variantes comuns, tende a funcionar como um termo abrangente para identidade de gênero (Parent; DeBlaere; Moradi, 2013). Há muitas variantes em siglas diversas, a exemplo de LGBTQ . O sinal “+” tem sido usado por vezes para adicionar qualquer outra minoria relacionada que não tenha sido representada pelas outras iniciais e venha a ser reconhecida.

3). “Queer” significa guarda-chuva para as chamadas minorias ou pessoas que estão em situação de questionamento da sua orientação ou identidade de gênero e “arco-íris” são utilizados mas não foram amplamente adotados pela maioria. “Arco-íris” tem conotações que recordam a natureza das comunidades hippies, em suas tendências de mudança constante e de comportamentos de contracultura. “Ally” significa aliados ou simpatizantes e apoiantes à causa.

4). A linguagem neutra emergiu de dentro das conversações de movimentos ativistas de defesa da identidade de género, transgeneridade e não-binaridade, sendo requerido o seu uso por diversas entidades e representantes dos povos de Língua Portuguesa, a exemplo dos media jornalísticos e de comunicação, de organizações públicas e privadas, das universidades e escolas, bem como da Unesco, da ONU e do Parlamento Europeu. Foram criadas várias estratégias discursivas que sugerem alterar a forma de comunicar com e sobre as pessoas. O Parlamento Europeu foi a primeira organização internacional a adotar tais orientações e diretrizes por considerar a importância de uma linguagem que se refere a pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros convencionais e que sejam incluídas, ou evitar que apenas um gênero seja um elemento predominante quando se encontra no plural.

5). https://www.portoeditora.pt/sites/assets/Comunicacao_Imagem/PG/PDFs/NIDELPVF.pdf

6). https://www.instituto-camoes.pt/sobre/comunicacao/noticias/dia-mundial-da-lingua-portuguesa-2022

7). https://tab.uol.com.br/edicao/lgbt/

8). https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2019/08/15/todxs-e-todes-estudos-indicam-que-a-lingua-neutra-diminui-preconceitos.htm

9)Rodrigues, Sérgio (29 de abril de 2015). «Escrevemos ‹alunos(as)› ou ‹alunos/as›? Parênteses ou barra? | Sobre Palavras». VEJA. Consultado em 9 de dezembro de 2018 «Linguagem Neutra de gênero: o que é e como aplicar». Comunidade Rock Content. 14 de janeiro de 2019. Consultado em 8 de junho de 2020

10)Æ - Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

11)@rosalaura_ on Instagram: “um vídeo sobre como usar a linguagem neutra corretamente. cada pessoa tem um pronome de preferência e sempre devemos respeitar a forma que…”

12)Muniz, Andressa (2 de janeiro de 2018). «Elx, el@s, todxs? Na língua portuguesa, sem gênero neutro: apenas masculino e feminino». Gazeta do Povo. Consultado em 20 de agosto de 2022

13)http://www.nehmaat.uff.br/revista/2012-2/artigo09-2012-2.pdf

14)https://open.spotify.com/show/7uFMjEdUI3v9ncKs14G7Sm

15)https://cientistasfeministas.wordpress.com/

16)https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/10/07/linguagem-neutra-proposta-de-inclusao-esbarra-em-questoes-linguisticas.htm

17)Ferramenta de métricas de redes sociais que serve para avaliar comportamentos de consumo dos usuários. Segundo estatísticas da página Socialbakers, a língua portuguesa é o terceiro idioma mais utilizado na rede social Facebook, na Internet, depois do espanhol, com utilizadores sobretudo oriundos do Brasil. O inglês continua a ser a língua mais usada no Facebook, mas o português tem uma das maiores subidas. Disponível em: https://emplifi.io/resources/blog/top-10-fastest-growing-facebook-languages?utm_source=socialbakers.com)

18)O idioma é reconhecido pela Unesco como um dos mais falados no mundo, quinto mais falado e escrito nas redes sociais.

19)Considerações feitas a partir do Guia para uma Linguagem Promotora da Igualdade entre Mulheres e Homens na Administração Pública (2009), publicação da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, na Presidência do Conselho de Ministros, de Portugal, disponível no link https://www.cig.gov.pt/wp-content/ uploads/2015/11/Guia_ling_mulhe_homens_Admin_Publica.pdf

Recebido: 08 de Setembro de 2022; Aceito: 09 de Dezembro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons