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Revista Internacional em Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 2182-4452versão On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.44  Lisboa dez. 2023  Epub 14-Dez-2023

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2023.44/pp.99-112 

Artigo Original

A conexão da cultura e identidade africana com o turismo

Bumba Manuel de Castro1 

1Professor Auxiliar na Escola Superior de Hotelaria e Turismo (ESHOTUR) da Universidade Agostinho Neto.


Resumo

A mundividência das comunidades africanas, de valorização da interdependência num contexto de sincretismo, miscigenação e hibridação cultural está intimamente ligada aos valores atuais que o turismo apregoa. A reflexão que se apresenta tem como objetivo contribuir na consolidação da narrativa factual de conexão entre a cultura e turismo e sustentar a necessidade do continente africano reconfigurar a sua identidade cultural para conectar-se melhor com a atividade turística. Para o efeito, foi efetuada uma análise e revisão da literatura e procedeu-se a sintetização de conteúdos de livros e artigos científicos relacionados com as palavras-chave, onde se concluiu que a afirmação de África como ator relevante universal passa por projetar a sua própria trajetória, sendo o turismo um instrumento fundamental para essa afirmação.

Palavras-chave: cultura; África; identidade; Agenda 2063; turismo

Abstract

The worldview of African communities, valuing interdependence in a context of syncretism, miscegenation and cultural hybridization, is closely linked to the current values that tourism proclaims. The present reflection aims to contribute to the consolidation of the factual narrative of the connection between culture and tourism and to support the need for the African continent to reconfigure its cultural identity to better connect with the tourist activity. For this purpose, a literature review and analysis was carried out and the contents of books and scientific articles related to the keywords were synthesized, where it is concluded that the affirmation of Africa as a relevant universal actor involves projecting its own trajectory, with tourism being an important instrument for this affirmation.

Keywords: culture; Africa; identity; Agenda 2063; tourism

Introdução

O turismo é uma manifestação da cultura dos povos cujas particularidades originaram deslocações desde os primórdios da humanidade. A luta pela sobrevivência, a curiosidade e o exercício constante de melhoria da condição de vida são fatores que impulsionaram as comunidades a movimentações periódicas. A contínua superação e o emergir de novas necessidades, através do processo permanente de transformação da natureza em cultura, ampliou e diversificou as necessidades de viagens até ao surgimento do turismo moderno no século XVII.

Embora a atividade turística moderna seja consequência dos movimentos culturais desencadeados pelo renascimento europeu, por meio do revivalismo cultural greco-romano (Cunha, 2013; Richards, 2005; Urry, 2001), que dá origem a civilização ocidental, os antecedentes mais antigos desta atividade remontam da civilização egípcia, com registos de há cinco mil anos (Goeldner & Ritchie, 2006). Na verdade, as civilizações como a expressão máxima das culturas dos povos, modelaram sempre a evolução da humanidade.

A origem do turismo pela cultura, o objeto de análise do primeiro tema desta reflexão, é argumentada na base das amostras de expressão cultural e civilizacional que impeliram as viagens e forjaram a organização estrutural dos recursos naturais e culturais nos destinos e o aparecimento da indústria da atração e do acolhimento (o turismo). Esta indústria, ao fomentar a movimentação de milhares de milhões de visitantes, tem sido das principais impulsionadoras da convivência e interação cultural entre os diferentes povos e promotora da hibridação cultural em direção a uma cultura universal.

No segundo tema é abordada a necessidade de África relevar a ligação da sua cultura com o turismo, reconfigurando a sua identidade. A necessidade de conhecer o continente africano deve ser o alicerce para a compreensão da própria trajetória humana, desde os primeiros hominídeos, e constituição da bússola para a identificação do “eu” de cada um. Isto implica, primeiramente, ter noção da África que se quer, conforme o estabelecido na Agenda 2063 da União Africana, para que se torne novamente num ator determinante no universalismo que precisa da contribuição de todas as regiões.

