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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.28 no.4 Lisboa jul. 2012

 

CLUBE DE LEITURA

Profilaxia da enxaqueca: opiniões, motivos e expetativas dos doentes

Diana Carneiro

Interna de Medicina Geral e Familiar, Unidade de Saúde Familiar Horizonte – Unidade Local de Saúde de Matosinhos

 


Dekker F, Knuistingh Neven A, Andriesse B, Kernick D, Reis R, Ferrari MD, et al. Prophylactic treatment of migraine; the patient’s view, a qualitative study. BMC Fam Pract 2012 Mar 9; 13: 13

Introdução

A abordagem da enxaqueca integra a agenda de grande parte das consultas em cuidados de saúde primários. A profilaxia da enxaqueca pode, em cerca de 50% dos doentes, reduzir as crises para metade. Assim, é de extrema importância a negociação da profilaxia da enxaqueca nos doentes com sintomatologia de longa duração.

A maioria dos estudos realizados até à data teve como objetivo avaliar a eficácia desta profilaxia no alívio dos sintomas. Estudos qualitativos desenhados para conhecer a opinião, os motivos e as expetativas dos doentes ainda não foram realizados.

Objetivo

Explorar as opiniões, os motivos e as expectativas dos doentes com o diagnóstico de enxaqueca sobre a profilaxia.

Métodos

Realizou-se um estudo qualitativo com a formação de três grupos focais na discussão sobre a profilaxia da enxaqueca. Os doentes foram selecionados de forma a representar uma ampla gama de experiências. O moderador de cada grupo utilizou um guia estruturado que englobou uma fase inicial de introdução e familiarização entre os participantes, seguida de uma fase de discussão sobre as experiências vivenciadas. Foram também discutidas as vantagens e desvantagens da profilaxia da enxaqueca e as experiências e as atitudes dos doentes perante a profilaxia.

Resultados

Cinco principais categorias de discussão surgiram nos grupos focais:

1 – Atitudes preventivas para aliviar os sintomas

A maioria dos doentes referiu a preocupação em alterar os hábitos alimentares e em manter um ritmo circadiano estável. Estas intervenções foram muitas vezes apoiadas pelos seus próprios médicos. Para muitos doentes o tratamento profilático foi o último recurso.

“No início, quando a minha enxaqueca foi diagnosticada, evitei todo o tipo de comida, tomei vitaminas e outros suplementos, fiz terapias de relaxamento…”

2 – Satisfação com o tratamento atual

A satisfação com o tratamento atual está relacionada com a severidade das crises e com o impacto destas na vida diária dos doentes. Mais de metade dos doentes manifestou a necessidade de reduzir o número de medicamentos. Grande parte dos doentes refere que já sabe quando a crise está a chegar e que toma a medicação antes da crise se instalar, considerando esta atitude a profilaxia da enxaqueca.

“Eu já tomei tantos medicamentos… quando sinto a dor de cabeça a chegar, tomo a medicação e isso é que é prevenção para mim.”

3 – Iniciativa em iniciar a profilaxia da enxaqueca

Apesar da maioria dos doentes ainda não ter iniciado a profilaxia, estes reconhecem a sua existência. A discussão em grupo não permitiu chegar a um consenso sobre quem deve tomar a iniciativa de iniciar a profilaxia. Cerca de metade dos doentes espera uma atitude ativa do seu médico, a outra metade (doentes de regiões urbanas e com maior grau académico) prefere tomar a iniciativa autonomamente.

Todos os doentes esperam que os seus médicos sejam capazes de discutir as vantagens e desvantagens da profilaxia e que esta discussão tenha lugar no momento apropriado. Esta discussão não ocorre necessariamente na data do diagnóstico, mas quando o doente tem uma vivência mais real (maior número de crises e maior impacto destas na vida diária) e quando já não é capaz de lidar com as crises.

«A minha dor de cabeça era tão severa que fui ao médico… não podia fazer mais nada além de chorar. Ele tentou confortar-me e ofereceu-me a profilaxia…»

4 – Avaliação das vantagens e desvantagens da profilaxia

Na perspetiva dos doentes, a decisão de iniciar a profilaxia é complexa. As desvantagens referidas pelos doentes foram: o medo dos efeitos secundários, de se tornarem doentes crónicos, das reações das pessoas mais próximas e de ficarem dependentes; e a baixa confiança no cumprimento e na eficácia da medicação.

“Se eu tomar medicamentos todos os dias, sentirei que sou um doente.”

Os benefícios mencionados pelos doentes foram: a redução do impacto negativo na vida diária, a facilidade de administração, os ganhos em saúde, a redução da medicação das crises, a menor pressão das pessoas mais próximas e a maior disponibilidade para cuidar das pessoas por quem são responsáveis.

5 – A relação estabelecida com o médico

Os doentes referem que, para equacionarem o início da profilaxia, é necessário terem uma relação de confiança e de longa duração com os seus médicos. Consideram que é necessário um conhecimento amplo para que os médicos compreendam o peso que suportam. Mencionam que é importante sentirem que os seus sentimentos estão a ser tidos em consideração.

“Existe sempre o medo da próxima crise e o meu médico de família parece compreender esse sentimento.”

Conclusão

Os aspetos mencionados pelos doentes para iniciar a profilaxia da enxaqueca podem ser divididos em três categorias: os aspetos relacionados com o doente, com o médico e com a doença. O conhecimento do conteúdo de cada uma destas categorias é crucial para a abordagem da enxaqueca na prática clínica diária.

É primordial conhecer os medos e as expetativas dos doentes, isto é, como o doente vive a sua doença: medo dos efeitos secundários da medicação, medo de se tornarem doentes crónicos, medo das reações das pessoas mais próximas, medo de ficarem dependentes da medicação, reduzida confiança no cumprimento e na eficácia da medicação. Os doentes valorizam os seguintes aspetos nos médicos: construção de uma relação de confiança e de longa duração, transmissão de informação sobre as vantagens e desvantagens quando pedido pelos doentes e perceção do melhor momento para a abordagem da profilaxia. O impacto da enxaqueca na vida diária de cada doente, o número e a severidade das crises de cada doente e a eficácia do tratamento das crises em cada doente, são caraterísticas relacionadas com o processo da doença.

Este estudo confirma a complexidade do processo de decisão. Cria-se assim uma ambivalência entre a necessidade de reduzir o impacto negativo na vida diária e o conhecimento dos medos verbalizados pelos doentes. Assim, torna-se fundamental explorar e lidar com as emoções individuais.

COMENTÁRIO

A Organização Mundial de Saúde classifica a enxaqueca entre as 20 principais causas de perda de anos de vida saudável por ano, a nível mundial.1 A maioria dos estudos demonstrou que os doentes com enxaqueca são prejudicados nas suas atividade diárias e que a sua qualidade de vida é inferior comparativamente com a população geral e com outras doenças crónicas.2,3 A elevada prevalência da enxaqueca, particularmente durante a idade de grande produtividade e responsabilidade, explica porque é que a enxaqueca afeta a sociedade.2

A profilaxia da enxaqueca reduz a frequência das crises e a medicação efetuada. Além disso, aumenta a capacidade funcional dos doentes nas suas atividades diárias, melhorando a qualidade de vida e, consequentemente, reduzindo o número de faltas ao trabalho.2 As normas de orientação clínica diferem relativamente às recomendações sobre quando iniciar a profilaxia da enxaqueca. A preferência do doente é, certamente o fator mais importante nesta decisão.4

Dos estudos qualitativos realizados sobre a enxaqueca, apenas um se debruçou sobre o tratamento profilático. Nesse estudo, foram incluídos apenas doentes que já tinham iniciado a profilaxia da enxaqueca, aos quais foi aplicado um questionário dirigido aos efeitos secundários e à escolha da medicação.5 Assim, este é o primeiro estudo qualitativo que aborda a forma como os doentes encaram a profilaxia da enxaqueca.

A abordagem da vivência da doença e da dolência implica que o clínico aceite e reconheça a diferença entre estes dois conceitos e assuma que cuidar da pessoa na sua globalidade implica ter em consideração estas duas dimensões.6,7 O conhecimento do sofrimento do doente exige conhecer as suas experiências individuais e subjetivas: sentimentos, pensamentos, emoções, receios e impacto na sua vida diária.6,7

O tratamento ideal depende da valorização que o doente faz dos diferentes resultados e riscos de cada procedimento. O processo de decisão combina a perícia do clínico (informação clínica, resultados de estudos, experiência em cuidar doentes semelhantes) e as preferências do doente na seleção da melhor opção (o doente traz as suas circunstâncias de vida únicas, os seus valores e prioridades).

Assim constrói-se a relação médico-doente, a pedra basilar da Medicina Geral e Familiar. A construção desta relação necessita da aquisição, por parte do clínico, de uma posição de conforto na exploração das emoções (os sentimentos, as crenças e o impacto) e na resposta às emoções (validar, respeitar, suportar, refletir, fazer aliança).

Torna-se fundamental o desenvolvimento de mais estudos qualitativos que explorem os sentimentos dos doentes acerca das suas doenças e do seu tratamento, permitindo assim que, na construção da relação médico-doente, o clínico consiga ir ao encontro da agenda do doente.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Sociedade Portuguesa de Cefaleias. Princípios europeus da abordagem das cefaleias comuns nos cuidados de saúde primários. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Cefaleias; 2010.         [ Links ]

2. D’Amico D, Solari A, Usai S, Santoro P, Bernardoni P, Frediani F, et al. Improvement in quality of life and activity limitations in migraine patients after prophylaxis: a prospective longitudinal multicenter study. Cephalalgia 2006 Jun; 26 (6): 691-6.         [ Links ]

3. Freitag FG. The cycle of migraine: patient´s quality of life during and between migraine attacks. Clin Ther 2007 May; 29 (5): 939-49.         [ Links ]

4. Goadsby PJ, Sprenger T. Current practice and future directions in the prevention and acute management of migraine. Lancet Neurol 2010 Mar; 9 (3): 285-98.         [ Links ]

5. Rozen TD. Migraine prevention: what patients want from medication and their physicians (a headache specialty clinic perspective). Headache 2006 May; 46 (5): 750-3.         [ Links ]

6. Nunes JM. Comunicação em contexto clínico. Lisboa Bayer Health Care; 2007.         [ Links ]

7. McWhinney IR, Freeman T. Manual de Medicina de Família e Comunidade. Lisboa: Artmed; 2010.         [ Links ]

 

Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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