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Revista Internacional em Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 2182-4452versão On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.43  Lisboa jun. 2023  Epub 22-Maio-2023

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2023.43/pp.119-138 

Artigo Original

Campanha Eleitoral em Moçambique: A cobertura jornalística da STV

Arcénio Olíndio Luís Luabo1a 

a Universidade Pungue


Resumo

Examinamos a cobertura Jornalística da campanha eleitoral de 2019 em Moçambique, a partir do telejornalismo da Soico Televisão (STV). São analisados, quantitativamente e qualitativamente, 15 vídeos do Diário de Campanha, no Jornal da STV, correspondente a 30% da programação no período de 45 dias. Pretende-se, com isto, compreender o tempo reservado à cobertura dos quatro candidatos a Presidente da República de Moçambique e dos partidos que os apoiaram, assim como avaliar a cobertura, considerando os princípios de igualdade e justiça, como advoga a lei eleitoral moçambicana. A análise constatou que esses princípios não são respeitados. Cruzados os dados qualitativos e quantitativos, com os resultados das eleições, fica evidente que aqueles com maior tempo de cobertura midiática, venceram as eleições. Sugere-se que se deve supervisionar o processo de cobertura mediática de forma a cumprir as regras estabelecidas para os períodos eleitorais em Moçambique.

Palavras-chave: Mídia audiovisual; Cobertura eleitoral; Moçambique

Abstract

We examined the journalistic coverage of the 2019 electoral campaign in Mozambique, based on the television journalism of Soico Televisão (STV). 15 videos from Diário de Campanha, in Jornal da STV, are analyzed quantitatively and qualitatively, corresponding to 30% of the programming in the period of 45 days. It is intended, with this, to understand the time reserved for the coverage of the four candidates for President of the Republic of Mozambique and the parties that supported them, as well as to evaluate the coverage, considering the principles of equality and justice, as advocated by the Mozambican electoral law. The analysis found that these principles are not respected. Crossing qualitative and quantitative data with the results of the elections, it is evident that those with the longest media coverage won the elections. It is suggested that the process of media coverage should be supervised in order to comply with the rules established for electoral periods in Mozambique.

Keywords Audiovisual media; Electoral coverage; Mozambique

Introdução

Este artigo trata da cobertura midiática da campanha eleitoral realizada entre 31 de agosto e 12 de outubro de 2019 em Moçambique, com foco de análise no Telejornal da STV (SOICO Televisão). O artigo avalia como a STV2 cobriu a campanha eleitoral presidencial e legislativa dos quatro partidos que apoiaram os quatro candidatos ao cargo de Presidente da República e os candidatos a deputados da Assembleia da República. Também pretende verificar se todos os concorrentes tiveram uma cobertura midiática dentro do princípio de igualdade, tal como as leis moçambicanas definem para a cobertura de campanha eleitoral, pelos órgãos de comunicação social. O artigo também pretende aferir se houve estratégias usadas por repórteres para beneficiar um ou mais candidatos em detrimento de outros concorrentes na cobertura das eleições. Além do Presidente e de deputados para a Assembleia da República, as eleições também escolheram, pela primeira vez, governadores provinciais e membros para as assembleias provinciais nas 11 províncias de Moçambique.

Para o estudo, partimos com os pressupostos de que os meios de comunicação são elementos centrais no processo político das democracias, ao promoverem debates e estimularem o diálogo. Isso inclui procedimentos importantes como “a síncrise e a anácrise, tal como defende Machado (2000). Para (op. cit.), o primeiro é a confrontação de dois ou mais pontos de vista diferentes sobre um mesmo assunto. O segundo é o método de provocar a palavra do interlocutor, forçando-o a se posicionar e externar claramente a sua opinião (MACHADO, 2000, p. 73). Para Gonçalves (2005), tais procedimentos “estabelecem a ponte”, ou seja, funcionam como “mediadores da relação entre os agentes políticos e os cidadãos” (p. 41). Assim, os mídia têm dupla função: se, por um lado “funcionam como transmissores de comunicações políticas com origem em terceiros (cidadãos/eleitores ou agentes/organizações”, por outro, assumem, eles próprios, “o papel de emissores de mensagens políticas construídas pelos jornalistas ou pelos colaboradores deste meio” (p. 42). Neste artigo, concordamos com a ideia de que “tudo o que for exterior ao espaço midiático acaba por ser marginalizado ou, mesmo, desvalorizado” (CARVALHEIRO, 2005, p.185). Ou por outra, como diz Castells (1997, p. 312), “o que não é conhecido, não existe. O mesmo que dizer, o que não é noticiado não é (re) conhecido”. Os agentes políticos se sentem obrigados a compreender a linguagem da comunicação para acederem à notícia que é, no fundo, o seu limiar de visibilidade. Por outro lado, os órgãos de comunicação social intervêm para promover a participação plena, que, segundo Carpentier (2012), são formas de participação maximalistas combatendo as formas minimalistas3. Estas foram algumas das premissas verificadas nesta análise da cobertura da campanha eleitoral de 2019 em Moçambique feita pela STV.

A estrutura do artigo se organiza da seguinte forma: a introdução, com considerações gerais sobre o tema, objetivos e âmbito da pesquisa; os pressupostos teóricos de estudiosos do campo para embasar as análises dos vídeos, considerando as leis moçambicanas que regulam a cobertura da campanha eleitoral e o tratamento dispensado a partidos e candidatos; e, finalmente, as conclusões que resultaram da análise dos vídeos do Jornal da Noite da STV, em especial ao bloco Diário de Campanha. A metodologia da análise observou o esquema a seguir. (vide esquema 1)

Fonte: Quadro elaborado pelos autores, a partir de modelo de Becker (2019).

Esquema 1 Análise Televisual 

À metodologia acima, foi agregada a percepção de Gomes (2011), que identifica no estudo do telejornalismo alguns pressupostos:

A análise de programas jornalísticos televisivos, como parece óbvio, deve considerar os elementos que configuram os dispositivos propriamente semióticos da TV, os elementos da linguagem televisiva - os recursos de filmagem, edição e montagem de imagem e de som empregados pelos programas jornalísticos - e os elementos propriamente verbais (GOMES, 2011, p. 37).

Prosseguindo com Gomes (2011), observam-se os significados e os deslocamentos dos significados que definem o jornalismo como instituição nos produtos do telejornalismo da STV durante a campanha eleitoral de 2019 em Moçambique: objetividade, imparcialidade, interesse público, responsabilidade social, liberdade de expressão, atualidade e mídia como quarto poder. A análise dos conceitos de estrutura de sentimento, gênero televisivo e modos de endereçamento, foram aqui tomados como conceitos metodológicos, instrumentos para trabalhar o material empírico resultante da coleta de informação sobre a cobertura midiática da TV no período de campanha eleitoral.

No que tange ao material que é objeto deste artigo, foram analisados 15 vídeos, em 15 edições do Jornal da Noite da STV. Os vídeos constituem uma amostra de 45 dias de campanha, correspondente a 30% da programação do canal nesse período, considerada representativa para o estudo proposto.

Foram analisados somente os blocos de vídeos do Diário da Campanha, espaço reservado pela emissora para a campanha eleitoral no seu principal telejornal. Os dados quantitativos estão representados em tabelas e gráficos e os qualitativos em modo descritivo. Importante registrar que algumas descrições também foram agregadas aos dados quantitativos, tal como sugere o esquema metodológico da análise televisual. Assim, a interpretação do material empírico tem origem no cruzamento de dados qualitativos e quantitativos.

Para fins deste artigo, não se analisa o tempo de antena (duração em minutos reservados na programação), mas o espaço noticioso da STV dedicado a reportagens sobre a campanha eleitoral, designado Diário da Campanha. De acordo com a lei moçambicana, o tempo de antena é reservado aos órgãos de comunicação social públicos. A STV é emissora privada, mas a lei obriga que, na campanha eleitoral, os órgãos de comunicação social públicos e privados façam suas respectivas coberturas obedecendo ao princípio de igualdade, como se pode ver na Deliberação n.º 60/CNE/2014, na sua alínea c:

Todos os candidatos, Partidos, Coligações de Partidos Políticos e Grupos de Cidadãos Eleitores Proponentes têm, em igualdade de circunstâncias, o direito a tempos de antena nos serviços públicos de radiodifusão sonora e visual, de acordo com os critérios fixados na lei, no Regulamento do gozo do direito de Tempo de Antena e no Regulamento do Sorteio da Antena, aprovado pela Comissão Nacional de Eleições em instrumento adequado (DELIBERAÇÃO n.º 60, 2014).

A Lei nº 2/2019, 31 de maio da Assembleia da República de Moçambique também traz várias orientações sobre a cobertura dos meios de comunicação durante o processo eleitoral. No seu artigo 14, orienta que “o serviço público de radiodifusão sonora e visual poderão facilitar aos titulares de direito de antena, em condições de absoluta igualdade de tratamento e oportunidade, os meios técnicos de gravação indispensáveis à realização dos respectivos programas”. O artigo 5 (sobre liberdade e igualdade) determina que “o processo eleitoral pressupõe liberdade de propaganda política e igualdade de candidaturas”, enquanto o artigo 21 (sobre igualdades de oportunidades das candidaturas) dispõe que “os candidatos, partidos políticos e coligações de partidos políticos têm direito a igual tratamento por parte das entidades públicas e privadas a fim de, livremente e nas melhores condições, realizarem a sua campanha eleitoral” (MOÇAMBIQUE, LEI nº 2/2019, de 31 de maio). A análise dos vídeos da STV tem como esses pressupostos legais, assinalando em especial o princípio de igualdade e de oportunidade durante a campanha.

A cobertura midiática da campanha eleitoral das eleições em Moçambique Moçambique é um país situado na costa oriental da África Austral, limitado a norte pela Tanzânia, a noroeste pela Zâmbia e Malawi, a oeste pela Suazilândia e pelo Zimbabwe, a sul e oeste pela África do Sul e a leste pelo Canal de Moçambique, uma porção do Oceano Índico. O país foi colônia portuguesa e se tornou independente a 25 de junho de 1975. Logo após a independência, em 1977, o país entrou em um conflito militar que durou 16 anos e se encerrou com a assinatura dos acordos de Roma em 4 de outubro de 1992, à luz dos quais Moçambique adotou um novo sistema político e de governo: de partido único e socialista evoluiu para o sistema democrático e multipartidário, o que implicou a aprovação, em 1990, de uma nova Constituição da República. (Vide figura 1)

Fonte: Site oficial do governo de Moçambique em: //www.portaldogoverno.gov.mz/por/Mocambique

Figura 1 Moçambique no mundo, na região e seus símbolos 

De acordo com Nhanale (2017), fica claro que o sistema democrático moçambicano surge como um imperativo para dar fim a diversos problemas que Moçambique viveu depois da independência e não como vontade ou estratégia de governo: embora a democracia tenha estado na agenda a quando da luta pela independência, foi abandonada pela Frelimo4 após a independência. O abandono da democracia como projeto da luta pela independência nacional por parte do governo pós-colonial fez com que dissidentes da Frelimo (reunidos na Renamo5) se organizassem e pegassem em armas como forma de forçar o governo a optar pelo sistema democrático, pois o diálogo não era possível.

Em consequência da guerrilha travada pela Renamo, a democracia foi finalmente instituída no país com a assinatura do Acordo Geral de Paz, assinado em Roma pelo governo de Moçambique (representado pelo Presidente Joaquim Chissano, também líder da Frelimo) e pela Renamo (representada pelo seu presidente, Afonso Dhlakama) em 4 de outubro de 1992. O acordo foi referendado pela nova Constituição aprovada em 2004, que entrou em vigor em 21 de janeiro de 2005 (CONSELHO CONSTITUCIONAL, 2018).

O novo sistema político permite que, a cada cinco anos, Moçambique realize eleições para que a população escolha os seus governantes. As primeiras eleições para Presidente da República e deputados da Assembleia da República foram realizadas em outubro de 1994. Para o pleito, 6.148.842 eleitores foram recenseados e, destes, 87,9% votaram.

Joaquim Alberto Chissano (presidente da Frelimo) foi eleito no primeiro turno com 53,3% dos votos, distante do principal concorrente, o dirigente da Renamo, Afonso Dhlakama, com 33,7%. Os 13% restantes foram divididos entre os outros dez 10 candidatos.

O resultado foi mais equilibrado nas eleições legislativas, nas quais a Frelimo conseguiu a maioria absoluta dos 250 membros (129 parlamentares eleitos), com 44,3% dos votos. A Renamo obteve 112 lugares, com 37,8% dos votos, e a União Democrática ficou com nove lugares.

Mesmo nesse ambiente democrático, a não observância de parte do acordo de Roma pelo governo da Frelimo tem provocado crises militar e política em Moçambique. Essa violação do Acordo de Paz e, o fato de o governo da Frelimo não aceitar negociações, tem feito com que a Renamo, use sua guerrilha, constituída de homens que serviriam de segurança dos altos quadros e jovens frustrados com a governação atual, como forma de pressionar o governo a corrigir os atropelos ao Acordo.

Este cenário de retorno ao conflito armado entre o governo e a Renamo já aconteceu em três ocasiões, desde 1992, com igual número de acordos de cessação de hostilidades militares, o último assinado em 6 de agosto de 2019. Mesmo assim, hoje existem focos de ataques a pessoas e bens no centro do país, assim como na região norte de Moçambique, perpetrados pelos chamados Insurgentes, que reclamam má governação, embora não se saibe exactamente qual é a reivindicação dos chamados Insurgentes e existem várias hipóteses que têm sido levantadas sobre as causas da insurgência.

Nesta senda, em 2018, o relatório da The Economist Intelligence Unit 6 sobre as democracias no mundo, mostra Moçambique na 116ª posição, na faixa dos países de regime autoritário, entre os 367 analisados, evoluindo do grupo de países híbridos, no mesmo relatório de 2017, para o conjunto de países considerados autoritários em 2018.

Em relação às liberdades civis e políticas e funcionamento do governo, áreas que constituem o foco deste artigo, Moçambique teve uma pontuação de 2.53/10. Para efeito de comparação, o mesmo estudo mostra o Brasil em 50º lugar, com queda de uma posição em relação a 2018, e aumento de pontos em 2019, para 6.97/10. A lista é liderada pela Noruega, com 9.87/10 pontos na avaliação das liberdades civis e políticas e funcionamento do governo, ou seja: uma democracia plena. No que diz respeito aos índices de corrupção, relatório de 2019 da ONG Transparência Internacional7 mostra que Moçambique ainda está no grupo de países mais corruptos do mundo, ocupando o 126º lugar no Índice de Percepção de Corrupção 2019, mesmo que tenha avançado em relação a 2018, quando estava no 146º lugar.

A corrupção, em Moçambique, tem incidido, principalmente, mas não só, ao nível dos desvios de fundos e bens do Estado com o envolvimento de funcionários públicos dos mais diversos escalões da Administração Pública, havendo um número cada vez mais crescente de funcionários que são detidos por envolvimento neste tipo de actos, mas também ao nível dos processos de “procurement” público (CIP - CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA, 2020, p. 1)

Para combater este mal, acadêmicos, jornalistas e juízes têm tentado inverter e denunciar casos de corrupção, mas a captura do Estado, o controle da justiça e de instituições públicas como universidades pela Frelimo, partido no poder, tem desencorajado essa luta, uma vez que aqueles que tentam denunciar, expor ou até julgar, terminam sequestrados, desempregados e, em alguns casos, mortos.

Como exemplos de casos extremos dessas situações de risco, podem ser citados o jornalista Carlos Cardoso, morto na investigação de caso de corrupção em novembro de 2000; o economista Siba-Siba Macuácua, morto quando investigava um caso de corrupção na gestão do Banco Austral; a morte em 8 de maio de 2014 do juiz Dinis Silíca, que julgava caso de corrupção envolvendo políticos do partido no poder; a morte do acadêmico constitucionalista Gil Cistac, em 3 de março de 2015; e a morte do presidente do Município de Nampula, que lutava contra o nepotismo e a corrupção.