O último tema desta reflexão sustenta a necessidade de África encarar o turismo como um catalisador para se dar a conhecer melhor. Se a atividade turística precisa de testemunhos da cultura e dos vestígios do passado, o turismo apresenta-se como um instrumento relevante na reconfiguração identitária do continente e na construção imagética auténtica, em oposição aos discursos exclusivamente degradantes produzida por outros olhares. A proposta de reforço da memória coletiva, valorização da cultura e dos patrimónios e (re)construção de identidades que o turismo é capaz de apresentar, justificam a relevância da conexão da cultura africana com a atividade turística.

Portanto, este texto visa por um lado contribuir para a consolidação da narrativa fatual da conexão entre o turismo e a cultura, através de uma breve abordagem histórica sobre a génese da atividade turística e, por outro, sustentar a necessidade do continente africano reconfigurar a sua identidade cultural para conectar-se melhor com a atividade turística, afirmando-se como ator universal relevante no contexto atual de sincretismo, miscigenação e hibridação cultural. Para o efeito, a reflexão centrou-se na análise documental e revisão da literatura sobre os conceitos principais abordados, procedeu-se a sintetização de conteúdos de livros, artigos científicos e da Agenda 2063 da União Africana para o cumprimento dos objetivos propostos.

A origem do turismo pela cultura

A história das deslocações e viagens é intrínseca à condição humana e a imperatividade da satisfação de suas necessidades. Se nos primórdios da humanidade até a chegada do Homo Sapiens o objetivo era o de perpetuar a espécie pela sobrevivência, a partir do período neolítico as necessidades de viagens foram sendo ressignificadas e redimensionadas de acordo com toda a arquitetura político-administrativa e socioeconómica criada. À contínua procura de respostas pelo desconhecido juntou-se-lhe novas necessidades, como a descoberta do outro, que motivaram viagens programadas e inadvertidas ao longo da história (Castro, 2019; Harari, 2018; Wilson, 2013).

Na sua ação permanente de superação dos obstáculos para satisfazer necessidades, o Homo Sapiens compreendeu o valor da imaterialidade partilhada em grupo que permitiu em determinados momentos relativizar as necessidades elementares, dimensionou a espiritualidade para uma divindade inquestionável, buscou sempre o significante e o significado da vida, produziu religião e foi além da realidade com as artes. O Homo Sapiens criou o mundo pela cultura e atingiu a máxima expressão material com as civilizações.

A civilização, como expoente máximo da cultura dos povos, desperta a curiosidade e a perplexidade do olhar exógeno, ao mesmo tempo que a sua magnificência e exuberância atraem e incrementam o afluxo de visitantes para contemplar o nunca antes visto. Foi assim que as civilizações como as do Egito, Mesopotâmia, Fenícia ou Roma se transformaram em grandes destinos mundiais do mundo antigo. Os conhecimentos evidenciados pela civilização egípcia na arquitetura, materializadas em pirâmides, obeliscos, estátuas, esfinges e edificações continuam a gerar assombros e perguntas sem respostas até hoje. É precisamente no Egito onde existem os registos mais antigos de viagens que podem ser associadas a atividade turística, assentes na organização de cruzeiros de recreio pelo rio do Nilo (Goeldner & Ritchie, 2006).

Five thousand years ago, cruises were organized and conducted from Egypt. Probably the first journey ever made for purposes of peace and tourism was made by Queen Hatshepsut to the land of Punt (believed to be on the east coast of Africa) in 1480 B.C.E. Descriptions of this tour have been recorded on the walls of the temple of Deir el-Bahri at Luxor. These texts and bas-reliefs are among the world’s rarest artworks and are universally admired for their wondrous beauty and artistic qualities. The Colossi of Memnon at Thebes have on their pedestals the names of Greek tourists of the fifth century B.C.E. (Goeldner & Ritchie, 2006, p. 41).

