SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44O discurso da inovação: um estudo de caso na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, câmpus Francisco Beltrão (UTFPR-FB), BrasilDiscurso, termómetro da competição política: Os primeiros meses de oposição do 18.º Presidente do PSD ao XXI Governo Português índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Internacional em Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 2182-4452versão On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.44  Lisboa dez. 2023  Epub 14-Dez-2023

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2023.44/pp.69-82 

Artigo Original

Formas de tratamento em cartas abertas ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro

Veronica Manole1 

1Faculdade de Letras, Universidade Babeș-Bolyai, Roménia / Camões I. P.


Resumo

O objetivo deste trabalho é o de analisar as cartas abertas enquanto mecanismos de comunicação entre cidadãos e atores importantes do poder político (Presidente da República, Primeiro-Ministro). Num primeiro momento, descrevemos o funcionamento do discurso político segundo Charaudeau (2005). Em seguida, debruçamo-nos sobre a carta aberta enquanto género textual (pseudo) epistolar. Depois duma breve apresentação das formas de tratamento alocutivo em português europeu, analisamos vinte cartas abertas, redigidas entre 2011 e 2020. Os resultados mostram uma preferência clara pelas formas reverenciosas, congruente com o índice elevado de distância do poder (Hofstede, 2010) que existe na cultura portuguesa.

Palavras-chave: formas de tratamento; discurso político; cartas abertas; português europeu

Abstract

The aim of this paper is to analyse open letters as mechanisms of communication between citizens and important actor of political power (President of the Republic, Prime Minister). Firstly, we describe how political discourse works according to Charaudeau (2005). Secondly, we tackle open letters as (pseudo)epistolary textual genre. After a brif presentation of allocutive address forms in European Portuguese, we analyse twenty open letters, written between 2011 and 2020. The results show that there is a clear preference for reverential forms, which is in line to the high index of power distance (Hofstede, 2010) in the Portuguese culture.

Keywords: Address forms; political discourse; open letters; european portuguese

Introdução

O objetivo da nossa contribuição1 é analisar o uso das formas de tratamento num corpus de cartas abertas, textos híbridos do ponto de vista dos géneros discursivos, que têm um lugar sui generis na comunicação do campo social político2.

Tendo como ponto de partida a teoria de Patrick Charaudeau (2005) sobre o discurso político, pretendemos, num primeiro momento, situar a cartas abertas na dinâmica interacional que se estabelece entre as “instâncias” do “contrato de comunicação”. Num segundo momento, fazemos uma breve caracterização das cartas abertas e dos seus papéis no âmbito da comunicação do campo político. Num terceiro momento, debruçar-nos-emos sobre um determinado aspeto linguístico, as formas de tratamento e os seus usos na configuração da distância interlocutiva (Carreira, 1997) e na codificação a nível linguístico do índice de distância do poder (Hofstede et al, 2010).

Vejamos, portanto, a configuração do discurso político segundo Patrick Charaudeau (2005). Segundo o linguista francês, qualquer tipo de discurso situa-se no cruzamento entre o “campo de ação” (na aceção de Pierre Bourdieu), que mobiliza relações de poder, e um “campo de enunciação”, que é o lugar da mise en scène da linguagem. O resultado deste processo é um “contrato de comunicação”, que regula tanto os papeis dos atores/enunciadores/locutores, como os usos da linguagem no contexto específico em que um determinado tipo de discurso funciona. No que diz respeito ao discurso político, os atores - chamados “instâncias”, dado que referem categorias gerais, abstratas e não pessoas “em carne e osso” (Charaudeau 2005, 42) - são: i) a instância política, que exerce o poder; ii) a instância adversária, formada também por atores da instância política, mas que se opõe à mesma e que tem outro tipo de relação com o poder do que a instância política; iii) a instância mediática que transmite mensagens, mas que tenta manter a sua independência para criticar a instância política; iv) a instância cidadã, que confere legitimidade à instância política e que tem o direito de interpelar e de contestar a mesma.