Neste cenário, o Comitê de Proteção a Jornalistas mantém em arquivo alertas emitidos a cada ano, desde 2018, sobre os vários casos de risco para a atividade jornalística no país (CPJ, 2020). A visão geral sobre a política de Moçambique ajuda a compreender o governo e o contexto de funcionamento das instituições e da mídia no país.

As eleições de 15 de outubro de 2019 e os candidatos presidenciais

De acordo com a agência de notícias portuguesa Lusa8, em abril de 2018, o Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, marcou para 15 de outubro do mesmo ano as eleições gerais (presidenciais e legislativas) e das assembleias provinciais. Segundo a agência, a data foi escolhida por proposta da Comissão Nacional de Eleições (CNE), depois de ouvido o Conselho do Estado, conforme a lei.

Depois da fixação da data das eleições, seguiu-se o período de submissão de candidaturas à Presidência e, dos seis candidatos que se apresentaram, entre os quais uma mulher, apenas quatro foram às eleições, sendo os outros excluídos por falta de assinaturas que legitimassem as suas candidaturas, como afirma a plataforma Global Voices em edição de 8 de agosto de 2019: “O conselho constitucional aprovou, no dia 31 de julho quatro candidatos: Filipe Nyusi (Frelimo), Ossufo Momad (Renamo), Deviz Simango (MDM) e Mario Albino (AMUSSI). Importa salientar que duas candidaturas foram excluídas ( a de Alice Mabote e a de Helder Mendonça) alegadamente porque não reúnem assinaturas para apoiar suas candidaturas” (GLOBAL VOICES, 2018).

A eliminação dos dois candidatos, segundo a Global Voices, suscitou muitos questionamentos, considerada uma forma da Frelimo evitar uma derrota no sul do país, já que a candidata Alice Mabote tinha muita aceitação e credibilidade popular conquistada na sua luta pelos direitos humanos. (Vide a ffigura 2)

Fonte: Adaptado Comissão Nacional de Eleições (em http://www.cne.pt/organismo/mocambique), 2020

Figura 2 Candidatos a Presidente da República nas eleições de 15 de outubro de 2019 

Os meios de comunicação social e a cobertura da campanha eleitoral

De acordo com Cardoso e Amaral (2006, p. 1), televisão é o meio de comunicação “com maior número de utilizadores (telespectadores) e, também aquele a que concedemos mais horas do nosso dia-a-dia”. Por outro lado, Dias (2005, p. 60) assume que “a televisão ainda é um grande mediador social entre os cidadãos e as instituições e, ainda constitui uma peça fulcral na educação e formação dos indivíduos, pois é para a grande maioria da população a única fonte de informação”. A autora também considera o meio televisão essencial pela sua interação com a política e o cidadão. Para Gonçalves (2005), os meios de comunicação social são, cada vez mais, elementos centrais do processo político nas democracias, pois “estabelecem a ponte”, ou seja, funcionam como “mediadores da relação entre os agentes políticos e os cidadãos” (p. 41).

Na mesma perspectiva, Freud (1974) realça, de forma mais direta, que na relação entre jornalistas e políticos no período eleitoral há que se realçar que o jornalismo é a fonte essencial de informação política nas sociedades contemporâneas. Os estudos televisivos reforçam a ideia da interação entre a audiência e os meios (MACHADO, 2000, p. 111). Com isso se justifica a relevância deste estudo da campanha de 2019 por meio da cobertura de um canal de TV9. Estes argumentos rementem à ideia de que a forma como o jornalista / o jornalismo aborda os acontecimentos no processo eleitoral afeta a forma como o cidadão eleitor percebe e compreende a mensagem, o que exige maior empenho da parte do jornalista / do jornalismo em produzir notícias da forma mais objetiva possível, embora se reconheça que sempre exista o subjetivismo na forma de produção e transmissão de conteúdos noticiosos. Este padrão está entre os motivos que incentivaram a análise da cobertura eleitoral da campanha eleitoral em Moçambique pela STV.

Em coberturas desse tipo, parte-se do princípio de que as comunicações não intervêm diretamente no comportamento da audiência, antes tendem a influenciar o modo como o destinatário organiza a sua imagem da realidade social (WOLF, 1992, p.124-127).

Porém, os meios como estruturadores da imagem da realidade social contribuem em longo prazo na formação de opiniões e novas crenças: “Muitas vezes, a repartição efetiva da própria opinião pública se regula pela opinião reproduzida pelos mass media e se adapta a ela (WOLF, 1992, p.127). Em um ambiente democrático, espera-se um jornalista / um jornalismo imparcial e que ocupe o lugar de quarto poder, como se depreende de Mesquita:

(...) o jornalismo não só é considerado como um poder representativo nas democracias contemporâneas, mas também uma força “contrapoder” por assumir-se como um “defensor de causas democráticas”, focando-se na investigação de irregularidades exercidas em instituições ou indivíduos reconhecidos na sociedade, o chamado jornalismo watchdog (“cão de guarda”), sendo outorgado como um poder que resguarda a sociedade e que se rege pelas normas democráticas (MESQUITA, 2003, p. 74).

Há críticos dessa visão do papel do jornalista/jornalismo. Para esses, “a glorificação do papel do jornalista/jornalismo na sociedade apresenta algumas lacunas, porque por um lado pode prejudicar a estabilidade da democracia através da divulgação de notícias que podem denegrir a imagem das entidades políticas” (ANDERSON & WARD, 2007, p.19). Em meio a estes debates, “não existe um consenso quanto ao papel do profissional e da profissão”, mas é evidente que os meios de comunicação “contribuíram para a expansão do espaço público” (SALGADO, 2007, p. 70), “pois a liberalização dos mídia conferiu à sociedade o constante conhecimento de tudo o que se passa que de outra forma não séria possível” (PEREIRA, 2009, p.105).

Sobre o papel dos média na democracia, McNair (2000) afirma que há consenso, nas democracias, sobre como os meios de comunicação são fundamentais, pois assumem um papel essencial na formação da opinião pública e no próprio acompanhamento de um processo eleitoral. Esta visão mostra que, embora existam divergências sobre o conceito do jornalismo como quarto poder, existe certeza sobre a influência do papel dos mídia na construção da democracia e para o equilíbrio entre o poder político e os cidadãos. Max Weber (1979) dá relevância ao importante papel dos média perante os políticos, afirmando que o publicista político, e sobretudo o jornalista, são os mais notáveis representantes da figura do demagogo da atualidade”, acrescentando que o jornalismo é um meio importante para se alcançar o profissionalismo político (p. 40).

Da mesma forma, entende-se que o ato comunicacional contém uma “tripla função informativa: persuasiva, lúdica e de tornar algo comum” (SENA, 2002, p. 33) e que, nos momentos eleitorais, a comunicação contribui para a criação da imagem de um candidato político através da sua exposição, que pode influenciar na percepção e atitude dos eleitores perante determinado incumbente ou partido (SALGADO, 2007, p. 43-44). Uma cobertura não equilibrada pode, em contexto de escolha de dirigentes, permitir que vença aquele que não deveria, o que impõe aos média uma grande responsabilidade na busca da imparcialidade no contexto eleitoral e de cobertura de campanhas, pois a sua atuação e a das instituições públicas evitam crises pós-eleitorais.

Um olhar sobre o bloco Diário de Campanha no Jornal da Noite da STV Partimos aqui para a apresentação e a análise da cobertura da campanha eleitoral das eleições de 15 de outubro pelo jornalismo da STV. Ao longo deste trecho são apresentados dados-síntese da leitura diária de cada bloco do Diário de Campanha no contexto do Jornal da Noite. A informação é analisada de modo descritivo e no formato de tabelas para facilitar a leitura e a compreensão. O Jornal da Noite da STV é estruturado em quatro blocos e produz, em média, 11 matérias por dia. As notícias factuais mais importantes costumam abrir a edição do telejornal.

O terceiro bloco costuma ser destinado a notícias de esporte, mas, no período da campanha eleitoral, ficou reservado ao Diário de Campanha, enquanto o último bloco reservado à editoria de cultura geral, matérias leves, normalmente internacionais, usadas para encerrar o telejornal.

Considerando a edição das matérias analisadas fica claro que algumas entram no ar ao vivo, sem passar pelo processo de edição, mas a maioria são matérias gravadas seguindo a lógica editorial da emissora. Os repórteres que entram ao vivo são os mais experientes, que dominam a linha editorial da STV. (Vide tabela 1)

Tabela 1 - Duração diária - blocos “Diário de Campanha” 

Duração diária - Diário de Campanha - STV
Data Duração do Bloco “Diário de Campanha” Duração Jornal da Noite
31/08/2019 00h:38min 1h:01min
01/09/2019 00h:22min 00h:46min
02/09/2019 00h:24min 00h:40min
03/09/2019 00h:26min 00h:52min
04/09/2019 00h:11min 01h:25min
15/09/2019 00h:18min 00h:53min
16/09/2019 00h:25min 00h:53min
17/09/2019 00h:24min 00h:48min
18/09/2019 00h:31min 01h:08min
19/09/2019 00h:25min 00h:51min
07/10/2019 00h:26min 00h:56min
08/10/2019 00h:18min 00h:57min
09/10/2019 00h:20min 00h:48min
10/10/2019 00h:21min 00h:54min
11/10/2019 00h:23min 01h:09min
Total 352 Minutos 781 Minutos

Fonte: Tempo cronometrado pelos autores, 2020.

Na coleta do material foram registrados 15 vídeos em 15 dias, do total de 45 dias de campanha eleitoral, correspondente a 30% dos vídeos da campanha no canal STV. Em termos de tempo total de cobertura nestes períodos, vale sublinhar que a duração média do bloco reservado à campanha eleitoral no noticiário da campanha é de 23,46 minutos diários, sendo a duração máxima e mínima deste bloco de 38 minutos e de 11 minutos, respectivamente, como se pode ver na Tabela 1.

A variação diária do tempo reservado ao bloco Diário de Campanha não teve relação direta com a duração do jornal ao longo da campanha. Houve dias, como em 31/08/2019, que o tempo de duração do Jornal da Noite foi de 1h:01 minutos e a duração do bloco de 38 minutos. No dia 11/10/2019, a duração total do Jornal da Noite foi de 1h:09 minutos e a duração do bloco de apenas 23 minutos o que mostra que a irregularidade do tempo ocupado pelo bloco não tem a ver com a duração do Jornal da Noite.