Embora existam desde a antiguidade viagens lúdicas e com outras motivações enquadráveis no conceito de turismo, a atividade turística que conhecemos hoje é relativamente recente e tem a sua génese na Europa. Foram as amostras de expressão cultural e civilizacional da Grécia antiga e do Império Romano que impeliu os aristocratas ingleses a enviarem os seus filhos ao sul da Europa como estágio último da formação académica. Conhecer os escritos dos filósofos da antiguidade, contemplar a monumentalidade arquitetónica e as obras de arte antiga e do renascimento europeu eram os argumentos sólidos para a materialização dessas viagens popularizadas de Grand Tour. É dessas viagens do século XVII que nasce o turismo moderno, já na era da procura de novos mundos e do comércio de escravos transatlântico (Cunha, 2013; Figueira & Dias, 2011; Richards, 2005; Sardo & Estevão, 2012; Urry, 2001).

O turismo, enquanto atividade que privilegia o desconhecido e a descoberta num ambiente distante, procura alimentar as pessoas com novas experiências através da realidade produzida. É a ânsia e a apetência de encontrar o diferente que nasce o desejo, cria a necessidade e provoca a motivação para viajar. O idioma e o sotaque à chegada no destino, a vestimenta, o mobiliário urbano, a expressão artística, a gastronomia, os ritmos locais e a paisagem humana são cenários irrepetíveis presentes em qualquer viagem, independentemente do motivo que a originou. São essas amostras de expressão cultural e civilizacional da Grécia antiga e do Império Romano que redefiniram a forma de viajar, conforme referido.

A diferença entre o Grand Tour e as viagens anteriores assenta fundamentalmente na organização da estrutura de acolhimento no local de destino. A dimensão da viagem turística deve ser avaliada não apenas pelas motivações dos viajantes, que implica o não exercício de atividade remunerada no destino, mas também pela estrutura organizacional da oferta, direcionada a receber condignamente os visitantes de forma sistémica e permanente. Com o Grand Tour os destinos como França e Itália, interiorizando os benefícios económicos e do intercâmbio cultural proporcionado pelas viagens, criaram a indústria do acolhimento com a organização dos vários componentes da oferta (alojamento, serviços de restauração, roteiros e circuitos turísticos, guias e produção panfletária) para o consumo do turista (Richards, 2005; Sardo & Estevão, 2012; Urry, 2001).

O turismo como o conhecemos hoje surge quando começa a haver preocupações de orientação da visita e a conceção de produtos turísticos nos destinos para consumo e satisfação do turista. Uma novidade trazida com o Grand Tour que permitiu consolidar vários destinos turísticos na Europa, situação que não se verificava de forma recorrente antes do século XVII. Por conseguinte, as motivações subjacentes naquelas viagens, que introduziram ou relevaram a noção de produto e destino turístico, fundamentam a génese e essência do turismo por via da cultura (Castro, 2019; Cunha, 2013; Figueira & Dias, 2011; Sardo & Estevão, 2012).

Sem pretender menorizar os recursos naturais, as realizações culturais de uma determinada circunscrição geográfica num certo tempo têm sido sempre elementos diferenciadores de atração e de produção turística. A perenidade do turismo está, pois, intrinsecamente ligada a cultura dos povos, não obstante os processos acelerados de hibridação cultural nas sociedades atuais, resultado do incontornável fenómeno da globalização.

Hibridação cultural vs. Identidade africana

A liberdade de circulação e as interações culturais são cada vez mais favorecidas fundamentalmente por razões económicas, o que faz com que a maioria das cidades no mundo esteja em processos constantes de cosmopolização, rumo a uma cultura universal. No entanto, nesse cenário de sincretismo, miscigenação e aparente homogeneidade irrompem correntes turísticas em busca da diferenciação, recusando terminantemente a supressão dos valores identitários que é suposto os destinos proporcionarem.

A potenciação da homogeneidade cultural planetária é, porventura, consequência da política liberal de busca incessante de mercados, exponenciada no nosso tempo (Harvey, 2011), que conta com representações simbólicas e narrativas individualizadas de felicidade protagonizadas por “agentes dominantes” da civilização ocidental. Citando exemplos, atualmente a McDonalds, a Coca-Cola e o Facebook podem ser considerados dos principais agentes desta civilização. Ironicamente, essa ação cultural totalizante tende a fazer emergir a cultura das minorias sufocadas pela velocidade dos acontecimentos e potenciar as identidades locais dentro do global. Uma reivindicação do oposto numa relação binária que obriga a existência do diferente para a manutenção da ordem social. (Taylor, 1998).

As viagens e o turismo são fomentadoras, para o bem e para o mal, da cultura universal totalizante e ao mesmo tempo instrumento de apoio às forças contrárias que clamam por diferenciação e manutenção da ordem social. As viagens e o turismo, se por um lado têm o condão de fomentar valores de alteridade e multiculturalismo, isto é, fomentam a convivência na diferença, por outro, são propiciadoras de instabilidade identitária e de incentivo à hibridação com a diluição das fronteiras geográficas e culturais.

Mas como marcar posição num espaço global com forças poderosíssimas que ditam as regras e os ritmos da existência? Como os africanos evitarão sucumbir à cultura totalizante? “A África Que Queremos” é a tradução do quadro estratégico comum para o crescimento inclusivo e o desenvolvimento sustentável desenhado pela União Africana (UA) em 2013. Procura dar resposta aos inúmeros problemas do continente através de uma visão Pan-Africana integrada, próspera e pacífica, impulsionada pelos seus próprios cidadãos, representando uma força dinâmica na arena internacional. Este quadro, designado de Agenda 2063 tem fortes ligações e semelhanças com a Agenda 2030 - Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. É um documento estruturado em sete aspirações a serem reduzidos em planos decenais para a sua implementação até 2063. Volvidos cinquenta anos desde a fundação da Organização de Unidade Africana (OUA), predecessora da UA, África projetou um desenvolvimento sustentável para o continente, assente numa independência total: política, económica e cultural (Comissão da União Africana [CUA], 2013).

A realidade é que África continua presa às amarras de um processo histórico recente abjeto, refletido não apenas em três séculos e meios de escravização de suas gentes, mas de todo um discurso humilhante de negação de sua história, de apropriação das suas realizações e patrimónios e, consequentemente, do seu contínuo vazio identitário. A desumanização e coisificação do homem negro no período da escravatura negou à Africa a sua história, e a imagética difundida pelos colonizadores era a de um espaço primitivo e selvagem, com habitantes num estágio inferior de humanidade que precisavam urgentemente de um banho de civilização (Ntuli, 2012; Prah, 2012).

A caricatura de um continente onde nada aconteceu até a sua “descoberta” persiste até hoje. A representação de África que vigora continua a ser feita pelos outros. Continua a lhe ser negada o reconhecimento da sua contribuição na construção da civilização ocidental e é constantemente agredida com o não reconhecimento da sua história e das suas realizações.

De acordo com Taylor (1998):

O não reconhecimento pelo outro transmite uma imagem limitativa de inferioridade e desprezo da própria pessoa. Implica não apenas uma falta de respeito, marca também as vítimas dessa falha de forma cruel, subjugando-as através de um sentimento incapacitante de ódio contra elas mesmas. Por isso, o respeito devido não deve ser visto como um ato de altruísmo para com os outros. É antes uma necessidade humana vital. (p. 46).

Obviamente que o não reconhecimento ou o reconhecimento enviesado, com vista a vitalizar um plano contínuo de subjugação, não pode ser rebatido com a vitimização e o apego desprestigiante à caridade, num suposto amparo com recursos que, curiosamente, têm origem no solo africano. Tão pouco se obtém reconhecimento e respeito retornando terminantemente às raízes, sustentando-se unicamente do passado glorioso que deixou de suportar convenientemente um percurso de vida endógena. Não se recomenda de todo a amnésia para com o passado nem miopia para com o futuro.

Prah (2012) sustenta que ao se afirmar que o desenvolvimento e o renascimento africano devem basear-se num respeito pelas práticas culturais intrínsecas ao espírito africano, não significa que se regresse em absoluto às práticas culturais do passado ou a um revivalismo atávico que não tem lugar no mundo contemporâneo. Os vestígios do passado devem servir como catalisador do orgulho e autoestima para a redefinição identitária, num mundo que demanda cada vez mais a cultura africana, não obstante os problemas atuais de subdesenvolvimento estrutural e emigração em massa.

