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Revista Internacional em Língua Portuguesa

versión impresa ISSN 2182-4452versión On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.44  Lisboa dic. 2023  Epub 14-Dic-2023

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2023.44/pp.113-133 

Artigo Original

A reserva territorial dos aborígenes potiguaras do Brasil: um locus simbólico

José Manuel Simões1 

1University of Saint Joseph, Macau.


Resumo

Os vários volumes coordenados por Pierre Nora para perseguirem uma história dos lugares da memória da França tornaram-se em referência teórica multidisciplinar para quem, como nós, procura reconstruir as memórias com que se organiza hoje a terra dos aborígenes Potiguara do Brasil. Na introdução ao volumoso trabalho que dirigiu durante oito anos, Nora explicava o seu entendimento epistémico da noção de “lugares da memória”, sublinhando que um “lieu de mémoire” é qualquer entidade significativa que, material ou imaterial por natureza, através da vontade humana ou do desgaste do tempo, se tornou um elemento simbólico da herança memorial de uma comunidade. Acrescentava ainda o historiador francês que, sendo a memória a estrutura fundamental deste processo geralmente demorado, convinha entendê-la como um fenómeno de emoções e magias que apenas acomoda os factos que a alimentam. Em rigor, a memória é sempre vaga, reminiscente, agita tanto impressões gerais quanto finos detalhes simbólicos. Mais ainda, a memória é sempre vulnerável a transferências, recordações reprimidas e imaginadas, a censuras e a todo o tipo de projeções. (Nora, 1984). Neste artigo, procuramos perceber que os lugares da memória são também quase sempre o que nos chega, fica e seleciona o passado. A própria reserva onde vivem surge como um locus simbólico ao qual os potiguaras se agarram com todas as suas forças para preservarem o que lhes resta do seu passado.

Palavras-chave: aborígenes Potiguara; lugares de memória; reconstrução das memórias; censuras; locus simbólico; preservar o passado

Abstract

The various volumes coordinated by Pierre Nora to pursue a history of the places of memory in France have become a multidisciplinary theoretical reference for those who, like us, seek to reconstruct the memories with which the land of the Potiguara aborigines of Brazil is organized today. In the introduction to the voluminous work that he directed for eight years, Nora explained his epistemic understanding of the notion of “places of memory”, stressing that a “lieu de mémoire” is any significant entity that, material or immaterial in nature, through a human will or the wear and tear of time, has become a symbolic element of a community’s memorial heritage. The French historian also added that, since memory is the fundamental structure of this generally lengthy process, it was convenient to understand it as a phenomenon of emotions and magic that only accommodates the facts that feed it. Strictly speaking, memory is always vague, and reminiscent, stirring both general impressions and fine symbolic details. Furthermore, memory is always vulnerable to transference, repressed and imagined memories, censorship, and all kinds of projections. (Nora, 1984). In this article, we try to understand that the places of memory are also almost always what comes to us, stays, and selects the past. The reserve where they live appears as a symbolic locus to which the Potiguara aborigines cling with all their strength to preserve what remains of their past.

Keywords: Potiguara aborigines; places of memory; reconstruction of memories; censorship; symbolic locus; preserving the past

Introdução

A reivindicação de regresso a uma terra mítica ancestral concorre para edificar um dos primeiros e mais estruturantes lugares da memória dos Potiguara, funcionando também política e utilitariamente para plasmar as revindicações de reserva territorial.

Os potiguaras, sobretudo caciques, pajés e curandeiros, falam propositada e exacerbadamente da sua reverência e do seu respeito singular à terra, sublinhando mesmo uma certa ideia primária ontológica de que o próprio sentido das suas vidas depende completamente do bom relacionamento com os outros e com a natureza, significando precisamente esta associação o que designam por reserva, ou seja, a própria terra.

Logo, mais do que lugar físico, os Potiguara procuram reinventar um locus sobretudo simbólico, conquanto também político e económico, em que se faria o resgate da sua história finalmente vazada em terra, mesmo quando essa terra é rigorosa, formal e juridicamente uma reserva.

Paradoxalmente, a ideia de reserva como regresso à terra prometida e mítica não deixa de caucionar todo o processo de longa duração de submissão dos Potiguara ao asilo colonial, ontem, e à reserva de terra indígena, hoje.

Os mais velhos, os seus caciques, pajés e curandeiros, sublinham que, ainda há poucos anos, os Potiguara relacionavam-se com a terra como se ela fosse realmente uma mãe, explicando ainda que, obviamente, andavam descalços e pisavam intimamente o solo que consideravam sagrado, a natureza tranquilizava-os, revigorava-os, purificava-os, acreditavam que até os curava de todos os males físicos e espirituais. A terra conferia-lhes uma força vital, permitia-lhes pensar com mais profundidade, penetrar nos mistérios da criação, aproximar-se de outras formas de vida.

Para comprovar os valores desta reactualizada memória do mito do “bom selvagem”, os anciãos Potiguara esclarecem ainda que o homem distante da natureza se torna duro, deixa de respeitar a natureza e as diferentes culturas, pelo que, em consequência, deixa também de respeitar os outros seres humanos.

Mais dramaticamente, este discurso sobre o locus simbólico da sua indianidade sublinha ainda mais dramática e conclusivamente que os Potiguara não apenas perderam parte da sua terra, perderam também a sua “natureza”. É a própria natureza dos Potiguara, o seu Ser diferente que estaria irremediavelmente ameaçado. Quem seriam os culpados? A nossa velha informante Dona Joana, entretanto falecida, responde em nome da comunidade - em rigor, das lideranças e dos mais influentes -, deixando no ar a dúvida se seriam os brancos os responsáveis pela destruição da sua terra, pela dissolução da natureza e do ser Potiguara:

“Agora, os aborígenes já não são como eram. Os mais novos já não se interessam pela nossa cultura porque preferem as coisas que vêm de fora. Antigamente eram fortes e saudáveis, bebiam água pura e não queriam cachaça de cana-de-açúcar, comiam carne de caça que abundava. Estamos a perder tudo. Até a nossa cultura e as nossas raízes eles querem trocar pela dos outros”.1

Este discurso, em que, mesmo que indirectamente, se acusa a chegada do branco como o grande responsável pela mudança de comportamento dos Potiguara, tornou-se também dominante e se verteu nas mais variadas estratégias de demagogia, populismo e competição política, passou a incorporar arranjadamente esse outro discurso académico, sobretudo historiográfico e antropológico, acusando mais do que investigando o que se tem vindo a fixar como o genocídio colonial das populações ameríndias do Brasil.