Da mesma forma, vale dizer que, dos 352 minutos dedicados à campanha eleitoral e ao bloco Diário de Campanha na STV, 270.79 minutos foram reservados à cobertura direta aos candidatos ao cargo de Presidente da República e aos respectivos partidos. A análise traz apenas dados da cobertura dos quatro candidatos e dos partidos (FRELIMO, RENAMO, MDN10 e AMUSI11) que os apoiavam, como pode ser conferido na Tabela 2. Não constituíram elementos de análise as entrevistas aos representantes das instituições encarregadas da gestão do processo eleitoral (STAE e a CNE). Nos vídeos, não há interação com o telespectador, o que permitiria que cada cidadão apresentasse seu ponto de vista sobre a forma de transmissão e a narrativa apresentada pelos candidatos. Uma possibilidade é de que essas interações não foram usadas para induzirem os cidadãos a gostar (ou não) de determinado partido ou candidato. Ao longo da transmissão, os órgãos de informação deviam se pautar pela visão de Fechine (2014), para quem a “transmidiação” foi definida como um modelo de produção orientado pela distribuição em distintos mídias e plataformas tecnológicas com conteúdos associados, cuja articulação está ancorada em estratégias e práticas internacionais propiciadas pela cultura participativa estimulada pelos meios digitais.

Distribuição de tempo e cobertura da campanha eleitoral no jornal da Noite da STV

A Tabela 2 e os gráficos da Figura 4 mostram a cobertura midiática da campanha eleitoral no noticiário do Jornal da Noite da STV. Tendo em conta a Lei nº 2/2019 e suas determinações - como o artigo 5 (Liberdade e igualdade), segundo o qual “o processo eleitoral pressupõe liberdade de propaganda política e igualdade de candidaturas”; e o artigo 21 (Igualdades de oportunidades das candidaturas), que define que “os candidatos, partidos políticos e coligações de partidos políticos têm direito a igual tratamento por parte das entidades públicas e privadas a fim de, livremente e nas melhores condições, realizarem a sua campanha eleitoral” - fica evidente a transgressão ao princípio de igualdade, na medida em que o partido FRELIMO e seu candidato receberam cobertura de 41.5% do tempo dedicado à campanha, contrariando os princípios defendidos pela lei moçambicana.

Tabela 2- Tempo dos candidatos no Diário de Campanha da STV, 2019 

Cobertura Midiática de Candidatos e Partidos - Diário de Campanha
Candidato Tempo de Cobertura Partido Tempo de Cobertura Tempo Total
Filipe J. Nyusi 59.88 minutos FRELIMO 52.61 minutos 112.49 minutos
Deviz M. Simango 42.67 minutos MDM 20.61 minutos 63.28 minutos
Ossufo Momad 52.76 minutos RENAMO 36.52 minutos 89.28 minutos
Mario Albino 5.38 minutos AMUSSI 0.36 minutos 5.74 minutos
Total 160.69 minutos 113.1 minutos 279.79 minutos

Fonte: Tempo cronometrado pelos autores, 2020.

Com estes dados é possível afirmar que os resultados eleitorais eram previsíveis, especialmente se considerarmos o entendimento de Pereira (2009) de que, devido ao seu efeito imediato, a mensagem dos candidatos políticos transmitida pelos meios de comunicação implica que as mensagens eleitorais são automaticamente assimiladas pela sociedade. Tendo em conta que os média são pilares da democracia e, como tais, devem promover a igualdade de condições, no caso das eleições de 2019 em Moçambique não houve imparcialidade e, diante disso, podemos afirmar que a democracia não funciona de forma plena. (Vide figura 3)

Figura 3 Distribuição do tempo, por candidato e partido, na cobertura eleitoral da STV 

Neste contexto de análise e considerando os dados qualitativos, vale ressaltar que:

(...) Em princípio, o gênero notícia televisiva expõe duas narrativas paralelas: a narrativa visual, que se coloca como um documento do que realmente aconteceu, assim demonstrando a pretensão da objetividade, e a narrativa falada que contribui com informação complementar, ainda que permaneça relativamente distinta, sem comprometer o status da narrativa visual como pura informação. Para a audiência, essa convenção de gênero contribui para a potencial heterogeneidade da experiência com o jornalismo. Qualquer que seja sua justificação econômica ou organizacional, a convenção resulta numa estrutura de mensagem que é relativamente aberta a um leque de interpretações (JENSEN, 1986, p. 65).

Na representação (drama ou mimese) do real da campanha eleitoral, o telejornalismo da STV recorre a uma narrativa visual, quando mostra as imagens e o pulsar da campanha, em que cada candidato/partido mostra aos cidadãos, em seus comícios, seu manifesto ou programa de governo. Junto com as imagens, há vozes que narram as cenas e é neste plano que os repórteres ou apresentadores dos jornais constroem a representação e os conflitos discursivos sobre os candidatos ou membros de partidos. Sobre as imagens e narração discursiva, as legendas remetem o telespectador ao drama ou a história narrada na representação do real, tal como afirma Coutinho (2006) ao identificar o conflito “como ponto de partida, motivador de ações dos personagens em um drama” (p.103).

Ainda segundo Coutinho (2006), a última etapa no processo editorial é inserir imagens sobre o texto em áudio do repórter. As imagens ilustram e informam sobre a história. Em alguns casos, há também a necessidade de sonorizar e mixar o vídeo para balancear o áudio gravado nas ruas com o off do repórter e as sonoras na fragmentação do real no seu conteúdo final. Concordamos assim com a proposta de Coutinho (2006), de que a padronização dos critérios para edição das matérias se dá como uma forma de adequação à rotina produtiva, fato que não é regular na cobertura da campanha eleitoral pelo telejornalismo aqui analisado.

Parafraseando Jensen (1986), no telejornalismo, o componente da imagem faz muita diferença. Jensen enfatiza a credibilidade, como as imagens da cobertura televisiva reforçam a expectativa de objetividade e imparcialidade e as convenções jornalísticas que regulam a imagem jornalística. A variedade de imagens oferecidas aparece também como forte apelo para a audiência e, para manter o telespectador preso no fluxo televisivo do telejornalismo, as imagens são estruturadas de acordo com a estética de produção de mercadoria. O material analisado mostra que as imagens foram usadas para beneficiar um candidato, uma vez que os planos eram variados no caso do candidato da FRELIMO. (Vide figura 4)

Fonte: Site oficial da STV em http://stv.sapo.mz/

Figura 4 O cenário do Jornal da Noite e do “Diário de Campanha” na STV, 2019 

Em termos qualitativos, importa salientar que o candidato e o partido FRELIMO foram beneficiados porque os repórteres que faziam a cobertura da campanha recorriam frequentemente a entrevistas aos chefes da coordenação central do partido (indivíduos que saíam da capital do país para reforçar as brigadas provinciais e distritais, muitos deles com influência e popularidade, como músicos e a campeã olímpica Lurdes Mutola); com os secretários dos comitês provinciais (que repetiam os feitos do candidato e do partido, como mostram os vídeos dos dias 31 de agosto e de 1º e 2 de setembro de 2019). Além disso, as matérias cobriam distritos e comícios, completadas por entrevistas ao próprio candidato, ao contrário da cobertura dispensada aos outros candidatos presidenciais.

Os repórteres do Diário de Campanha faziam entrevistas aos cidadãos que reforçavam os feitos do candidato da FRELIMO e acompanhavam as atividades de campanha dos seus filhos e esposa, assim como do ex-Presidente Joaquim Chissano em reunião com funcionários públicos (o que não acontecia com candidatos de partidos) e outros segmentos. Em relação aos candidatos da RENAMO e do MDM, os repórteres cobriram apenas o discurso das suas esposas (uma única vez e no primeiro dia da campanha; e em relação ao candidato da RENAMO, no dia em que chegou de viagem e iniciou sua campanha na Matola). O candidato presidencial Mário Albino, do AMUSI, não teve qualquer cobertura - o partido e seu candidato foram as entidades mais prejudicadas e com menor cobertura midiática da STV - tanto em nível quantitativo como qualitativo receberam cobertura em 2.1% do tempo, o que reforça a constatação de que alguns partidos e candidatos foram beneficiados na cobertura midiática dos noticiários da STV durante a campanha eleitoral de 2019.

Diante dessa realidade, construiu-se “uma narrativa televisiva de sobrevivência de uns em detrimento de outros” (SCOLARI, 2013). Anderson & Ward (2007) destacam também que há de se questionar a glorificação do jornalismo, que às vezes opera de maneira oposta à de fomentar a participação na forma maximalista, na qual todos têm o direito à justa participação na tomada de decisão. Este fato fez da STV um meio que não se identificou com os padrões do jornalismo democrático nem com os objetivos da instituição comunicação social, que defende a justiça, o interesse público e a igualdade de oportunidades, assim como transgrediu no contexto de cobertura eleitoral o princípio de igualdade defendido pelas leis moçambicanas. No que se refere aos dados qualitativos, importa dizer que algumas vezes o candidato da FRELIMO era inclusive chamado de Presidente da República em plena campanha e, por vezes, Chefe do Estado, o que confundia o público na identificação da figura do candidato e do Presidente, mesmo que em alguns casos o apresentador retificasse a referência equivocada.

Na cobertura da campanha de candidatos de outros partidos, os repórteres da STV entrevistaram cidadãos que discordavam dos candidatos da oposição, o que não acontecia na cobertura da FRELIMO e seu candidato. Um recurso estratégico usado com frequência pelos jornalistas que cobriam a campanha FRELIMO era a estruturação do discurso do seu candidato a Presidente: depois da apresentação das ideias de governo, o trabalho de edição transformava seu discurso não estruturado em discurso estruturado. O jornalista fazia assim o trabalho do candidato, ao mostrar o discurso em partes, tornando claro o que muitas vezes não estava claro, e orientando o telespectador a compreender o discurso na perspectiva direcionada. Indicativo de que a equipa do Diário de Campanha não estava articulada, pois devia, antes da ida ao campo, definir os termos de como e quanto tempo se faria a cobertura de um candidato e, se de fato articulava, podemos dizer que foi uma estratégia deliberada para beneficiar uns em detrimento de outros nos resultados finais.

No que diz respeito aos apresentadores e repórteres ao longo da cobertura eleitoral, constatou-se que todos os analisados possuíam uma postura firme, o que, segundo Weil e Tompakow (1983), são referências de franqueza, interesse, coragem e vigor psíquico. Essas ações são desempenhadas pelo “olho no olho”, que demonstra interesse na ação; o “tórax firme”, onde o “eu” se expõe de forma segura. O conteúdo da cobertura eleitoral mostra que a firmeza, a coragem e o vigor psíquico foram estratégias usadas para encobrir a parcialidade na cobertura da campanha eleitoral. Mais uma vez, isso fez da STV um meio que agiu fora das premissas do jornalismo e da sua característica de defensor da igualdade e justiça na produção e difusão da informação. Com esse modo de agir, a STV contrariou o seu lema de imparcialidade, de um canal “onde a gente se vê”.

Quanto aos valores jornalísticos, se constata que, do apresentador aos repórteres e redatores envolvidos no processo editorial, os dados mostram uma cobertura parcial em relação ao valor verdade, o que remete à ideia de inverdade e de falta de isenção jornalística no telejornalismo da STV, pelo menos no que durante a cobertura da campanha para Presidência da República em 2019.

Considerações finais

Depois da campanha eleitoral em 15 de outubro, os resultados deram vantagem à FRELIMO e ao seu candidato, com os números assim distribuídos: Filipe Nyusi, 73% dos votos; Ossufo Momade, 21,88%; Daviz Simango, 4,38%; e Mário Albino, 0,73% dos votos. Nas eleições legislativas, a Frelimo teve 73,6% dos votos; a RENAMO 24%; o MDM 2,4% e o AMUSI menos de 1%, sem conquistar vaga no Parlamento. O cruzamento dos dados da cobertura da campanha pela STV mostra, nas tabelas e gráficos apresentados ao longo do artigo, a relação direta entre o tipo de cobertura midiática e os resultados da campanha, pois o candidato e partido com maior cobertura ganharam as eleições, embora vários casos de fraude eleitoral12 tenham sido registrados por observadores nacionais e internacionais. Tal contexto confirma o que assinala Carvalheiro (2005) citando Castells (1997, p. 312): “tudo o que for exterior ao espaço midiático acaba por ser marginalizado ou mesmo desvalorizado”. Merece atenção na análise dos resultados e dos dados da cobertura eleitoral o fato de que, quanto maior for a cobertura midiática de um candidato ou partido, maiores e melhores serão os seus resultados eleitorais. Tendo em conta os objetivos deste artigo, os vídeos do Jornal da Noite da STV, especificamente o bloco Diário de Campanha, evidenciaram as características que seguem:

Outrossim, a análise quantitativa evidencia uma distribuição desigual do tempo de cobertura da campanha eleitoral dos quatro partidos com candidatos ao cargo de Presidente da República, uma vez que a FRELIMO e seu candidato tiveram maior tempo, correspondente a 41.5% do bloco Diário da Campanha. Individualmente, o candidato da FRELIMO teve um tempo global de cobertura global equivalente a 22,1%, contra menos de 3% do partido AMUSI.

Os dados qualitativos mostram maior cobertura e promoção da FRELIMO e do seu candidato, uma vez que, de acordo com os vídeos analisados, os repórteres da STV procuravam reforçar a imagem do partido e do candidato recorrendo com frequência a entrevistas com cidadãos que discordavam da oposição e com membros influentes e populares do partido no poder.

Os repórteres recorreram à justificação dos atos do candidato do partido, como o registrado em 31/08/2019, quando o repórter explicou que o avião usado pelo candidato não pertencia ao Estado, uma vez que estava em missão do partido, fato que não se confirmou ao longo do governo, com o Presidente usando recursos estatais para fins privados, ao tratar de assuntos do partido.

A cobertura da campanha eleitoral pela STV confirmou a visao do relatório da The Economist Unit, segundo o qual os direitos políticos e democráticos em Moçambique não são observados e que o regime é autoritário, pois se vive em um ambiente no qual o partido no poder fragiliza os princípios democráticos e afeta a qualidade das eleições e do fazer jornalístico.

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Notas

1. Arcénio Olíndio Luís Luabo, Docente da Universidade Pungue, Faculdade de Letras, Ciências Sociais e Humanidades. Doutor em Comunicação (Mídias e acesso à informação), Mestre em Educação e Ensino de Português (Sociolinguística). Contatos: arceny05@yahoo.com ou arceny05gmail.com

2. SOICO (Sociedade Independente de Comunicação), proprietária da STV-SOICO Televisão.

3. Formas políticas de participação na governação em que permitem que somente certos grupos - geralmente elites - participem do controle do poder.

4. FRELIMO - Frente de Libertação de Moçambique, fundado em 1962.

5. RENAMO - Resistência Nacional Moçambicana, fundado em 1975.

6. The Economist Intelligence Unit. Democracy Index 2018. Em: https://www.eiu.com/n/democracy-index-2018/

7. CIP - Relatório Transparência Internacional. Índice de Percepção de Corrupção 2019.

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9. Já em 2011, a STV era “o segundo canal mais visto com uma audiência média anual de 6,2%, correspondendo a um share médio anual de 29,6%”, atrás apenas da TV Miramar, conforme dados do Anuário 2011 de Audiências Diárias de Televisão, Rádio e Jornal - Intercampus. Em: http://www.intercampus.co.mz/noticias5.htm

10. MDN - Movimento Democrático de Moçambique, fundado em março de 2009.

11. AMUSI - Ação do Movimento Unido para Salvação Integral, criado em agosto de 2015.

12. Há exemplos claros de fraude eleitoral nas eleições de 2018, exemplo dos editais da autarquia da Matola, Província de Maputo, em que, o edital mostra vitória da Renamo com quase 48.000 votos contra quase 46.000 votos do partido Frelimo e, o partido Frelimo insatisfeito, manda produzir um segundo edital em que saía vitorioso. O mesmo aconteceu no distrito de Marromreu - Sofala, em que, perdendo o partido Frelimo, em coordenação com a Polícia de República de Moçambique, e Eletricidade de Moçambique, retiram a urna que continha votos que não conferia vitória a este partido e introduzem uma nova urna com votos pré-votados e, que dava vitória a esta formação política, durante o corte de energia. Em 2019, houve casos confirmados de enchimento de urnas em Nampula e Zambézia que foram confirmados e punidos nos tribunais, os que encheram e foram descobertos, para além de casos relatados pelos observadores nacionais e internacionais em relatórios.

Recebido: 30 de Setembro de 2022; Aceito: 03 de Janeiro de 2023

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