A atração por África e a necessidade de a conhecer cada vez melhor justifica-se não apenas pela riqueza do seu solo, mas também pela necessidade de compreender de forma inteligível toda a trajetória humana desde os primeiros hominídeos da Garganta de Olduvai. Conhecer África significa, em última análise, obter uma bússola para a identificação do “eu” de cada um.

Todavia, não obstante as boas intenções da Agenda 2063, as dificuldades de afirmação do africano perante o mundo traduzidas na ineficiência económica e no esvaziamento da sua identidade são bastantes visíveis. Basta que cada um observe em si mesmo a sua rotina, os produtos e os bens à sua volta, os currículos escolares e o Deus que professa. Os africanos precisam recuperar a sua identidade. Precisam “ter noção do ambiente no qual os (…) gostos, desejos, opiniões e aspirações façam sentido” (Taylor, 1998, p. 54); que a terra natal, a língua, a comida e o ar que se respira molda a forma de ser e estão circunscritos ao meio em que se vive. Os africanos precisam ter noção que estão “despidos e vazios” porque as referências para a alimentação do seu ethos são alheias.

A identidade de um povo é a expressão da sua cultura, conformada na interação das pessoas e os resultados de aprendizagem que são assimilados, acumulados e passados por gerações, por meio do relacionamento social, artefactos materiais, construções humanas e manifestações intangíveis diversas (Burns & Novelli, 2006). Por sua vez, a cultura é determinada pelo meio no qual os seres humanos produzem. A convivência, a língua, os deuses, a música e a dança são produtos da introspeção humana e reflexo da interação com a sua envolvente.

Portanto, o ambiente tropical africano produzirá sempre um saber e uma linguagem que envolve a sua mundividência de florestas densas ou de desertos, da biodiversidade e da comida tropical, da carga chuvosa e do clima temperado. A interação com esse ambiente produz um saber e uma linguagem refletida na mulher e no homem africano. Isto significa que os africanos têm de (re)aprender a autoafirmarem-se, projetar o seu destino, marcar a diferença e enriquecer culturalmente a humanidade com a sua diversidade. Não como uma força antagónica incapaz de conviver com o que lhe é alheio, mas, acima de tudo, com um espírito de tolerância e respeito pela diversidade dentro do universalismo que precisa da contribuição de todos os continentes.

A quinta aspiração da Agenda 2063 procura o compromisso de produzir uma África com forte identidade cultural, herança, valor e éticas comuns, aproveitando o seu rico património e cultura para garantir que as artes criativas sejam um grande contributo para o crescimento e a transformação do continente, assim como a restauração e preservação do património cultural africano, incluindo as línguas. Para o decénio 2013-2023 a Agenda estabelece como áreas prioritárias os valores e ideias do pan-africanismo; valores culturais e renascimento africano; herança cultural, artes e negócios. Nesta perspetiva, alguns dos resultados esperados pelos cidadãos africanos no final deste decénio são (CUA, 2013):

  • Utilização das línguas nacionais nos sistemas e estruturas administrativas. Oferta de programas de artes criativas e de gestão de microempresas culturais em pelo menos 20% dos politécnicos;

  • Pelo menos 30% dos patrimónios e tesouros culturais terão sido repatriados e catalogados para futura utilização no Museu Africano, previsto para 2035;

  • Os pontos focais para a gestão das relações com a diáspora terão sido nomeados em todos os Estados. O conteúdo cultural dos currículos escolares é aumentado em pelo menos 60% do nível de 2013. A primeira edição da Enciclopédia Africana será lançada pela Conferência da União Africana em 2023.

Para Makgoba, Shope, e Mazwai (2012, p. 23) a definição do africano assenta essencialmente em três elementos: história, cultura e consciência. As reflexões dos autores convergem com as metas traçadas na Agenda, visto que uma das formas de manter a consciência de um povo sobre as suas raízes históricas e culturais é ter como suporte a língua. Os autores sustentam que a língua não constitui simplesmente um meio de expressão ou comunicação, mas um corpo de conhecimento de um determinado povo, a língua constitui o veículo da identidade e da cultura. Através da língua transmite-se ciência e tecnologia, educação, sistemas políticos e desenvolvimento económico. Por fim os autores interrogam-se: conseguirá o povo africano defender a sua renascença através de línguas estrangeiras?

Diop responde: “nenhum país no mundo consumou o desenvolvimento através de uma língua estrangeira. África é o único dos três continentes que esteve sob o jugo da opressão colonial e, várias décadas após a sua independência, ainda se encontra dividida em função de línguas europeias: a chamada “África lusófona, anglófona e francófona” (Diop, 2012, p. 40). “Language as culture is the collective memory bank of a people’s experience in history. Culture is almost indistinguishable from the language that makes possible its genesis, growth, banking, articulation and indeed its transmission from one generation to the next” (Thiong’o, 1986, p. 15).

Sem cultura não há educação e sem educação África continuará faminta, suja, doente, ignorante e prostituída. O desenvolvimento de África passa pela descolonização da mente do africano, principalmente dos seus governantes. Isso implica o reforço da cultura endógena e a implementação de projetos educativos baseados nessa cultura, ao invés dos discursos vazios e populistas. África precisa, mais do que nunca, se orientar na sua cosmovisão, e na sua filosofia de humanidade, baseada no universo como um todo orgânico em prol da harmonia de todos os seus componentes.

O africano precisa recuperar a ética social unificadora que permitiu a orientação metafísica das suas coletividades, traduzida no mote “somos pessoas através dos outros” e, portanto, isoladamente não há existência humana. Esta é a conceção das comunidades africanas, designada de filosofia ubuntu, que reg(e)ia a conduta humana, as instituições e os padrões de pensamento. Não obstante o momento atual da inteligência artificial 5G e nG que se seguirão, o africano está obrigado a conservar o seu ethos, tendo noção que a identidade é um processo de permanente construção de acordo com o contexto espaciotemporal.

Ao finalizar este tema, urge recuperar o trecho de Ntuli sobre a necessidade de África seguir o exemplo da Europa, quando se libertou do período milenar de trevas da sua idade média. “A renascença europeia começou na Itália. Começou de um clima de morte, violência e decadência devido a inquisição, corrupção na mais alta instituição moral - a igreja. Os italianos inspiraram-se na cultura grega e romana de modo a forjar um novo humanismo para si próprios e definir o rumo para a regeneração e prosperidade. Todos os proventos das viagens marítimas eram canalizados para a construção de igrejas, encomenda de obras de arte e pinturas como as da Capela Sistina. Podemos aprender com esse exemplo” (Ntuli, 2012, p. 229).

Portanto, os africanos podem se alimentar deste exemplo. Dito de outra forma, o Egito deve estar para África como está a Grécia e Roma para a Europa.

Cultura e identidade africana e sua conexão com o turismo

Os fundamentos basilares da cosmovisão africana se convergem com os valores do multiculturalismo e do espírito de alteridade que o novo turismo apregoa, uma atividade que se quer economicamente viável, ambientalmente saudável e socialmente inclusiva. O turismo é a atividade que movimenta o maior número de pessoas no planeta, fomenta uma intensa e diversificada ligação entre as pessoas e é um facilitador de aproximação e enriquecimento cultural dos povos. Por isso, o turismo é um aliado privilegiado para alimentar culturalmente os visitantes dos destinos africanos.

A atividade turística necessita de testemunhos da cultura para a formatação dos roteiros e para a conceção de produtos. Necessita do contato com os vestígios do passado e do intercâmbio cultural. A relevância da conexão da cultura com o turismo em África está na contribuição da reconfiguração identitária do lugar e na valorização do talento de suas gentes, focada na inclusão social (Bursztyn, Bartholo & Delamaro, 2009). Porque o turismo desenvolve os lugares onde se estabelece, requer a conceção de modelos que buscam a superação da privação de liberdades que limitam as escolhas e oportunidades das pessoas e comunidades.

Zaoual (2009, p. 62) sustenta que os visitantes não procuram mais exclusivamente a mudança de hábitos, mas também as diferenças culturais locais ignoradas, ou ainda redescobrir o que lhe pareceu ser suas próprias raízes. São essas necessidades genuínas que África tem de sentir para reorientar os seus espaços no sentido de proteger e valorizar a variedade de patrimónios que possui. A lógica fordista replicada no continente, de concentração urbana com elevada densidade populacional, tem de ser invertida por uma lógica de melhor espacialidade, num território bastante vasto, e responder satisfatoriamente a uma demanda que procura lugares e não “cidades-shoppings”.

Uma das oportunidades que África tem perdido para o seu reavivamento e o empreendimento firme de um novo começo é o distanciamento para com a sua diáspora. A perspetiva da Agenda 2063 de estabelecer pontos focais para a gestão das relações com a diáspora em todos os Estados até 2023, caso se efetive, seria um enorme contributo para o crescimento do continente. Conforme atesta o documento, essa conetividade permitirá gerir os programas de dupla cidadania, competências, força de voluntários e mercado da diáspora.

Do ponto de vista turístico a diáspora africana é um mercado em potência. Segundo Teye (2009), a expansão do segmento do turismo patrimonial na África subsaariana desde os anos 1970s tem demonstrado um interesse particular no património negro e nas manifestações culturais como as línguas, música, dança, livros, arte e gastronomia. Visitar a terra mãe permite fazer conexão espiritual, emocional e psicológica, e experimentar um processo de (re)descoberta e busca pela origem, depois de séculos e gerações passadas. É um mercado que tem origem nos cerca de doze milhões de ascendentes escravizados entre os anos de 1520s e 1860s, sobretudo na América do Sul e Caraíbas, Estados Unidos, Reino Unido e França.

Mas a diáspora é também constituída por milhões de africanos e seus descendentes do período pós-independência, muitos deles ostracizados no país de origem por governantes absolutistas com uma agenda exclusiva de eternização no poder. Muitos desses africanos e afrodescendentes, outrora perseguidos ou fugidos da miséria, são cidadãos trabalhadores, desportistas, artistas, empresários, governantes e cientistas, na América e na Europa, com vontade de contribuir para o desenvolvimento da terra mãe.

Como as dinâmicas atuais do confronto entre o rural e o urbano, cidade e subúrbio, homem e natureza se sustentam no território e nas múltiplas dimensões de poder, símbolos, afetos e atitudes, torna-se fundamental interpretar corretamente o território para evitar o aprofundamento das assimetrias geográficas que agravam as desigualdades sociais e a diferença de oportunidades nas comunidades africanas (Castro, 2019, p. 426). O turismo por ser uma atividade com capacidade para conciliar os confrontos e as assimetrias, implica também que se tenha noção na sua conexão com a cultura do seu poder “destrutivo” se não forem equacionadas devidamente as externalidades negativas, entre elas a sobrecarga dos lugares. “Os estrangeiros não se incomodam em fotografar onde é proibido, subir nos altares, nos túmulos e monumentos e escrever em estátuas” (Kripperndof, 2009, p. 106). O visitante traz dinheiro, mas também pode desrespeitar os símbolos e a história locais. O turismo ao se transformar numa grande indústria mundial induz a maioria dos países, principalmente aqueles em via de desenvolvimento, em mergulhar numa onda turística em que se explora quase todos os espaços, histórias e atividades sociais, independentemente do seu simbolismo e sacralização (Castro, 2019). Tudo para agradar o visitante em nome de propósitos exclusivamente economicistas.