Todas estas instâncias estabelecem entre si uma dinâmica comunicacional3 que pode ser visualizada na Figura nº 1. Em regimes democráticos, a instância política e a instância adversária, que se situam no lugar da governação devem justificar as suas ações perante a instância cidadã, e deve utilizar a instância mediática para transmitir as suas mensagens. Como já referimos, a instância cidadã não é apenas um recetáculo passivo, uma vez que pode (e deve, na nossa opinião) interpelar, contestar e criticar as instâncias que exercem o poder (a instância política) ou que pretendem exercer o poder (a instância adversária), através de mecanismos democráticos. Por vezes, diretamente (por exemplo, através de manifestações na rua ou em audiências públicas), outras vezes através dos instrumentos de comunicação de que dispõe a instância mediática, ou mesmo através das redes sociais, que permitem uma comunicação direta. Os cidadãos, quer de maneira individual, quer organizados em sindicatos, associações, grupos de ação cívica, ONGs etc., fazem ouvir a sua voz através das redes sociais. Enquanto mecanismos democráticos, os protestos, as críticas e as contestações mostram a saúde de um regime político, que permite pluralismo de ideias e a liberdade de expressão.

Figura nº 1- As instâncias do contrato de comunicação política (Charaudeau 2005, 42). 

Um dos instrumentos de comunicação que permite aos cidadãos expressar opiniões e fiscalizar a atividade política é a carta aberta. Sem ser o único instrumento de que dispõe a instância cidadã - há também petições, abaixo-assinados, contestações, que conseguem reunir números consideráveis de assinantes através da internet -, a carta aberta torna-se muito visível no espaço público, graças à sua divulgação através dos mecanismos típicos da instância mediática (jornais, revistas, televisões, etc.).

Na próxima secção debruçar-nos-emos sobre a carta aberta e sobre as suas caraterísticas discursivo-textuais.

1. Cartas abertas: um texto (pseudo)epistolar

Provavelmente uma das cartas abertas mais conhecidas na história europeia é “J’accuse”, que o escritor francês Émile Zola publicou no jornal L’Aurore no dia 13 de janeiro de 1898 para denunciar o erro judicial que levou à condenação do militar Alfred Dreyfus. Numa carta aberta ao presidente Félix Faure, Émile Zola denuncia o anti-semitismo do exêrcito francês e a condenação injusta de Alfred Dreyfus. Graças a esta carta aberta, l’affaire Dreyfus ganhou elevada visibilidade no espaço público francês e teve inúmeras consequências tanto para Émile Zola e Alfred Dreyfus, como para a sociedade francesa4. A própria expressão J’accuse tornou-se uma expressão genérica de indignação perante atitudes e ações dos poderosos.

Vejamos algumas caraterísticas da carta aberta do ponto de vista pragmático-textual. No que diz respeito aos participantes, identificamos um remetente que escolhe o(s) destinatário(s) da mensagem; situação semelhante a qualquer tipo de comunicação epistolar. Porém, o canal de comunicação tem uma particularidade. Se qualquer tipo de correspondência (íntima, comercial, administrativa, protocolar, etc.) assenta num denominador comum, que é a confidencialidade, o mesmo não ocorre com a carta aberta. No caso da correspondência fechada, o remetente envia uma carta (ou um telegrama, um e-mail) com a expectativa de que só o destinatário que ele próprio escolheu lê a mensagem. Aliás, o sigilo da correspondência é estipulado na Constituição da República Portuguesa5 no artigo 34º: “O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”. Identificamos, portanto, uma diferença essencial entre uma carta aberta e a correspondência convencional. A carta aberta, pela sua natureza, usa a comunicação social ou a internet para divulgar o seu conteúdo e não obedece à regra da preservação do sigilo da correspondência6, sendo de facto um sub-genéro epistolar sui generis que poderia ser caraterizado como pseudo-correspondência7.

Do ponto de vista da sua função pragmática, podemos afirmar que uma carta aberta serve para denunciar, contentar, criticar, protestar, chamar a atenção, interpelar, sendo estes os seus valores ilocucionários. Os seus efeitos perlocucionários são: influenciar as atitudes dos destinatários, incentivar os destinatários a agir ou tomar uma posição perante o assunto exposto, criar um maior grau de conscientização em relação a um tema, etc.

Do ponto de vista textual, uma carta aberta pode ter uma estrutura8 muito semelhante a uma carta “fechada”: tem um remetente que envia uma mensagem a um destinatário explícito, utilizando os moldes de um texto epistolar (forma de tratamento inicial, estrutura, saudação final); por outro lado, sendo “aberta”, portanto pública, divulgada através de jornais ou da internet, a carta aberta não obedece à regra da inviolabilidade do sigilo (aliás, é o próprio remetente que quebra e sigilo) e, por conseguinte, chegará a vários outros destinatários explícitos ou implícitos. Por exemplo, o destinatário explícito, a quem se dirige o remetente, pode ser o Presidente da República ou o Primeiro-Ministro, sendo destinatários implícitos todas as pessoas que têm acesso ao texto. Em outras palavras, podemos identificar que no caso das cartas abertas há um destinatário particular e um destinatário universal 9, que podemos definir como “opinião pública”.

Na próxima seção fazemos uma breve apresentação das formas de tratamento do português europeu, mecanismos linguísticos essenciais na designação do(s) outro(s), inclusive dos destinatários das cartas abertas.

2. As formas de tratamento em português europeu

O português europeu tem um sistema de formas de tratamento bastante complexo, que pode ser classificado em função de diferentes critérios. O linguista Lindley Cintra (19862), diferencia o tratamento pronominal, o tratamento nominal e o tratamento verbal, usando um critério morfológico. Carreira (1997) faz a distinção entre tratamento elocutivo (designação de si), alocutivo (designação do interlocutor) e delocutivo (designação de terceiros), empregando como critério de diferenciação o papel dos locutores na interação verbal. A segunda classificação será utilizada também por de Nascimento (2020) no capítulo “Formas de tratamento” do terceiro volume da Gramática do Português, a mais recente gramática de referência do português europeu.

Por razões de espaço, limitar-nos-emos a descrever brevemente o inventário de formas alocutivas de tratamento, portanto as que designam o interlocutor, aspeto que será analisado neste trabalho. Do ponto de vista morfológico, notamos a existência dum inventário de formas de tratamento pronominais complexo: tu, você, vós, que permite a expressão de uma variedade de relações sociais entre locutores quer do ponto de vista hierárquico, quer do ponto de vista do eixo proximidade/distância. Aos pronomes alocutivos junta-se uma série de formas nominais quase pronominalizadas, Vossa Excelência, Vossa Senhoria, que são presentes em determinados contextos institucionais, como o protocolo parlamentar, diplomático, etc. O tratamento verbal permite na forma singular escolher entre a 2ª e a 3ª pessoa (Falas / Fala português?) para a expressão do grau adequado de deferência. No plural, destacam-se os pronomes vocês, vós.

O inventário mais complexo e mais instável é o de formas nominais alocutivas. Em função da situação de comunicação, das normas que funcionam no âmbito da comunidade de falantes e das preferências dos locutores, as possibilidades são extremamente variadas. Com base na classificação que Kerbrat-Orecchioni (2010) propôs para o francês, podemos identificar em português sete categorias seguintes de formas nominais de tratamento: i) os nomes pessoais; ii) as formas o senhor / a senhora; iii) os títulos: herdados, como os de nobreza, ou conferidos, como capitão, chefe, com valor honorífico; iv) os nomes de profissões e de funções / cargos; v) os termos relacionais, que expressam uma relação afetiva (amigo), profissional (colega) e de parentesco (mãe); vi) os labels (ou os rótulos), que fazem uma catalogação do(s) alocutário(s), como rapaz, rapariga; vii) os termos afetivos, com valor negativo (os termos injuriosos) ou positivo (os nomes carinhosos). Uma classificação mais recente, proposta por de Nascimento (2020), identifica oito categorias de formas nominais de tratamento; i) formas nominais de convivência de caráter geral; ii) formas nominais que designam parentesco; iii) formas nominais com nome próprio; iv) formas nominais que designam profissão, cargo, posto, função ou título; v) formas nominais de maior formalidade; vi) formas nominais informais e populares; vii) formas nominais de afeto; viii)formas nominais injuriosas.

O uso das formas nominais é determinado por condições específicas da situação de comunicação. Seria impensável o uso de uma forma injuriosa num convite enviado a um parceiro de negócios; empregar o cargo ou o título académico quando se envia um email a um amigo muito próximo seria igualmente inadequado, porque cria uma distância indevida entre os dois locutores. A forma de tratamento é, sem dúvida, uma escolha importante na correspondência formal, que tem regras mais estritas. Numa carta aberta, que é um documento público, a forma de tratamento assume um papel importante, na medida em que define a relação loctor-interlocutor e cria uma imagem positiva ou negativa do locutor.

Vejamos, na próxima secção, uma breve descrição do corpus de cartas abertas que são analisadas neste trabalho.

3.Apresentação docorpus

O corpus analisado neste trabalho é composto por vinte cartas abertas ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro de Portugal. Trata-se de textos publicados em jornais nacionais, como Observador, Público, Expresso, em jornais regionais, como Correio da Madeira, mas também sites de blogues de associações profissionais, como O Instalador, Vida de Bombeiro, Sindicato dos Professores do Norte, Ordem dos Psicólogos, sites de entidades desportivas, como Comité Olímpico Portugal ou sites de movimentos de protesto, como SOS Quinta dos Ingleses. Trata-se de textos redigidos entre 2011 e 2020, que cobrem uma temática variada: problemas de educação, de saúde, de outros serviços públicos, mas também de política internacional. Longe de ser exaustivo, este corpus de textos propõe um olhar breve sobre um género textual presente no debate público português, com o intuito de mostrar o funcionamento das formas de tratamento quando o “interlocutor” é uma figura de alto relevo do Estado: o Presidente da República ou o Primeiro-Ministro.

Vejamos, na secção seguinte, como os locutores regulam a distância interlocutiva através das formas de tratamento utilizadas em cartas abertas.

4.Análise do corpus

Nesta análise, empregaremos três dimensões do funcionamento das formas de tratamento: i) a dimensão semântica, que pretende distinguir as componentes das formas de tratamento (por exemplo nome, apelido, título, cargo), ii) a dimensão sintática, que diferencia entre as formas de tratamento nominativas, vocativas, acusativas, dativas ou genitivas, iii) a dimensão discursivo-textual, que tenta descortinar a função da forma de tratamento: saudação, despedida, interpelação do interlocutor, introdução do novo argumento, etc. As três dimensões juntam-se ao critério morfológico de Cintra (19862) e ao critério semântico-pragmático de Carreira (1997), retomado por Nascimento (2020).

4.1.Formas de tratamento em posição inicial

Uma primeira categoria de formas de tratamento, que apresentam alguma variedade do ponto de vista semântico, mas ao mesmo tempo desempenham o mesmo papel discursivo-textual são as que abrem as cartas abertas. As formas vocativas são empregues na maioria dos exemplos. Trata-se de uma primeira interpelação direta do destinatário (Presidente da República ou Primeiro-Ministro), em que o locutor se sente também obrigado a respeitar as normas protocolares da correspondência oficial. Por conseguinte, a estrutura mais frequente é a seguinte: Adjetivo qualificativo + Senhor + Cargo (± Profissão) (± Título) (± Nome + Apelido). As variações encontradas são: abreviações (Exmo., Ex.mo para Excelentíssimo, Sr. para Senhor, Dr. para Doutor), o uso do cargo completo vs incompleto (Presidente da República [de Portugal/Portuguesa] vs. Presidente), maiúsculas vs. minúsculas (Primeiro-Ministro vs. primeiro-ministro).

  1. Exmo. Sr. Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa Presidente da República de Portugal / Excelentíssimo Senhor Presidente da República Portuguesa (C1)

  2. Excelentíssimo Senhor / Presidente da República Portuguesa / Doutor Marcelo Rebelo de Sousa (C4)

  3. Excelentíssimo Senhor Presidente da República Portuguesa / Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa / Excelência (C6)

  4. Excelentíssimo Senhor / Presidente da República Portuguesa /Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa (C17)

  5. Exmo. Sr. Presidente da República / Professor Doutor / Marcelo Rebelo de Sousa (C8)

  6. Exmo. Senhor Primeiro-Ministro Dr. António Costa (C18)

  7. Ex.mo Senhor primeiro-ministro, Dr. António Costa (C13)

  8. Excelentíssimo Senhor Primeiro-Ministro (C9)

  9. Carta aberta a sua excelência o digníssimo Presidente da República Portuguesa - Professor Doutor | Marcelo Rebelo de Sousa (C20)

  10. Carta aberta ao Presidente Marcelo e a todos os portugueses (C12)

Sendo a primeira linha da carta, a função apelativa é essencial nos exemplos (1)-(8). Há também cartas que começam sem uma forma de tratamento em vocativo, mas designando o destinatário no título, como em (9) e em (10). Em segundo lugar, trata-se de uma forma de tratamento de mostra a disponibilidade do remetente de respeitar uma das funções mais altas da arquitetura do Estado português e, por conseguinte, de marcar a nível discursivo uma distância considerada adequada. Aliás, o adjetivo qualificativo Excelentíssimo (uso congruente, como veremos mais adiante, com as formas de tratamento de reverência Excelência, Sua Excelência ou Vossa Excelência) serve para construir uma distância interlocutiva entre o remetente e o destinatário. Em terceiro lugar, a variedade dos elencos das formas de tratamento mostra a dinâmica identitária dos destinatários: à identidade política (Presidente da República, Primeiro-Ministro) junta-se a identidade profissional (doutor, professor). Não são casos únicos os exemplos aqui apresentados: lembramos também as formas de tratamento Engenheiro José Sócrates (antigo Primeiro-Ministro) e Professor Cavaco Silva (antigo Presidente da República). Destaca-se a forma de tratamento Presidente Marcelo, que provavelmente no espírito do “presidente dos afectos” reduz a distância interlocutiva, usando apenas o cargo e o nome. Longe de ser desrespeitosa, esta forma de tratamento menos protocolar busca estabelecer uma proximidade entre o destinatário e o remetente.

4.2.Formas de tratamento em posição mediana

Por posição mediana entendemos usos no “corpo” da carta aberta, sem ser necessariamente em posição mediana de uma determinada frase. Analisaremos, pois, formas de tratamento que ocorrem no início, no meio ou no fim das frases que integram o corpo das cartas do nosso corpus. Observamos que a variedade das formas de tratamento é maior, abrangendo as três categorias propostas por Cintra (1986): tratamento nominal, tratamento pronominal e tratamento verbal.

Destaca-se o uso da forma de tratamento de maior formalidade, Excelência, quer abreviada, quer por extenso, na sua forma vocativa (11) e (13), nominativa

(12) acusativa (13) ou genitiva (14) e (15). Notamos também a hesitação entre a escolha do possessivo, que pode ser tanto Vossa, como Sua, mesmo numa única frase, como em (13). Trata-se de uma utilização congruente com a situação de comunicação, que impõe um alto grau de formalidade e de deferência.