O que é, na verdade, uma evidência dramática que não pode ser esquecida pela investigação, constituindo um dos mais importantes processos sociais, económicos, culturais e religiosos de longa duração na formação do Brasil. No entanto, não são fáceis de identificar rigorosamente os factores, a extensão e os diferentes agentes responsáveis por esse genocídio que matou e deslocou milhares e milhares de aborígenes brasileiros desde meados do século XVI, reduzindo dramaticamente os efectivos populacionais, transformando culturas e asilando em aldeamentos os sobreviventes. Ao lado da ocupação militar violenta, da brutalidade dos colonos, do escravismo e da exploração movimentam-se outros factores profundos de morte e mudança: doenças desconhecidas pelos ameríndios, alterações da paisagem, modificações económicas e novas formas de organização, relacionamento e hierarquização sociais.

Factores importantes de mudança, mas também de mortalidade, infelizmente pouco documentados e estudados com rigor quantitativo e qualitativo. Naturalmente, os Potiguara não se interessam pelas subtilezas teóricas e metodológicas da história científica, preferindo com bastante maior simplicidade e alguma ligeireza destacar a ideia dura de genocídio, concomitante com o da sua colectiva vitimização e exornação como o único lado verdadeiramente bom e inocente da história do Brasil.

Os líderes políticos Potiguara foram, assim, edificando nas últimas décadas um discurso ideológico progressivamente mais consensual associando causalmente o seu locus simbólico de uma terra natural, matriarcal e mítica que era originalmente sua ao da ideia imageticamente muito mais forte de uma “terra sangrenta”, palco dos piores genocídios e violências coloniais que governos e autoridades brasileiros só podem mesmo resgatar.

A incorporação destas ideias ajudou a reivindicação sobre a terra que não seria apenas uma vulgar reivindicação política ou económica, mas representaria o definitivo resgate e a redenção de toda a história do Brasil, da própria ideia mesmo de Brasil, oferecendo ainda ao “branco” uma derradeira oportunidade de catarse e expiação pelos crimes continuados cometidos contra a terra inocente e a natureza pacífica dos Potiguara, pese embora todos os nossos informantes, com Raqué, ex-cacique geral da tribo, à cabeça, gostarem de recordar quanto os aborígenes potiguara eram bravos e valentes, resistindo forte e heroicamente às sucessivas campanhas militares portuguesas pela conquista e pacificação da capitania da Paraíba.

Estas ideias, imagens e discursos não têm, natural e justificadamente, qualquer ligação rigorosa ao passado histórico pré-colonial e colonial dos Potiguara, esquecendo as suas divisões e o quanto a ocupação militar e colonização económica portuguesas da região devem a alianças com outros aborígenes e ao apoio de milícias Potiguara. Ideias, imagens e discursos são rigorosamente lugares da memória, reminiscências desfocadas de um passado histórico abreviado e seleccionado para destacar uma memória da terra que é discurso político e manifestação cultural do presente com a vantagem de poder convocar as mais variadas obras e autoridades académicas.

Num livro que se tornou célebre, publicado em 1988, o reputado antropólogo brasileiro Mércio Pereira Gomes procurava fazer um balanço da política indigenista colonial debaixo da categoria forte de “holocausto”, sublinhando que Portugal manteve uma política indigenista que, oscilando entre os interesses da Coroa, dos colonos e os dos jesuítas, centrava-se na questão da apropriação da terra e da exploração de mão-de-obra indígena, obrigando a:

“estabelecer entendimentos com os povos indígenas e formular políticas indigenistas porque a sua experiência contemporânea na África do Norte e na Ásia foi passada para o Brasil, sem grandes modificações e, em vários casos, contando com capitães e conquistadores transferidos da Ásia para o Novo Mundo”. (Gomes, 1998)

Estas ideias gerais ficaram (as categorias de genocídio e holocausto dos ameríndios brasileiros passaram rapidamente para o discurso reivindicativo dos próprios aborígenes e de muitos em seu nome...), instalaram-se nas academias e Universidades, cada vez mais confortável e normativamente, fazendo mesmo esquecer aquela que era a mais importante contribuição da obra de Mércio Gomes: ter conseguido provar que, desde a década de 1950, os aborígenes brasileiros sobreviventes tinham invertido a curva de declínio demográfico, voltando as suas populações a crescer sustentadamente.

Em rigor, também os Potiguara com quem vivemos e sobre quem investigamos fazem maioritariamente parte desta geração fruto do crescimento demográfico em evidente conexão com a melhoria das condições de vida e reprodução das populações índias do Brasil. Numa palavra, são filhos da modernização e industrialização do Brasil que gostam também de contestar e acusar pelas perdas irremediáveis da sua terra e da sua cultura.

Seja como for, o antropólogo referencial que ainda é Mércio Gomes tornou-se rapidamente político. Primeiro, subsecretário de Planejamento da Secretaria Especial de Projetos e Educação, dirigida pelo ainda mais famoso político e antropólogo Darcy Ribeiro no Governo do Rio de Janeiro, entre 1990 e 1994, depois tornando-se por convite pessoal de Luiz Inácio Lula da Silva um dos mais referenciais presidentes da FUNAI, de 2003 a 2007. Durante esta presidência, o antropólogo-político autorizou a criação de 66 novas Terras Indígenas (TI), incluindo as reservas potiguaras de Monte-Mór e do Novo Mundo/Viração. Mais importante ainda, a obra e ação política de Mércio Gomes fundiram definitivamente investigação e reivindicação, não apenas autorizando, mas oficializando mesmo tanto a sua visão do holocausto colonial quanto a sua perspetiva indigenista da história e antropologia brasileiras.

Os Potiguara de hoje são herdeiros deste discurso académico que se tornou na política indígena oficial do Brasil. Acreditam no seu direito sagrado, agora também oficializado, à sua terra que, dizem e cantam, foi criada com a ajuda do sol e que, por conseguinte, é intocável. Por isso, as demarcações das propriedades são tomadas como uma aberração do homem branco.

A forma mais eficaz de lutar contra o branco, pensavam os Potiguara, era unirem-se, exigirem direitos iguais sobre a terra, não a poderem vender, nem aos elementos da tribo e muito menos a pessoas de fora, apontando que os brancos não se interessavam com a sorte dos aborígenes pois só queriam saber da sua vontade e do que lhes convinha.

Com o passar dos anos estas ideias foram-se diluindo, as terras dos Potiguara tornaram-se reserva e asilo. A destruição da mata levou ao fim da caça, as aldeias não indígenas foram-se aproximando da terra Potiguara, o entendimento entre os próprios índios e entre estes e os não índios passou a ser cada vez mais difícil de conseguir. A especulação imobiliária em torno das praias da Baía da Traição aumenta todos os anos e chegou já às fronteiras da reserva Potiguara.

Nestas condições de profundas transformações económicas, sociais e culturais é cada vez mais difícil manter uma praxis dessa mítica ideia de uma terra-natureza Potiguara, definitivamente subsumida em lugar da memória, em locus simbólico. Esse locus tem atualmente um espaço cultural e simbólico privilegiado no terreiro do toré do Dia do Índio, o ouricouri na aldeia de São Francisco que é sempre agitada como a aldeia étnica e culturalmente mais tradicional, o coração da terra Potiguara. Por isso, a competição política pelo controlo do ouricouri tornou-se mais tensa e distribui as diferentes estratégias de controlo da identidade, distinguindo índios “puros” e “misturados” e ambos dos “particulares”.

A terra como economia e conflito

Este processo de entendimento simbólico e de competição política pela apropriação do locus Potiguara é também resultado de um demorado processo de transformações económicas e industriais do mercado local, regional e nacional da terra, da propriedade. É um longo processo económico e um muito longo processo social pautado pelo conflito. Um processo histórico, político e atual que continua a constituir um dos maiores problemas e desafios para o desenvolvimento social do Brasil que agora quase todos querem sustentável, pese embora as suas insanáveis contradições. Um processo histórico, económico, social e político marcado por uma profunda violência, mais ainda quando é observada a partir das comunidades e espaços locais. Uma violência que persiste assim não apenas nessas imagens quotidianas de guerras nas favelas do Rio de Janeiro, mas que se afigura quase endémica em muitas terras do interior do Brasil.

A violência praticada hoje, sobretudo contra as comunidades indígenas na Amazónia, é uma realidade. Violência levada a cabo pelo capital agrário e multinacional que ataca sem piedade as terras indígenas, ataca, divide e manipula os caboclos, os posseiros, os trabalhadores rurais. No bojo desta violência está, na opinião de um dos grandes especialistas brasileiros contemporâneos em estudos do desenvolvimento, Carlos Minc Baumfeld, a expropriação de terra e a sujeição, exploração e mobilização de uma mão-de-obra tão servil quanto barata:

“Além da violência para expropriar a terra e da repressão para sujeitar o trabalho, grandes grupos estão praticando um genocídio contra as nações indígenas, invadindo, matando, utilizando formas diversas de transmitir-lhes doenças, e o pior: jogando os posseiros contra os índios, na mais perversa forma de provocar luta entre oprimidos, para abrir caminho. Essas práticas variam: por vezes, os posseiros vão sendo expulsos, cercados, e lhes “oferecem” como via de retirada, uma reserva indígena. (…) Há casos em que posseiros e capangas recebem armas e dinheiro para “abrirem caminho” nas terras indígenas, em troca de promessas de propriedade futura, que nunca se cumprem. Uma outra forma de violência, que já existia, mas que hoje alcança uma escala até há pouco tempo inimaginável, é a destruição da nossa fauna e flora.” (Baumfeld, 1984).

As terras Potiguara, apesar de legalmente demarcadas desde o Decreto-Lei nº 88.118, de 23 de Fevereiro de 1983, não escapam a estes processos de concorrência económica em que se decide o mercado da terra e as estruturas fundamentais da industrialização e desenvolvimento local. As terras da reserva Potiguara,

sobretudo fora das 32 aldeias, estão a ser progressivamente tomadas pela grande “usina” que explora e industrializa a cana-de-açúcar. A proliferação da cana levou a que se derrubasse a floresta em escala massiva, provocando repetidos casos de roubo de madeiras e contínuas invasões que resultaram no apossamento ilegítimo de terras pertença da reserva legalmente demarcada para os Potiguara.

Agravadas ainda pelo facto do gado invadir áreas de plantio, estas ocupações multiplicaram os conflitos políticos e sociais. Os Potiguara numa acusação agora mais actualizada, mas não menos histórica, acusam a fábrica, acusam a industrialização, acusam a modernização económica de lhes roubar a terra, a natureza e o ser. Em contraditório contraste, são escassos os Potiguara que acusam as indústrias do turismo, apesar do seu impacto profundo nas transformações culturais e económicas das formas de vida e trabalho dos Potiguara.

Infelizmente, os muitos casos de invasões das terras indígenas não são um problema específico da reserva dos Potiguara, mas questão recorrente em praticamente todas as reservas indígenas brasileiras. O antropólogo Alfredo de Almeida aponta em artigo informado a dimensão geral deste processo, mobilizando as mais variadas actividades e investimentos económicos:

“Fazendas de actividades agropecuárias têm sido apontadas como invadindo as reservas dos Krikati e dos Guajajara (MA), dos Xikrin do Cateté e o sul do Parque Kayapó (PA). Garimpos e empresas de actividades mineradora têm invadido a reserva delimitada para os Xikrin do Bacajá, as áreas Gorotire e Kikretum (PA) e a reserva dos Urubu-Kaapor (MA). Empresas madeireiras têm invadido o Parque Kayapó, a reserva dos Tembé, no Alto Rio Guamá, dentre outras. A acção de órgãos governamentais tem contribuído para quebrar o dispositivo legal de inviolabilidade dos territórios indígenas (Lei nº 6.001/73)”. (Almeida, 1984)

Nesta perspectiva, somam-se ao fundo económico opções políticas acusando os sucessivos governos brasileiros e os seus agentes, o que no caso dos territórios indígenas quer sempre dizer irremediavelmente a FUNAI, mesmo quando dirigida por reputados antropólogos defensores das mais sofisticadas políticas e educações indigenistas. O futuro dos territórios indígenas do Brasil estaria em causa, denunciando Almeida que:

“o propósito de se deixar para um momento posterior a demarcação das reservas indígenas, privilegiando-se a ordenação de áreas contíguas e limítrofes, parece não se justificar mediante a intensidade dos conflitos e das acções de apossamento ilegítimo de parte substancial das reservas. Impõe-se uma definição legal e uma garantia efectiva dela decorrente (…). A demanda por terras e as “tensões sociais e conflitos”, que a acção governamental pretende regular, aparecem, neste contexto, coladas às próprias indagações sobre o destino dos territórios indígenas”. (Almeida, 1984)

Para estas concepções muito disseminadas nos meios políticos e académicos brasileiros, propondo sempre a produção de mais uma outra lei para resolver os conflitos que leis anteriores não avisaram, os territórios indígenas apenas poderiam ser protegidos sendo ainda mais reservados. Será que os Potiguara através dos seus líderes querem hoje ainda mais asilo e um retorno isolado ao que julgam ser as suas terras originais?

A terra política

Em 2002, a escolha do índio Caboquinho como cacique geral foi recebida com entusiasmo. O novo líder passava a integrar as chefias políticas Potiguara na Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) e no Conselho de Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (CAPOIB), dando muito maior circulação política e visibilidade mediática aos Potiguara e às suas reivindicações.