A valorização identitária de África através do turismo significa desenvolver projetos que têm como foco o africano, o autóctone, o residente. Os planos de desenvolvimento turístico só podem ter aplicabilidade e sucesso se for para reforçar a qualidade de vida dos residentes, de modo que estes tenham algum controlo dos meios de produção e sejam também consumidores turísticos. Os cenários degradantes de fiéis servidores de apetites dos visitantes, muito ajustados às feições neocolonialistas apreciadas noutras geografias, em nada dignificam África. Se abordado numa perspetiva horizontal, o turismo contribui para uma maior integração e complementaridade de atividades porque os investimentos no setor são caraterizados em grande medida por micro e pequenas unidades produtivas, com prestações fragmentadas sem exigência de elevados recursos financeiros (Castro, 2019; Cunha, 2013). Essa particularidade faz com que o turismo esteja melhor colocado para aliviar a pobreza no continente africano, pois permite alcançar melhor desempenho económico e melhor distribuição da riqueza, ao transferir com mais facilidade o rendimento dos mais ricos para os mais pobres. Mas os africanos precisam interiorizar que nem todas as localidades devem ser convertidas, irremediavelmente, em destinos turísticos. Existem lugares e patrimónios das populações que são sagrados para o culto das divindades ou para a reverência aos ancestrais, cujo acesso a estranhos é no mínimo um sacrilégio. É preciso evitar que a pobreza material subjugue os valores intangíveis e a espiritualidade dos povos. É preciso evitar que o dinheiro compre a dignidade. Por outro lado, de acordo com Toselli (2019, p. 344), é preciso empregar instrumentos relevantes de avaliação e diagnóstico que permitam aferir se uma localidade possui potencial para o desenvolvimento do turismo, cuja aplicação permite tomar melhores decisões.

Portanto, o turismo estimula a economia e o desenvolvimento local, é dos principais instrumentos de revitalização das cidades e dos territórios deprimidos. Possui inesgotáveis propostas para o reforço da memória coletiva, da valorização da cultura e dos patrimónios e da reconstrução de identidades. No entanto, é necessário que os poderes públicos em África fomentem instituições democráticas inclusivas, públicas e privadas, que possam otimizar os recursos disponíveis, as competências e os mecanismos de criatividade e inovação para o desenvolvimento das populações (Acemoglu & Robinson, 2013).

Os vários aspetos da atividade turística que promovem mais-valias nos territórios e garantem a melhoria da qualidade de vida das populações devem ser os primeiros na hierarquia de importância e prioridade. O paradigma de intervenção dos atores do setor tem de mudar para que haja democratização dos benefícios ao invés da habitual privatização dos lucros. Assim o turismo tem condições para ser um verdadeiro vetor de coesão social e expressão de identidade cultural em África.

Considerações finais

A primeira ilação a retirar desta reflexão é de que o turismo, enquanto atividade que privilegia a busca pelo desconhecido e a descoberta, alimenta as pessoas com novas experiências através da realidade produzida, sobretudo a das manifestações culturais dos povos. A produção dessa realidade germina o desejo, cria a necessidade e provoca a motivação de viagem. Foram as amostras de expressão cultural e civilizacional da antiguidade, reavivadas no renascimento europeu, que produziram a necessidade e a motivação de viagem da nobreza inglesa, apadrinhando o surgimento do turismo como a indústria da atratividade e do acolhimento.

A segunda ilação é sustentada na condição incontornável do turismo em África dever ancorar-se na cultura, reconstruindo e reconfigurando identidades, num

contexto universal de hibridação cultural. A filosofia ubuntu das comunidades africanas dispõe de valores que o turismo do continente deve apregoar. O espírito de alteridade e o multiculturalismo subjacentes nesta filosofia sustentam as dimensões ambientais, socioculturais e económicas que África deve apresentar aos seus visitantes.

A última ilação é um alerta para os perigos da conexão entre a cultura e identidades africanas com o turismo, por este ser um consumidor intenso de espaços territorializados. Não obstante a grande capacidade conciliadora e aglutinadora do turismo, a sua conexão com a cultura não está imune a “forças destrutivas” que precisam ser acauteladas para minorar os seus malefícios. É imperativa uma mudança de paradigma dos decisores africanos para uma abordagem altruísta, conforme aspira a Agenda 2063 da UA, para que África construa a sua própria narrativa e que as mais-valias geradas pelo turismo melhorem a qualidade de vida das suas comunidades.

Referências

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Recebido: 28 de Setembro de 2022; Aceito: 01 de Dezembro de 2022

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