  1. Exa., como muito bem sabe (C1)

  2. Dirá então Sua Excelência, uma coisa tão simples e ninguém se lembrou disto? (C7)

  3. Sua Excelência, Sr. Presidente da República, ao longo de mais de três anos, desde que tive a honra de jantar com V. Exa no dia 13 de Outubro de 2017 no convento da Sertã (C20)

  4. Confio no bom-senso de V. Ex.ª e dos nossos governantes para tomar as melhores decisões (C17)

  5. Não descobrimos qualquer medida do Governo de Vossa Excelência que possa ajudar este setor (C18)

Esta segunda categoria de formas de tratamento que encontrámos em posição mediana é congruente com o registo formal, normalmente adotado nestas circunstâncias. Observamos também um uso bastante frequente das formas vocativas (16)-(18), (20), (21), (23)-(26), com função interpelativa, de chamar atenção ao destinatário sobre o assunto desenvolvido num determinado parágrafo da carta. Em muitos casos, as formas vocativas servem também para salientar um novo argumento. No que diz respeito ao adjetivo qualificativo que precede a forma o senhor, observamos que se mantém a expressão Excelentíssimo (quer por extenso (25), quer sob forma abreviada, como em (26), Exmo.) e que há o uso bem mais reduzido do adjetivo Caro, menos reverencioso, mas ainda típico do estilo epistolar.

  1. Senhor Presidente, tenho os meus estudantes sem aulas desde há mais de uma semana (C4)

  2. Ou seja, Senhor Presidente, [...] é hora de não termos medo de confessar as nossas próprias limitações (C4)

  3. Senhor Primeiro-Ministro,

  4. Entre outros diplomas legais que o Governo aprovou e impôs (C10)

  5. O senhor Presidente da República é o garante do bom funcionamento das instituições (C5)

  6. Sr. Presidente, portuguesas e portugueses, façam o rastreio do vosso risco cardiovascular (C12)

  7. Senhor primeiro-ministro, isto já não é somente uma questão académica ou de gestão da ciência (C14)

  8. Lamenta-se que, ao longo da Legislatura, o Senhor Primeiro-Ministro não tivesse recebido a Plataforma Sindical dos Professores, apesar dos insistentes pedidos formulados (C10)

  9. Senhor Presidente da República, quanto lhe teria para dizer mas ninguém tem tempo, no entanto, sua excelência é pessoa inteligente, perspicaz, sagaz, astuto e cortês. (C5)

  10. Caro senhor Presidente, o GR parece aqueles bares com esplanada (C5)

  11. Excelentíssimo Senhor Presidente da República Portuguesa terminamos com uma frase sua e a pedir a sua actuação no sentido literal da mesma. (C6)

  12. Exmo. Senhor Presidente da República, a Psicologia está cada vez mais presente em todas as áreas da sociedade (C8)

Juntamos num exemplo várias ocorrências que não respeitam os mesmos níveis de formalismo e de deferência. Numa carta aberta assinada por Sérgio Tréfaut, um conhecido cineasta brasileiro. Podemos considerar que esta forma de tratamento - Marcelo - pode ser influenciada pelos padrões da variedade brasileira, em que pelo menos nos média (entrevistas, artigos de opinião, cartas abertas, etc.) não é invulgar encontrar apelativos como Dilma e Lula. Porém, no âmbito deste corpus, o tratamento pelo nome numa carta aberta dirigida ao Presidente da República Portuguesa representa uma nota discordante.

Quanto a Marcelo, pode ser acusado de tudo o que quiserem [...] Marcelo terá visionado a criminosa reunião de ministros de 22 de abril [...] Marcelo compreende. [...] Marcelo também sabe que Bolsonaro fez ameaças de morte aos membros do Supremo Tribunal Federal. Marcelo sabe que Bolsonaro falou em manifestações que pediam uma ditadura militar e o encerramento do Congresso. [...] Marcelo recebe informações sobre a impunidade da polícia no Brasil. Cinco George Floyd por dia. Marcelo sabe que Bolsonaro luta pelo descrédito da democracia. (C3)

O tratamento pronominal é o da terceira pessoa e concerne exclusivamente as formas acusativas (felicitá-lo) ou dativas (compete-lhe, a si, apelo-lhe, por si) e é congruente com as normas do estilo protocolar.

  1. compete-lhe a si e, apenas a si (C1) // Antes de mais, quero felicitá-lo por ter decretado o Estado de Emergência em Portugal (C4) // Assim, apelo-lhe, como português e cidadão europeu (C4) // Este esforço começa por nós, por mim, por si (C6)

O tratamento verbal concerne também a terceira pessoa do singular, congruente com as normas do estilo protocolar epistolar.

  1. Aceite, Senhor Primeiro-Ministro, as nossas melhores e sinceras saudações. // Resista a pensar que o “problema” e a sua resolução são matéria exclusiva da Proteção Civil // Reúna, longe dos holofotes e sob compromisso de reserva, os titulares da pasta das Florestas e da Administração Interna // Faça o mesmo com alguns “sábios” // Peça, a cada um destes dois grupos // separe a e operacional // leve a sério a necessidade de uma campanha de sensibilização massiva e nacional // atue ativamente para não estigmatizar nenhuma das espécies florestais, nomeadamente o eucalipto // fuja de respostas. (C15)

4.3.Formas de tratamento em posição final

Em posição final, as formas de tratamento têm o papel de dar uma nota pessoal à despedida. Não ocorrem em todas as cartas, o que mostra que têm o uso mais reduzido do que as formas de tratamento em posição inicial (com função de saudação).

  1. Contamos consigo, com o seu magistério de influência, Sr. Presidente, para bem de Portugal e de todos os portugueses.

  2. Agradecendo a atenção de Vossa Excelência, apresentamos os nossos cordiais cumprimentos.

  3. Aproveito para saudar respeitosamente V.Exa, desejando-lhe que esteja e continue em segurança e de boa saúde.

Considerações finais

Foi objetivo desta contribuição descortinar o funcionamento da comunicação entre a instância cidadã e a instância política. Através de uma análise de um mecanismo microtextual (as formas de tratamento), descobrimos num corpus de vinte cartas abertas que o estilo protocolar mantém-se, os remetentes (na sua grande maioria) usando formas de tratamento que expressam um alto grau de deferência: Excelência (expressão precedida ou não por possessivos, como Vossa ou Sua), cargo político (Presidente da República, Primeiro Ministro), título académico (Doutor), profissão (Professor), nome completo (Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa), adjetivos qualificativo (Excelentíssimo, digníssimo, caro).

Por um lado, esta escolha linguística mostra a configuração de uma distância interlocutiva significativa entre a instância cidadã e a instância política, o que coincide com o índice bastante elevado de distância do poder, segundo as teorias de Hofstede et al (2010)10. Por outro lado, as formas vocativas, que pressupõem uma interpelação direta do interlocutor são bastante frequentes no corpus, o que mostra também uma tendência de reduzir esta distância.

Referências

1. Angenot M. (1982). La Parole pamphlétaire. Typologie des discours modernes. Paris: Payot. [ Links ]

2. Bourdieu P, Wacquant L. (1992) Réponses. Pour une anthropologie réflexive. Paris: Le Seuil. [ Links ]

3. Carreira M H A. (1997). Modalisation linguistique en situation d’interlocution : proxémique verbale et modalités en portugais. Leuvain-Paris: Éditions Peeters. [ Links ]

4. Charaudeau P. (2005). Le discours politique. Les masques du pouvoir. Paris: Vuibert [ Links ]

5. Cintra L. (1986). Sobre “formas de tratamento” na língua portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte. [ Links ]

6. Hofstede, G. et al (2010). Cultures and Organizations. Software of the Mind. Intercultural Cooperation and Its Importance for Survival. New York: McGraw Hill. [ Links ]

7. Joly B. (2014). Histoire politique de l’affaire Dreyfus. Paris: Fayard. [ Links ]

8. Kerbrat-Orecchioni K. (1998). “L’interaction épistolaire”. In Jürgen Seiss (dir.) La lettre entre réel et fiction”. Paris: Sedes. [ Links ]

9. Kerbrat-Orecchioni K. (2010). S’adresser à autrui. Les formes nominales d’adresse en français. Charenton-le-Pont: Éditions de l’Université de Savoie. [ Links ]

10. Maingueneau. (1998). “Scénographie épistolaire”. In J. Seiss (dir.) La lettre entre réel et fiction”. Paris: Sedes. [ Links ]

11. Manole V. (2020). O debate parlamentar em português (Portugal, Brasil) e romeno: análise pragmático-discursiva. Cluj-Napoca: Cartea Cartii de Stiinta. [ Links ]

12. Nascimento M F B de. (2020). “Formas de tratamento”. In E. Buzaglo Paiva Raposo et al (org.) Gramática do Português. vol. 3 (pp. 2701-2732). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. [ Links ]

13. Saki, M. (2013). “Rôles et formes de l’adresse dans la lettre ouverte”. Le tour critique.1, 125-145. [ Links ]

14. Constituição da República Portuguesa: https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/337/201903261608/127993/diploma/indiceLinks ]

15. Hofstede Insights - Country Comparison: https://www.hofstede-insights.com/countrycomparison/portugal/Links ]

Notas

1. Este trabalho foi redigido no âmbito do projeto de investigação “Formas de tratamento na pragmática histórica das línguas românicas: uma abordagem comparativa romeno-português” (código de identificação: PN-III-P1-1.1-PD-2019-0544), financiado pelo Ministério do Ensino e da Educação da Roménia. Site do projeto: http://addressrom.granturi.ubbcluj.ro/

2. Usamos a noção de campo social [champs social] na aceção de Pierre Bourdieu: “en termes analytiques, un champ peut être défini comme un réseau, ou une configuration de relations objectives entre des positions. Ces positions sont définies objectivement dans leur existence et dans les déterminations qu’elles imposent à leurs occupants, agents ou institutions, par leur situation actuelle et potentielle dans la structure de la distribution des différentes espèces de pouvoir (ou de capital) dont la possession commande l’accès au profits spécifiques qui sont en jeu dans le champ, et du même coup, par leurs relations objectives aux autres positions (domination, subordination, homologie, etc.)” (Bourdieu & Wacquant 1992, 73).

3. Em Manole (2020) mostrámos que as relações entre as diferentes instâncias que participam no contrato de comunicação política são de facto bidirecionais.

4. Uma descrição muito detalhada da Affaire Dreyfus e do seu contexto social e político pode ser encontrada em Joly (2014).

5. O texto integral da Constituição da República Portuguesa pode ser consultado no site do Diário da República: https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/337/201903261608/127993/diploma/indice (última consulta 15 de novembro de 2020).

6. Analisando as cartas abertas em ficção, Angenot (1982, 59) fala de uma subversão das caraterísticas prototípicas do género epistolar: a confidencialidade do conteúdo, uma relativa intimidade entre o remetente e o destinatário e a reciprocidade da troca de mensagens.

7. Maingueneau (1998) fala de um cenário epistolar, justamente porque a falta de confidencialidade não permite uma correspondência autêntica.

8. Kerbrat-Orecchioni (1998) faz uma descrição da interação epistolar, comparando-a com a interação face a face e identifica os seguintes elementos: a abertura, o corpo da carta e o fecho.

9. Neste sentido, Saki (2013) fala de auditório universal vs auditório particular.

10. Em Portugal o índice tem o valor de 63. A título de comparação, no Reino Unido este índice é de 35 e nos países escandinavos é de 18 (Dinamarca), 31 (Suécia), 18 (Países Baixos). Nos países do Sul da Europa, o índice tem valores mais elevados do que nos países do Norte: Espanha (57), Itália (50), Grécia (60). Porém, Portugal tem o índice mais elevado entre os países do Sul, o que pode explicar também a necessidade de codificar esta distância a nível linguístico, através de um sistema complexo de formas de tratamento.

Recebido: 02 de Dezembro de 2020; Aceito: 10 de Maio de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons