SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número4Profilaxia da enxaqueca: opiniões, motivos e expetativas dos doentes índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.28 no.4 Lisboa jul. 2012

 

CLUBE DE LEITURA

Aspirina como quimioprevenção do cancro?

Alexandra Duarte*, Joana Neto*

*Internas de Formação Específica em Medicina Geral e Familiar, USF São João de Sobrado

 


Mills EJ, Wu P, Alberton M, Kanters S, Lanas A, Lester R. Low-dose aspirin and cancer mortality: a meta-analysis of randomized trials. Am J Med 2012 Jun; 125 (6): 560-7.

Introdução

A prevenção de eventos cardiovasculares com recurso a uma baixa dose diária de aspirina (ácido acetilsalicílico, AAS) em doentes de alto risco, com doença cardiovascular prévia, tem sido bem estudada e comprovada.

O único ensaio randomizado completo realizado até à data, que analisou o possível efeito preventivo da aspirina sobre a ocorrência de cancro, veio demonstrar que altas doses de aspirina teriam efeito protetor. Adicionalmente, uma meta-análise recente, que incluía oito ensaios clínicos, demonstrou que a aspirina reduzia o risco a longo prazo de mortalidade por cancro, independentemente da dose.

Objetivo

Determinar se a mortalidade por cancro é igualmente reduzida por doses baixas de aspirina a curto prazo.

Metodologia

Foi realizada uma meta-análise que incluiu todos os ensaios clínicos randomizados que avaliavam o papel terapêutico da aspirina diária isolada, em baixa dose (75-325 mg), em qualquer população, tendo como outcomes a doença não cardiovascular e a mortalidade por cancro. Foram pesquisadas as bases de dados Medline, Embase, Amed, CinAHL, TOXNET, Cochrane CENTRAL, PsycINFO, Web of Science, ScienceDirect e Ingenta, de artigos publicados em qualquer língua até dezembro de 2011. Dois investigadores, de forma independente e em duplicado, selecionaram os artigos pelo abstract e posteriormente pelo texto completo, analisando e introduzindo informações e características pré-definidas dos ensaios numa base de dados. A concordância inter-investigadores na inclusão dos artigos foi avaliada como “quase perfeita” (Phi = 0.85). O impacto da duração e dose na quantidade do efeito final (outcomes) foi avaliado através do agrupamento de estudos segundo um modelo de random-effects, procedendo posteriormente à sua meta-regressão. Foi também realizada uma meta-análise cumulativa, dos ensaios mais curtos até aos mais longos, para estimar qual o período de tempo durante o qual os efeitos do tratamento se tornam significativos.

Resultados

Foram incluídos 23 estudos randomizados, que avaliavam a morte de causa não vascular, 11 dos quais especificamente a morte por cancro. Do total dos estudos, verificou-se 944 mortes de 41 398 doentes (2,28%) que faziam baixa dose de aspirina e 1 074 de 41 470 (2,58%) que não recebiam terapêutica com aspirina, com um follow-up (FU) médio de 2,5 anos. Daqui resultou um risco relativo estimado de 0.88 [intervalo de confiança (IC) 95%, 0.81-0.96, I2 = 0%].

Dos 11 ensaios que reportavam especificamente mortes por cancro (16 066 participantes), verificaram-se 162 mortes de 7 998 doentes (2,02%) e 210 de 8 068 (2,60%), entre os que tomavam uma baixa dose de aspirina e os que não faziam aspirina, respetivamente, com um FU médio 2.8 anos. Estes resultados são a favor de um efeito protetor da aspirina em baixa dose, já que se verificou uma redução significativa da mortalidade por cancro, com um risco relativo de 0,77 (IC 95%, 0,63-0,95, I2 = 0%)

Os estudos, na sua globalidade, demonstraram diferenças estatisticamente significativas do tratamento após uma média de 4 anos de FU.

Discussão

Os resultados desta meta-análise são consistentes com os de uma outra anteriormente realizada, que conclui que a aspirina evidencia proteção sobre a mortalidade por cancro. Foi demonstrado que este efeito protetor advém do tratamento com baixas doses, surgindo num curto período de tempo.

Estes resultados vêm realçar o importante papel da aspirina sobre a proteção oncológica, que deverá ser clinicamente útil em doentes de baixo e alto risco com doença cardiovascular, tendo sempre em conta que os potencias benefícios da aspirina deverão ser contrabalançados com o risco hemorrágico.

Pontos fortes desta meta-análise incluem: (1) a extensa pesquisa da literatura, tendo em conta a inclusão de todo e qualquer ensaio clínico randomizado acerca do uso diário de baixa dose de aspirina; (2) a avaliação de mortes não vasculares e de morte por cancro. Entre os pontos fracos: (1) a ausência de dados relativos à incidência de cancros que não resultaram em mortes durante os períodos de estudo e o seguimento a longo prazo [de realçar que estudos mais longos irão identificar mais apropriadamente a incidência de cancros do que estudos mais curtos, uma vez que os estudos incluídos nesta meta-analise têm curta duração (FU médio de 2.5 anos) e, portanto, é muito provável que tenham subestimado o efeito a longo prazo do tratamento com aspirina nas mortes por cancro – apesar da meta-análise anteriormente realizada, que incluiu ensaios com 20 ou mais anos de duração, ter obtido as mesmas conclusões]; (2) é provável que existam viéses no que concerne à mortalidade por cancro, porque a maioria dos estudos foi desenhada para avaliar outcomes de doença cardiovascular, o que leva a que: (a) o cancro possa estar subestimado (apenas 11 ensaios relatavam mortalidade por cancro); (b) 12 ensaios abordavam apenas as mortes não vasculares não fazendo referência a mortes por cancro.

Os autores realçaram o facto dos benefícios da aspirina ao nível da prevenção oncológica se basearem, provavelmente, em efeitos pleiotrópicos, talvez anti-inflamatórios, e efeitos apoptóticos em vez de só antitrombolíticos.

Conclusão

Este estudo demonstrou um importante efeito da utilização de uma baixa dose de aspirina na prevenção da mortalidade não vascular e por cancro, que se pode verificar num curto período de tempo.

Comentário

O efeito da aspirina na redução do risco de eventos cardiovasculares está bem definido, sempre contrabalançado pelo seu efeito hemorrágico. No entanto ainda existe alguma controvérsia relativamente ao seu efeito antineoplásico.

A prova mais consistente do efeito antineoplásico da aspirina tem-se verificado na redução do risco do cancro colo-retal (CCR) e na recorrência dos pólipos adenomatosos.1-6 Relativamente a outras neoplasias (como a esofágica, gástrica, biliar, prostática e mamária, e ainda metástases à distância, tanto iniciais como subsequentes),6-8 têm sido revelados também dados interessantes, com reduções de risco de cancro em cerca de 21%, embora com benefício apenas após 5 anos de terapêutica, e ainda uma redução na mortalidade por cancro em FU até 20 anos.7-9 Um estudo que avaliou 51 ensaios randomizados demonstrou que a aspirina, independentemente da dose, reduzia significativamente a mortalidade por cancro em 15% (benefício observado aos 3 anos com doses altas de AAS, > 300mg/dia; e aos 5 anos para doses baixas, <300 mg/dia).10 Por outro lado, estudos realizados a nível de prevenção primária revelaram que a aspirina não se associava à redução de risco de CCR em FU de 10 a 15 anos,11,12 nem à diminuição da incidência ou mortalidade de cancro em geral.11

Vários estudos levantam a hipótese do efeito antineoplásico da aspirina estar relacionado com a sua ação antiplaquetária (pela inibição irreversível da COX-2, que leva à diminuição da síntese de prostaglandinas, que podem inibir o crescimento tumoral) no crescimento e disseminação de células tumorais, bem como o seu início,1,3,7,8,13 já que se verifica um aumento da atividade plaquetária nos doentes com cancro, e esta ativação plaquetária é um dos pontos-chave da disseminação tumoral.13

Até hoje não foram ainda atualizadas as recomendações da US Preventive Task Force (USPTF) sobre este assunto, sendo que as de 2007 ainda não propunham a utilização da aspirina como quimioprevenção primária, relativamente ao CCR. É referido, no documento, que o uso crónico de AAS aumenta o risco de hemorragia gastrointestinal e AVC hemorrágico, bem como o de insuficiência renal e hipertensão.2 Neste sentido o risco hemorrágico tem vindo a ser averiguado, sendo que uma meta-análise de 2011 permitiu aferir que basta tratar com AAS 261 pacientes durante um período de 6,9 anos para que um deles tenha um evento hemorrágico major (Number Needed to Harm = 261).14

Calculando o Number Needed to Treat do uso de aspirina a partir dos 23 estudos incluídos nesta meta-análise (FU médio de 2,5 anos), resulta o valor de 323 e, mais especificamente, de 173, calculando-o a partir dos 11 estudos que avaliaram a morte por cancro, o que traduz uma necessidade de tratar 173 pacientes com AAS, durante 2,8 anos (tempo médio de FU dos 11 estudos) para que um deles tenha benefício (evicção de morte por cancro).