De seu nome de baptismo António Pessoa, Caboquinho chegou ao lugar de cacique geral apoiado num continuado discurso político em defesa da terra e da cultura Potiguara que afirma convicto ser ancestral. Defendendo o estudo do tupi nas escolas da reserva e um maior investimento no artesanato tradicional, Caboquinho é ainda portador de um renovado discurso político autorizando sem prejuízos culturais de maior a adaptação dos Potiguara ao novo mundo económico e social do Brasil, o que não lhe parece incompatível com as suas tradições,

“porque, apesar de hoje em dia alguns índios vestirem calças e até usarem celular, a gente irá sempre permanecer Potiguara. Isso não quer dizer que temos que continuar para sempre a viver em ocas e em casas de palha. Hoje existem vários índios intelectuais, há índios deputados da Assembleia da República, índios que são Prefeitos Municipais, Vereadores, Advogados e Médicos e que nunca deixarão de ser índios”.2

O discurso político de Caboquinho conssagrou esta ideia de uma modernidade tolerada porque subsumida no respeito pela tradição, pela terra e pela identidade Potiguara. Apesar deste discurso adaptacionista estar longe de recolher unanimidade, funciona como uma espécie de última reserva cultural explicada com esta sequência solene:

“cortaram os nossos galhos, tiraram os nossos frutos, cortaram até o nosso cale. Esqueceram-se, porém, de cortar algo de muito importante, que foram as nossas raízes, essas das quais nascemos, crescemos, e que nunca poderão ser cortadas”.3

Estas raízes são agora uma pequena constelação de lugares da memória que deixou de impedir a continuada alteração política, económica e social das terras mesmo da reserva Potiguara. A começar por mudanças profundas nos ecossistemas e paisagens. Ao mesmo tempo que praias e zonas litorâneas se encontram definitivamente tomadas pelo turismo de veraneio e pela especulação imobiliária, outras zonas naturais correm o risco de desaparecer rapidamente, como é o caso da milenar Lagoa do Mato que está a começar a secar.

O índio Jano explica que “isso acontece por causa dos desmatamentos e do aquecimento global. Esta lagoa tinha um lençol freático que ia daqui até à Praia do Tambá, a uns dez quilómetros de distância, que secou porque a chuva tem vindo a diminuir e porque os desmatamentos se sucedem sem controlo” 4. Este tipo de explicações em que já se instalaram os grandes debates da globalização como as alterações climáticas não perdoam sequer os próprios Potiguara.

O nosso informante Jano não esconde mesmo que “os responsáveis por esta situação foram os índios que, incentivados pelos usineiros para plantarem cana-de-açúcar e para fazerem casas de taipa, começaram a cortar as árvores e a destruírem a floresta, pelo que, com o passar do tempo, se chegou a esta situação precária”.5 A solução que adianta para proteger as terras potiguaras não é, porém, original, voltando a sugerir nova bateria de leis, desta vez devidamente “severas”, visto que “o usineiro não devia entrar no nosso território pois, com o tempo, o seu grande objectivo é apoderar-se das nossas terras, o que não é bom, nem para nós nem para a natureza, pois ele é o principal responsável pelo desmatamento. Chega de mansinho e depois torna-se no principal devastador”.6 Esta situação de forte pressão económica apenas poderia ser eficazmente contrariada com ainda mais autoridade indígena e governamental obrigada a

“prestar mais atenção a esta questão e cuidarem melhor do meio ambiente e da floresta, pois a plantação de cana está a, crescentemente, prejudicar a população e a natureza. Por outro lado, a usina, que foi instalada nas imediações do território, tem uns tanques que são insuficientes para guardar a calda, pelo que acabam por transbordar até aos rios, matando os peixes, nossa principal fonte de alimentação”.7

Voz razoavelmente independente, acreditando-se informado e ainda mais opinativo, Jano não é dos que se limita a acusar sempre e por tudo a FUNAI, não concorda sequer que haja na questão da terra conivência entre os índios e a FUNAI, até porque “os usineiros não procuram a FUNAI mas as lideranças indígenas, que conseguem aliciar, começando por plantar em pequenas quantidades que vão aumentando até volumes enormes. Com o tempo vão-se fixando, acabando por nunca mais quererem sair das nossas terras”.8 A verdade é que, nos últimos anos, em redor das aldeias Potiguara, centenas de hectares de floresta foram sendo substituídos pela cana-de-açúcar, alterando completamente a simbiose entre terra e índios. Segundo o nosso muito bem informado Jano

“aproximadamente uns dez mil hectares de floresta desapareceram na última década do nosso território para darem lugar à plantação de cana-de-açúcar, o que prejudica a comunidade, polui o nosso meio ambiente, e não traz benefícios para os índios. Para o não-índio, que gosta muito de trabalhar na cana, pode ter vantagens, mas para o Índio só traz prejuízos pois acaba com o seu bem mais precioso, a floresta. E Índio que é Índio não aceita derrubar a floresta”.9

Tentando comprovar estas palavras, Jano trata de acusar um “branco” que comparece nesta história duplamente como grande explorador (em rigor, bastante pequeno...) e bode expiatório. Numa das comunidades Potiguara, a da Aldeia Galego, um branco, conhecido por Beto do Mamão, que casou com uma índia, já derrubou cerca de 14 hectares de floresta para plantar cana-de-açúcar. Jano acusa-o com dureza:

“Isso prejudicou muito os índios. Ele começou por derrubar a floresta para plantar batata-doce, inhame, feijão, o que dava emprego aos índios, mas com o tempo acabou por substituir estas plantações pela de cana-de-açúcar o que fez com que haja cana demais e trabalho de menos”.10

Os conflitos estalaram. Contra esta política de desmatamento, um grupo de potiguaras juntou-se para tentar parar o crescimento da plantação de cana. Liderados pelo cacique Severino Fidélis foram procurar colocar em prática a área delimitada pela FUNAI para a sua reserva. Tendo Beto do Mamão ultrapassado completamente os limites que estava autorizado a explorar, Jano explica que, em consequência, “nós fomos obrigados a destruir tudo o que ele tinha plantado para além da área definida”.11

Recorde-se que, na definição política legal das terras indígenas da reserva Potiguara, cada índio tem direito a plantar, no máximo, dez hectares de terra, enquanto o “Beto do Mamão queria chegar aos 20”.12 Apanhou com os (alguns) Potiguara em cima, como nos informa com indisfarçado orgulho de líder valente Jerónimo Carvalho, hoje a residir em Portugal:

“Cheguei lá com a turma e vimos que quatro índios, contratados por esse branco, estavam a plantar para além dos limites estabelecidos. Mandámos eles parar mas não obedeceram. Fomos assim obrigados a colocar fogo nas canas que estavam cortadas e preparadas para serem plantadas. Depois que a gente foi lá e desenterrou a cana, mais ou menos dois meses depois eles retomaram a actividade. Nós voltámos e proibimos eles de novo de plantar. Com isso houve uma revolução entre a nossa turma e os que estavam de acordo com o processo de plantação desenfreada de cana”.13

Este tipo de conflitos confrontando e dividindo os Potiguara não se recolhe com facilidade. Como fomos destacando, o discurso dominante entre os nossos índios encontra-se largamente dirigido pelas suas lideranças políticas, tanto gerais como de aldeia, insistindo nessa mítica unidade da “nação” Potiguara e a sua arcana fixação a uma terra original. Ao contrário, a sociedade Potiguara não existe, pura e simplesmente, enquanto tal e mostra-se muito mais dividida do que uma mera observação turística de rituais de toré e de produções artesanais poderia antever.

Mais ainda, a terra é hoje já não apenas tema de uma retórica da memória, mas vazou-se em problema económico, em conflito e luta política. A terra é definitivamente um locus da política dos e com os Potiguara. Por isso, este conflito concreto em torno das terras do Beto do Mamão acabou, como nos informa mais uma vez Jano, por se dirigir “à justiça comum. A questão é que essa justiça não resolve questões relacionadas com os índios. Esses assuntos são tratados na FUNAI e não nos tribunais civis”.14

Volta-se, assim, recorrentemente à FUNAI. Costas largas e vistas curtas parece ser a sua representação maioritária entre os nossos índios Potiguara, à semelhança do que acontece com as outras reservas indígenas brasileiras. Jano é uma excepção. Defende mais a FUNAI e menos a sua “tribo”. Reconhece os esforços e o voluntarismo da FUNAI em contraste com a codicia dos Potiguara a que pertence com orgulho, cada vez mais divididos e mobilizados como mão-de-obra proletária para a “usina” e trabalhadora para as plantações de cana-de-açúcar. Apoiando a FUNAI, Jano sublinha que

“a fundação do índio está no direito certo e, mesmo que haja fazendeiros a articularem os seus interesses dentro deste organismo, os índios continuam a ser defendidos no sentido de preservar a mata, os rios, preservar a terra para plantar mandioca, milho, feijão”.15

A transformação dos espaços de mata em terrenos agrícolas e industriais parece uma mudança inevitável, mais ainda quando são as próprias lideranças políticas dos Potiguara a reconhecê-lo, reconhecendo ao mesmo tempo a sua própria rendição económica e social a este processo. Assim, o muito influente cacique de São Francisco que é o nosso Djalma da Silva, não deixa de esclarecer que ele mesmo se viu obrigado, como quase todos os outros, a render-se à produção da cana-de-açúcar. Falando com sinceridade, o velho Djalma recorda-se que,

“antigamente não existia plantação de cana na reserva. Depois que essa usina veio para aí, todo o mundo passou a plantar cana. Eu mesmo arrendei a terra do nosso povo para esse fim. Vi os meus irmãos fazendo isso e, como sou pai de 15 filhos, 12 deles vivos, e avô de 27 netos, tinha que trabalhar. Se os meus irmãos trabalhavam na cana eu tinha que trabalhar também. Foi por isso que passei a arrendar terra. Eu sei que errei. E é um grande erro. Um erro que não foi só meu mas de todos os meus parentes das aldeias. Dessa forma, todas as nossas aldeias se encontram tomadas pela cana-de-açúcar. Essa usina negoceia com cada um de nós, sendo eles os responsáveis por trazerem o dinheiro até à gente. No início ainda davam qualquer coisa. Depois, foram baixando, baixando, até que, o ano passado, quando nos pagaram a cana de 2006, só nos deram 37 reais, sendo que hoje já está a 15 reais e 50 centavos. Foi um erro termos destruído a nossa floresta para plantar cana. A gente não podia ter feito isso porque a nossa cultura não é essa mas sim a de trabalhar na roça, na agricultura, plantando macacheira, batata, inhame, banana, milho, feijão, melancia, inhame. O problema é que, até agora, nunca tivemos uma ajuda financeira vinda directamente do Governo Federal para a FUNAI em João Pessoa. Para lhe dar um exemplo, este ano a FUNAI não mandou rigorosamente nada para a gente. Até as sementes que mandavam anualmente, este ano não chegaram”.16

A verdade é que este debate sobre a devastação continuada das matas da terra indígena Potiguara faz parte de um problema político mais vasto, entroncando nas próprias estruturas primárias do desenvolvimento económico do Brasil. Desde, pelo menos, 1984, que o Governo brasileiro foi definindo a produção e exportação de madeiras como uma prioridade económica importante, enquanto a maior parte das populações rurais do interior entendem a desmatação e a expansão dos terrenos agrícolas e industriais como uma necessidade económica urgente para a sua própria promoção social. A desmatação em favor do agrícola e do industrial colhe mesmo vários adeptos também entre os Potiguara.

O facto do Governo brasileiro ter permitido que a usina se instalasse junto às terras dos Potiguara redundou, é certo, na quase completa destruição da mata, mas multiplicou empregos e outras oportunidades económicas que foram agarradas por alguns índios a quem não chega a assistência social governamental através da FUNAI. Descobre-se, assim, um tema mais complicado e enredado do que se poderia pensar a partir das declarações políticas que se querem evidentes sobre o direito essencial dos Potiguara à sua terra mítica original. Trata-se mesmo de um problema geral como se esclarece em cuidado artigo sobre a política florestal brasileira da autoria de Roy Nash:

“Não se pode dizer que todas as matas, actualmente consideradas necessárias ou dignas de serem conservadas, assim o serão indefinidamente, mas são tão grandes as facilidades para a destruição das florestas, tão enormes as dificuldades para substituí-las e tão generalizada a crença do povo de que a devastação das matas constitui melhoramento necessário, que se torna imprescindível estabelecer limites florestais e protegê-los da maneira mais formal e rigorosa”. (Nash, 1984)

A situação política e económica não é diferente quando se passa da terra para o mar e se encontra essa larga faixa de transição que é o mangal, o mangue, que os Potiguara acreditam também ser parte da sua terra original. A devastação dos mangues multiplicou-se irremediavelmente nas últimas décadas, provocando o declínio dos rendimentos que os nossos índios foram tradicionalmente buscar a esta vegetação típica invadida pelas marés para aproveitarem as madeiras das suas árvores e apanharem caranguejo, siri e peixe.

Num movimento de desenvolvimento económico estruturalmente semelhante à transformação agrícola e industrial da mata, o mangue tem vindo a ser transformado em zona de viveiros em que se cria industrialmente camarão de água doce vendido à escala global. Muitos Potiguara encontraram emprego nesta outra industrialização, muito menos criticada pela retórica dos discursos políticos das lideranças indígenas actuais, mas alvo naturalmente da atenção de oposições e “independentes”. Jano, por exemplo, mostra-se especialmente crítico da destruição do mangue que considera destruir também a cultura Potiguara:

“Isto representa uma grande falta de respeito para com o meio ambiente, pois tirando a vegetação do mangue, o caranguejo acaba por desaparecer, o peixe foge e a gente fica perdendo a nossa cultura”.17

O nosso ex-cacique geral Raqué (e também Segundo), agora claramente situado na oposição política, não deixa passar a oportunidade que a questão do mangue lhe oferece para demonstrar, mais uma vez, a superioridade “técnica” dos seus conhecimentos e soluções políticas, devendo-se reconhecer, pelo menos, a sua original imaginação sempre tão fundamental na distribuição das promessas que fazem o bom político local:

“O que devia ser feito para salvar a cultura indígena era levar em frente um plano de construção de dois galpões de 100 metros cada um, para colocar dentro as sementes, o adubo, o tractor, o combustível.

Paralelamente, deveriam ser feitos dois barcos, cada um com quinze metros, para pescar, passar 15 dias no mar. \\Ao regressarmos da faina tínhamos uma geladeira para colocar esse peixe que depois era distribuído por todas as aldeias. Assim os índios teriam a sua alimentação garantida, condição essencial para poderem ir trabalhar no roçado. Com a barriga cheia ele iria preservar melhor o meio ambiente. Esta era a forma de salvar esta reserva. Porque o nosso problema é que os nossos governantes nos ignoram e por consequência ignoram também o meio ambiente e a preservação da nossa reserva.”18

Apesar de se encontrar actualmente bem instalado na situação, o velho cacique Djalma parece concordar com a conclusão sempre avisada por bons argumentos e propostas políticas do nosso Raqué, arrematando toda esta discussão de matas e mangais, terras e FUNAI, com a frustrada verificação de que “se continuar desse jeito a nossa situação fica muito complicada. Porque eles devem ver que nós somos os primeiros habitantes do Brasil e que a nossa cultura deve ser preservada”.19

Lugares da memória, representações e poderes

Antes de iniciarem os seus rituais os Potiguara pintam-se, traçam desenhos geométricos no rosto com tintas que extraem das sementes e plantas, debuxando pequenos sinais dirigidos aos seus “parentes”, árvores, pássaros e o que designam por homens, criando uma sorte de pintura mágica que asseguram repetir-se século após século. Estes rituais que hoje se decidem largamente na preparação e produção do toré deixaram definitivamente de possuir qualquer tipo de “forças mágicas” na apropriação e classificação do real e do social, vazando-se em exibição e comemoração.

Sobrevivendo cada vez mais através do consumo ditado por esses turistas que os vão visitar com o objectivo de verem com os seus próprios olhos estas gentes ainda exóticas no corpo e na sua decoração, nas danças e artesanatos responsáveis por fixar lugares da memória sujeitos a uma observação interessada exterior apenas aproximada em livros, filmes e, sobretudo, telenovelas que, como a “Muralha”, teatralizam o contacto colonial violento com as populações tupi-guarani espalhadas pelo Brasil pré-colonial. “A Muralha” parte de um romance de 1954 com o mesmo nome de Dinah Silveira de Queiróz, aparece como telenovela logo em 1961 produzida pela TV Cultura, depois em 1968 em produção da TV Exclesior e, mais tarde, em mini-série da responsabilidade da Rede Globo, em 2000. A sua influência na representação tópica dos índios tupi foi enorme, decidindo mesmo formas de representação, decoração e reminiscências que muito influenciaram as manifestações culturais das reservas indígenas brasileiras. Não se pode mesmo esquecer que “a Muralha” se transformou num dos grandes sucessos nacionais e internacionais da muito influente romancista que foi Dinah Silveira de Queiróz, tendo a obra sido originalmente publicada em folhetins na revista “O Cruzeiro” para comemorar os 400 anos da fundação da cidade de São Paulo. Por isso, o romance foi-se difundindo como histórico, concorrendo para construir uma importante tópica dos índios brasileiros, do corpo às práticas cul-turais, iluminando uma determinada encenação ainda dominante do índio tupi e da sua progressiva integração binária na sociedade colonial: pela violência de colonos e bandeirantes em concorrência com a palavra e a catequese dos aldeamentos missionários.

Muitas vezes, observam-se turistas a chegar à reserva e aldeias Potiguara quase de surpresa, vindos da praia. Nessas alturas, sempre se topa com uma criança local que corre para casa dos artesãos informando-os que têm que se preparar para oferecer uma cerimónia e apresentar o seu artesanato tradicional.

Só então os Potiguara fazem a sua metamorfose: se antes da chegada dos turistas vestem muito brasileiras camisas, t-shirts, calções, jeans mais as recorrentes sandálias de plástico, logo depois se pintam e vestem de acordo com o que acreditam ser esses tempos ancestrais. É esta metamorfose que os transforma, finalmente, em “verdadeiros” índios. Mas já não se trata sequer de uma metamorfose colectiva.

Apenas alguns progressivamente mais ligados à produção artesanal e à produção encenada desses rituais que querem arcanos e genuínos em torno do modelo do toré se pintam e revestem. Outros Potiguara vestidos como todos nós observam também cerimoniais e artesanatos, ao mesmo tempo que esperam algum favor ou vantagem das visitas de turistas. Uma subtil divisão entre produtores e “artistas” culturais e os outros que são índios, mas não se manifestam simbolicamente como tal, estabelece-se e reproduz-se, encontrando-se agora plasmada em formas associativas e institucionais também ligadas aos sistemas de concorrência e negociação políticas pela apropriação dos poderes locais.

Chegados os turistas e preparados os rituais, os produtores, artesãos ou artistas culturais potiguaras decidem usar uma língua que explicam ser muita antiga, mas que se limita a frequentar algumas escassas palavras em tupi misturadas com abundante português, enformando uma etiqueta que é semelhante à encenada em telenovelas seguindo o modelo extremamente popular de “A Muralha”.

Os rituais são, pelo menos aparentemente, efusivamente sentidos, procurando os índios destacar que são o mais fiéis possíveis às suas raízes, conquanto se mostrem rigorosamente resultado de demoradas transformações históricas e culturais inscritas na longa duração. Estes rituais, cerimónias e etiquetas apresentadas como

genuína e tradicionalmente Potiguara integram e internalizam elementos herdados do legado das missões e das orações católicas, mas também vindos do poder do conhecimento científico e académico ou mais popularmente influenciados por músicas, filmes e telenovelas. A linguagem é repetitiva e pretende segundo os seus produtores aproximar os índios dos seus antepassados, sublinhando as temáticas ligadas à natureza e ao culto das divindades, como se isso ainda lhes permanecesse numa sorte de sangue tribal, o toque do tambor simbolizando o agradecimento à terra e aos deuses para cantar esses versos que fomos recorrentemente ouvindo nesse português para onde seguiram com colonos, cronistas, administradores e, sobretudo, missionários as palavras do tupi-guarani sobre a fauna e a flora brasileiras:

“Sou Tupã, sou Tupã, sou Potiguara/ sou Potiguara nesta terra de Tupã/ tem arara caramuna e xexéu/ todos os pássaros do céu/ quem me deu foi Tupã”.

Os turistas são convidados a ensaiarem os mesmos passos atrás dos índios que produzem a cerimónia que se quer ritual e antiga, sendo orientados e educados para desvendarem os arcanos significados ocultos de danças e orações que se limitam a sublinhar que Tupã nos deu “todos os pássaros do céu”.

A cerimónia é cada vez mais animação turística, mobiliza alguns escassos lugares da memória da história e antropologia Potiguara, mas contribui paradoxalmente para destacar a sua identidade indígena, assim concorrendo quase contraditoriamente para a sua preservação e transformação.

A animação é sobretudo oral e artesanal. Cruza a cerimónia ritual em torno do toré a dezenas de conversas com os turistas, gerando essa cumplicidade fundamental que faz com que quem circula no mercado do turismo consuma e sinta participar numa pequena parte das manifestações de uma cultura outra, depois perpetuada nesses souvenirs em que o artesanato local se cruza à t-shirt, à fotografia, ao vídeo e ao bilhete postal, mais as suas muitas multiplicações modernas através de emails, websites e redes sociais automáticas.

Os produtores e artistas Potiguara explicam cuidadosamente que quem dança o toré fica mais livre, com muito mais saúde, para além de paz e alegria no coração e que, ao cantarem para a natureza, ela escuta o que eles cantam, movimentos e encenações que agora se fixam em vídeos e telemóveis que depois seguem para computadores, redes web e essas muitas milhares de cumplicidades cerzidas pela globalização da comunicação.

Os Potiguara sobrevivem, assim, como objecto cultural e é a partir desta sobrevivência culturalmente objectiva que sobrevivem também enquanto sujeitos sociais e culturais, misturando estavelmente lugares da memória e lugares do presente.

Este modelo tem gerado as mais vivas polémicas, mas muito mais académicas do que indígenas e, menos ainda, turísticas. Tem vindo a ser definido na literatura académica por Antropólogos, Historiadores e Sociólogos enquanto processo de “mercantilismo cultural”, responsável por subordinar as culturas tradicionais ao consumo capitalista do turismo global, gerando manifestações culturais para turista ver e comprar, resultando numa espécie de desconstrução cultural em que os seus rituais possuem mesmo que implicitamente o objectivo de, antes do mais, lhes alimentarem o ego e a barriga. A historiadora Marilyn Halter considera, por isso, em tese geral que “a mercantilização cultural é inerente ao sistema capitalista (…). Um resultado inevitável do funcionamento do mercado. (…) Simultaneamente, o consumismo desagrega e promove uma comunidade étnica, podendo mostrar-se tanto subversivo como hegemónico”. (Harner, 1980)

Já a perspectiva antropológica de Clarice Novaes da Mata esclarece em investigação muito mais recente que

“as comunidades indígenas tanto têm a ganhar como a perder com a mercantilização de sua cultura e saber, pois é possível que as forças consumistas possam tanto desestruturar o plano original da comunidade, com seus significados intrínsecos, como também enaltecer e reforçar a identidade. Na verdade, esses são acontecimentos paralelos, via de regra focalizados em alguns poucos membros da comunidade, que servem como propagadores de sua cultura e que se beneficiam quase que individualmente dos resultados monetários, sem que deixem de afectar a comunidade como um todo, tanto para melhor como para pior.” (Mota, 2008)

Este mercado do que é apresentado como turismo cultural constituído por venda de artesanato e mostra de rituais gera imediatamente mais rendimentos, oportunidades e, em última análise, uma melhor qualidade de vida - pelo menos para alguns -, mas provoca também conflitos internos grupais e pessoais vindos directamente da ampliação da concorrência económica e cultural.

Os dois principais artesãos da Aldeia Galego, Tonho e Valdemiro, vivem em permanentes quezílias disputando entre si o privilégio de receberem o maior número de turistas na sua oca. A sua concorrência especializa mesmo as produções cerimoniais e artesanais, cada um destacando a sua maior originalidade e apego à cultura tradicional Potiguara. Uma concorrência que na Aldeia Galego se alargou a alguns dos seus habitantes classificados como de origem não-índia, como é o caso do comerciante Edmilson, entretanto falecido, ou do artesão Anselmo.

Ambos, porém, reivindicam o seu estatuto de índios que, no caso de Anselmo, comprova e presentifica na ainda maior genuína qualidade tradicional do seu artesanato, para além da sua reivindicada identidade Potiguara lhes permitir casa e terreno na reserva, assim como receber do Governo essa “cesta básica” com que os planos de erradicação da pobreza das presidências de Lula da Silva foram combatendo a fome no Brasil.

As representações culturais dos potiguara hoje decorrem de transformações históricas, demográficas, económicas e sociais que desafiam culturalmente não apenas qualquer ideia de um espaço ‘natural’, ‘original’ ou ‘essencial’ dos nossos índios, mas transformaram definitivamente a sua cultura em culturas, manifestações e hábitos culturais vários.

A reserva enquanto terra e asilo foi ao longo dos séculos contraindo-se para um território social e cultural cada vez mais limitado, pressionada tanto por vários interesses económicos e pela mobilização laboral fomentada essencialmente pela presença próxima da usina de cana-de-açúcar quanto por essas transformações demoradas carregadas pelo poder da língua desde ontem ou pelo poder da televisão e da telenovela muito mais hoje.

Seja como for, o tema do turismo entrou também no discurso dos poderes potiguaras. Nos nossos dias existe a vincada preocupação das chefias indígenas em manter um maior controlo sobre quem entra no território, tratando de organizar o fluxo de turistas, agora a mais importante fonte de receitas da comunidade. Ao impedirem o acesso indiscriminado, chefes, como Caboquinho, ou caciques, como Djalma, explicam nos seus discursos políticos continuar a convocar a tradição de preservar a reserva da invasão dos brancos, mas admitindo a visita dos turistas que explicam política e culturalmente contribuir para reforçar a sua orgulhosa e ancestral identidade Potiguara.

Líderes e candidatos a líderes explicam aos seus índios que os turistas procuram conhecer melhor as tradições Potiguara, participar nos rituais e ver simplesmente como vivem, depois comprando o seu artesanato e mais algumas recordações de ocasião. Caciques e suas oposições concordam que os turistas estão para conhecer e para acabar com a desdita da sua terra ignorada.

Apesar da cancela em que se escreveu “Reserva indígena. Proibida a entrada a pessoas estranhas à comunidade”, o chefe geral Caboquinho destaca que a entrada de “gente de fora” nos últimos anos permite às famílias manterem a antiga tradição de, em conjunto, fazerem colares, pulseiras ou brincos, sendo a sua cultura divulgada, os rituais intensificados, vendo-se o nome dos índios Potiguara e das suas 32 aldeias espalhado pelo Mundo.20

É este discurso do poder que, seleccionando e decidindo sobre os lugares da memória dos Potiguara, se tornou instrumento fundamental na reconstrução imaginada e na reinvenção identitária dos Potiguara, seguindo um modelo de resgate cultural mais geral concluído acertadamente por aquela que foi uma das principais responsáveis pela organização do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, a antropóloga Clarice Novaes da Mota:

“Trata-se de um movimento na direcção de um suposto resgate da antiga forma de ser, das tradições reconhecidas como tribais e, portanto, “autênticas”, mas que orientam e suportam uma nova raison d’être ou um novo agrupamento autorizado pelas leis nacionais como sendo indígena. (…) As tradições geralmente têm sido representadas por um saudosismo dos “velhos tempos” adicionado à necessidade real de demonstrar a validade de suas experiências e seu modo de vida actual como sendo “legítimo”.

Acima de tudo, sobrevive ainda o mito do “índio legítimo” sem o qual não há auto-afirmação possível”. (Mota, 2008)

Conclusão

Na sua obra mais significativa, “The Gutenberg Galaxy”, Marshall McLuhan analisava a cultura oral, própria das sociedades não-alfabetizadas, cujo meio de expressão e de comunicação é a palavra oral, salientando a sua capacidade de modulações infinitas e a sua proximidade aos factos da consciência, sentimentos e paixões. (McLuhan, 1962). É neste estado que a literatura antropológica gosta de encontrar os índios brasileiros, incluindo a grande maioria da população Potiguara. É verdade que nos rituais, vazados esgotadamente no toré, a palavra do Potiguara percorre distâncias curtas mas permanece na memória de quem a eles assiste; a palavra é limitada no tempo pela efemeridade e fugacidade da sua elocução mas enforma a memória colectiva através de lugares e imagens agora multiplicadas por vídeos, fotografias, websites e os incontáveis álbuns das redes sociais. Ao partir da tese central de que “o Meio é a Mensagem, (McLuhan, 1967). Marshall McLuhan salientava que o veículo de transmissão da mensagem, o meio, mais que um simples canal de passagem do conteúdo comunicativo é um elemento fundamental da comunicação. Mesmo sabendo que o meio é capaz de determinar os conteúdos comunicativos que veicula, e que uma mensagem difundida oralmente ou por escrito, pela rádio ou pela televisão, pode adquirir diferentes significados, ganhar diferentes contornos, possuir diferentes estruturas perceptivas, desencadear diferentes mecanismos de compreensão. Ou seja, determinar o próprio conteúdo da comunicação, parece-nos que, na actualidade, ao sermos permanentemente invadidos por ecrãs de televisão, websites e ecrãs de computadores que mudaram a maneira de nos entretermos, iludirmos e imaginarmos, o meio passou a fazer a mensagem. No caso dos Potiguara, cuja sociedade ainda não é alfabetizada e, na sua maioria, baseiam a sua cultura na tradição oral, transmitindo os seus lugares da memória sobretudo através do poder do português do Brasil, mesmo quando adornado por escassas palavras tupi, é graças à mensagem e à representação que algumas das suas manifestações culturais reinventam continuadamente a sua identidade Potiguara. É, assim, a mensagem e a representação que inventam o real social e reinventam dinamicamente a identidade cultural e a memória deste povo. Os Potiguara são, hoje, definitivamente actores. Cada vez mais actores brasileiros que sabem preservar os lugares da memória de uma terra cultural que persiste em ser Potiguara.

Referências

1. ALMEIDA Alfredo Wagner Berno de. “O Getat e a Arrecadação de Áreas Rurais como Terra Devoluta”, in: A Amazônia Brasileira em Foco. Rio de Janeiro: CNDDA, Nº 15, 1984. [ Links ]

2. BAUMFELD Carlos Minc.“Violência e Terra, No Brasil e na Amazónia”, in: A Amazônia Brasileira em Foco. Rio de Janeiro: CNDDA, Nº 15, 1984. [ Links ]

3. GoMES Mércio Pereira. Os Índios e o Brasil: Ensaio sobre um Holocausto e sobre uma Nova Possibilidade de Convivência. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1998. [ Links ]

4. HARNER Michael. The way of shaman: a guide to power and healing. New York: Harper & Row Publishers, 1980. [ Links ]

5. McLuhan Marshall. The Gutenberg Galaxy: The making of Typographic Man. Toronto: University of Toronto Press, 1962. [ Links ]

6. McLUHAN Marshall, FIORE Quentin. The Medium is the Message: An Inventory of Effects. Harmondsworth: Penguin, 1967 [ Links ]

7. MOTA Clarice Novaes da. “Ser Indígena no Brasil Contemporâneo: Novos Rumos para um Velho Dilema”, in: Ciência e cultura (cienciaecultura.bvs.br). vol.60, nº4, São Paulo, 2008. [ Links ]

8. NASH Roy. “Uma Política Florestal para o Brasil”, in: A Amazônia Brasileira em Foco. Rio de Janeiro: CNDDA, Nº 15, 1984. [ Links ]

9. NORA Pierre. Les Lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984-1992, 3 t., 7 vols. [ Links ]

Notas

1. Entrevista concedida por Dona Joana, da Aldeia Galego, a 5 de Dezembro de 2007.

2. Entrevista concedida pelo chefe geral da reserva dos Índios Potiguara, Caboquinho, a 20 de Dezembro de 2017.

3. Dito popular referido em entrevista concedida pelo chefe geral da reserva dos Índios Potiguara, Caboquinho, a 20 de Dezembro de 2017.

4. Entrevista concedida pelo Índio Jano, a 28 de Dezembro de 2017.

5. Entrevista concedida pelo Índio Jano, a 28 de Dezembro de 2017.

6. Entrevista concedida pelo Índio Jano, a 28 de Dezembro de 2017.

7. Entrevista concedida pelo Índio Jano, a 28 de Dezembro de 2017.

8. Entrevista concedida pelo Índio Jano, a 28 de Dezembro de 2017.

9. Entrevista concedida pelo Índio Jano, a 28 de Dezembro de 2017.

10. Entrevista concedida pelo Índio Jano, a 28 de Dezembro de 2017.

11. Entrevista concedida pelo Índio Jano, a 28 de Dezembro de 2017.

12. Entrevista concedida pelo Índio Jano, a 28 de Dezembro de 2017.

13. Entrevista concedida pelo Índio Jerónimo Carvalho a 22 de Agosto de 2019.

14. Entrevista concedida pelo Índio Jano, a 28 de Dezembro de 2017.

15. Entrevista concedida pelo Índio Jano, a 28 de Dezembro de 2017.

16. Entrevista concedida pelo cacique de São Francisco, Djalma, a 28 de Novembro de 2017.

17. Entrevista concedida pelo Índio Jano, a 28 de Dezembro de 2007.

18. Entrevista concedida pelo ex-cacique geral das aldeias Potiguara, Raqué, a 16 de Novembro de 2007.

19. Entrevista concedida pelo cacique de São Francisco, Djalma, a 28 de Novembro de 2007.

20. Entrevista concedida pelo chefe geral da reserva dos Índios Potiguara, Caboquinho, a 20 de Dezembro de 2017.

Recebido: 05 de Setembro de 2022; Aceito: 18 de Dezembro de 2022

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