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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.28 no.4 Lisboa jul. 2012

 

EDITORIAL

Questões de liderança

Raquel Braga*

*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

 


É possível recordar que, ainda há poucos anos atrás, a nível dos Cuidados de Saúde Primários, a figura de um ‘Director Clínico’, encarnada pelo Director de um Centro de Saúde, se traduzia na pessoa que detinha a gestão corrente, a organização dos recursos humanos e logísticos, que veiculava as estratégias da Direcção-Geral de Saúde. Em alguns casos, estes ‘Directores Clínicos’ extravasavam essas competências de gestão e tinham uma real actividade clínica, dirigindo e fomentando reuniões clínicas, pugnando pela implementação de programas de saúde, pelas boas práticas clínicas e pelo apoio e desenvolvimento da formação médica contínua e da investigação.

Com a reforma dos Cuidados de Saúde Primários1 aboliu-se a imagem do Director do Centro de Saúde e procurou-se um formato de gestão mais partilhada e descentralizada através da criação da figura de Coordenador da Unidade de Saúde. Estas Unidades, em particular as Unidades de Saúde Familiar, com maior autonomia e responsabilização de todos os seus elementos, procuravam demover uma hierarquia vertical e cristalizante para promoverem uma liderança partilhada, activa e alternada.

Numa parte interessante dos casos, a autonomia e liderança das Unidades de Saúde é um facto, um sucesso recompensador para quem fez a aposta neste tipo de modelo. No entanto, desde logo se percebeu que, em alguns casos, a coordenação assumiu “tiques” e maneirismos de anteriores formatos de Direcção, não só porque de um dia para o outro os Coordenadores (agora eleitos entre a equipa por votação) eram afinal os anteriores Directores dos Centros de Saúde, mas também porque os anteriores dirigidos, procuravam (in)activamente continuar a ser comandados, sem interesse por tomar em mãos a responsabilidade partilhada e o peso do trabalho da gestão da Unidade de Saúde.

Verificamos até que, em algumas Unidades, nomeadamente em Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados, há crises de liderança, sem candidatos voluntários à Coordenação. Exceptuando as Unidades de Saúde Familiar em Modelo B, em que essa função é remunerada, o incentivo a assumir esta liderança é por vezes diminuto e apresenta-se mais como uma carga de trabalhos a desenvolver a par da prática clínica, do que como uma oportunidade de desenvolvimento pessoal e profissional, com reconhecimento interpares ou com reconhecimento institucional, através de recompensa financeira.

Na sequência da reforma dos Cuidados de Saúde Primários e da criação dos ACeS (Agrupamentos de Centros de Saúde) surgiram as figuras dos Conselhos Clínicos e dos Directores Executivos.1 A separação e interpenetração de funções entre estes dois organismos parece racional e interessante. Na prática, ao Director Executivo cabe um papel de gestão em saúde e ao Conselho Clínico um papel a nível das boas práticas de saúde, das auditorias, da formação contínua e da gestão do risco clínico.1 Ter separado estas duas vertentes permite libertar os presidentes dos Conselhos Clínicos para direccionarem a sua actuação para as vertentes realmente clínicas e possibilitar ao Director Executivo um maior foco nos assuntos de decisão estratégica e de gestão.

Apesar desta separação de funções, espera-se dos Directores Executivos um papel integrador e compreensivo dos aspectos clínicos na gestão do ACeS. Daí que um Director Executivo que seja médico com competência, experiência ou formação em gestão em saúde seja uma mais valia. O mesmo se poderá talvez dizer de um gestor com experiência ou formação na área da saúde, sensível e aberto às questões clínicas e capaz de ultrapassar uma visão meramente contabilística para abarcar uma estratégia de real governância clínica. Neste último caso, para que a escolha resulte, um director executivo que não seja médico tem de ser devidamente assessorado e aconselhado nas questões clínicas pelo Conselho Clínico (que integra o presidente, um médico de família, bem como mais três elementos representantes de cada grupo profissional que integra o ACeS).

No caso de um Director Executivo ser médico, podem, eventualmente, as funções de gestão não revelar um tão apurado grau de eficiência, mas a compreensão das questões clínicas, de facto a finalidade principal do ACeS, será mais natural.

Em qualquer dos casos, para o papel de Coordenador da Unidade (eleito interpares ou designado), para o papel de Director Executivo ou de Presidente de Conselho Clínico, as questões do reconhecimento interpares, as qualidades técnico-científicas e as competências em gestão e liderança são cruciais.

Valorizar quem desempenha condignamente estes papéis é fundamental para possibilitar que estas funções sejam apetecíveis, estimulantes e seja uma honra, para além de um dever cívico, desempenhá-las.

Não podemos permitir que, sem o necessário ou adequado incentivo financeiro e muitas vezes sem qualquer outro tipo de reconhecimento, quem desempenha estas funções seja chamado a assumir cada vez mais responsabilidades, como no caso dos Conselhos Clínicos, a auditoria das normas de orientação clínica, o acompanhamento e a implementação e desenvolvimento das Unidades de Saúde, para além do acompanhamento e discussão dos perfis de prescrição, dos registos clínicos e dos indicadores de saúde contratualizados e ainda a contratualizar, etc, etc, etc…

Algumas destas tarefas, assumindo um carácter que pode ser entendido como ‘policial’, podem ser até francamente desestimulantes de uma liderança visionária, inspirada e inspiradora.

A especialização em gestão que o sector da saúde requer na actualidade não se compadece com amadorismos e boas-vontades. É compreensível e salutar essa evolução, bem como o pressuposto de que nem sempre os médicos são os únicos gestores possíveis de serviços médicos. No entanto, nenhum gestor, mesmo com diferenciação e experiência na área da saúde, poderá ser um Director Clínico. Partindo da premissa de que estas funções ficam mais bem asseguradas se forem repartidas, dificilmente poderemos dizer qual das duas deve ser mais valorizada.

Não podemos deixar que o papel de uma direcção clínica em qualquer serviço de saúde, quer seja a nível hospitalar quer seja a nível dos Cuidados de Saúde Primários, deixe de ser valorizado, ou seja mesmo subalternizado às questões puras da gestão.

Não devemos deixar que um médico que assume as funções de direcção clínica seja menos valorizado do que um seu colega que mantém apenas a pratica clínica.2,3 Será perigoso impedir um Director Clínico (sobretudo quando este já não é, nem tem de ser, um gestor), de praticar clínica.2 A prática clínica, outrora incompatível com a sobrecarga das actividades de gestão que um Director Clinico tinha de desempenhar, bem como a dedicação que essa função pressupunha, na dose sensata e no nosso contexto actual, poderá ser um auxílio e um estímulo a manter uma liderança actualizada, eficaz e realista.

Factores, actualmente mandatórios, como a falta de retribuição diferenciada, como a falta de valorização interpares e da possibilidade de manter uma actividade clínica compatível com as funções de Direcção Clínica, poderão ser constrangimentos a que as pessoas certas se abeirem e assumam a liderança.

O risco de os médicos se afastarem cada vez mais destas funções que lhes são naturais e para as quais são insubstituíveis e se transformarem em meros assalariados acéfalos e desinteressados das questões maiores de estratégia e da governância clínica é real.

É tempo de, politicamente, se repensarem as prioridades e de os médicos recuperarem o lugar que sempre tiveram na liderança dos sistemas de saúde, com o reconhecimento efectivo do seu papel. É uma questão de respeito pela dignidade de uma classe que, genericamente, sempre colocou o interesse comum acima do seu próprio, sem se deixar vencer pelo desestímulo ou pelo cansaço.

É uma questão que, embora afectando directamente um número exíguo, se reflecte profundamente em todos nós e, sobretudo, deixará marcas na qualidade do nosso sistema de saúde, se não for prontamente corrigida.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Decreto-Lei n º 28/2008, de 22 de Fevereiro. Diário da República, 1.a série — N.o 38 — 22 de Fevereiro de 2008.

2. Decreto-lei nº 8/2012, de 11 de Janeiro. Diário da República, 1.ª série — N.º 13 — 18 de Janeiro de 2012.

3. Comunicado do Conselho de Ministros de 16 de Agosto de 2012. Disponível em: http://www.portugal.gov.pt/pt/os-ministerios/primeiro-ministro/secretario-de-estado-da-presidencia-do-conselho-de-ministros/documentos-oficiais/20120816-cm-comunicado.aspx [acedido em 17/08/2012].         [ Links ]

 

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director@rpcg.apmcg.pt

 

Conflito de interesses

A autora é Presidente do Conselho Clínico do ACeS de Matosinhos

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