Estudos apontam para que o fator mais importante na redução do cancro seja a duração da exposição à aspirina,8 apesar de ainda não terem sido definidas a menor dose eficaz, a duração do tratamento, a população alvo ideal ou os efeitos mais específicos na sobrevida.1

Saliente-se, por fim, que as conclusões deste estudo, por terem sido noticiadas pela comunicação social aquando da sua publicação, poderão condicionar um incremento na solicitação da prescrição deste fármaco por utentes e doentes mais bem informados, ou até mesmo de alguns o iniciarem sem conhecimento ou aconselhamento médico.

Por tudo isto, as autoras são da opinião que o efeito benéfico da aspirina sobre o cancro deverá ser objeto de mais estudos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Ferrández A, Piazuelo E, Castells A. Aspirin and the prevention of colorectal cancer. Best Pract Res Clin Gastroenterol 2012 Apr; 26 (2): 185-95.         [ Links ]

2. US Preventive Services Task Force. Routine aspirin or nonsteroidal anti-inflammatory drugs for the primary prevention of colorectal cancer: US Preventive Services Task Force recommendation statement. Ann Intern Med 2007 Mar 6; 146 (5): 361-64.         [ Links ]

3. Cole BF, Logan RF, Halabi S, Benamouziq R, Sandler RS, Grainge MJ, et al. Aspirin for the chemoprevention of colorectal adenomas: meta-analysis of the randomized trials. J Natl Cancer Inst 2009 Feb 18; 101 (4): 256-66.         [ Links ]

4. Burn J, Gerdes AM, Macrae F, Mecklin JP, Moeslein G, Olschwang S, et al,; CAPP2 Investigators. Long-term effect of aspirin on cancer risk in carriers of hereditary colorectal cancer: an analysis from the CAPP2 randomised controlled trial. Lancet 2011 Dec 17; 378 (9809): 2081-7.         [ Links ]

5. Rothwell PM, Wilson M, Elwin CE, Norrving B, Algra A, Warlow CP, et al. Long-term effect of aspirin on colorectal cancer incidence and mortality: 20-year follow-up of five randomised trials. Lancet 2010 Nov 10; 376 (9754): 1741-50.         [ Links ]

6. Wolin KY, Colditz G. Cancer Prevention. In: Uptodate; 2012, revisto em 29/03/2012. Disponível em: http://www.uptodate.com/contents/cancer-prevention [acedido em 10/07/2012].         [ Links ]

7. Algra AM, Rothwell PM. Effects of regular aspirin on long-term cancer incidence and metastasis: a systematic comparison of evidence from observational studies versus randomised trials. Lancet Oncol 2012 May; 13 (5): 518-27.         [ Links ]

8. Rothwell PM, Wilson M, Price JF, Belch JF, Meade TW, Mehta Z. Effect of daily aspirin on risk of cancer metastasis: a study of incident cancers during randomised controlled trials. Lancet. 2012 Apr 28; 379 (9826): 1591-601.         [ Links ]

9. Rothwell PM, Fowkes FG, Belch JF, Ogawa H, Warlow CP, Meade TW. Effect of daily aspirin on long-term risk of death due to cancer: analysis of individual patient data from randomised trials. Lancet 2011 Jan 1; 377 (9759): 31-41.         [ Links ]

10. Rothwell PM, Price JF, Fowkes FG, Zanchetti A, Roncaglioni MC, Tognoni G, et al. Short-term effects of daily aspirin on cancer incidence, mortality, and non-vascular death: analysis of the time course of risks and benefits in 51 randomised controlled trials. Lancet 2012 Apr 28; 379 (9826): 1602-12.         [ Links ]

11. Cook NR, Lee IM, Gaziano JM, Gordon D, Ridker PM, Manson JE, et al. Low-dose aspirin in the primary prevention of cancer: the Women’s Health Study: a randomized controlled trial. JAMA 2005 Jul 6; 294 (1): 47-55.         [ Links ]

12. Stürmer T, Glynn RJ, Lee IM, Manson JE, Buring JE, Hennekens CH. Aspirin use and colorectal cancer: post-trial follow-up data from the Physicians’ Health Study. Ann Intern Med 1998 May 1; 128: 713-20.         [ Links ]

13. Bambace NM, Holmes CE. The platelet contribution to cancer progression. J Thromb Haemost 2011 Feb; 9 (2): 237-49.         [ Links ]

14. Berger JS, Lala A, Krantz MJ, Baker GS, Hiatt WR. Aspirin for the prevention of cardiovascular events in patients without clinical cardiovascular disease: a meta-analysis of randomized trials. Am Heart J 2011 Jul; 162 (1): 115-24.e2.         [ Links ]

 

Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons