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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.29 no.1 Lisboa jan. 2013

 

CLUBE DE LEITURA

Rastreio do cancro da mama: leges artis ou primum non nocere?

Breast cancer screening: leges artis or primum non nocere?

João Pedro Fallé

Interno de Formação Específica em Medicina Geral e Familiar, USF Lagoa, ULS Matosinhos


 

Independent UK Panel on Breast Cancer Screening. The benefits and harms of breast cancer screening: an independent review. Lancet 2012 Nov 17; 380 (9855): 1778-86.

 

Introdução

O rastreio do cancro da mama através de mamografia foi implementado em Inglaterra pelo National Health System Breast Cancer Screening Programme em 1988. Estudos sobre o follow-up das mulheres submetidas a este rastreio conduziram ao debate sobre os potenciais benefícios do rastreio do cancro da mama, centrado na redução da mortalidade atribuível ao rastreio, o número de sobrediagnósticos e a análise dos riscos e benefícios. Os autores deste artigo fizeram uma revisão dos trabalhos publicados até à data, focando-se nos efeitos do rastreio do cancro da mama do Reino Unido (mamografia trianual entre os 50 e os 70 anos de idade) a nível da mortalidade e sobrediagnóstico.

O Efeito do Rastreio na Mortalidade

O objetivo do rastreio é antecipar o momento do diagnóstico de modo a que o prognóstico possa ser melhorado através de uma intervenção terapêutica precoce. O diagnóstico precoce leva a um aumento aparente na incidência do cancro da mama e a um aumento do tempo entre o diagnóstico e a morte. Assim, a medida de ganho será a redução na mortalidade por cancro da mama em mulheres submetidas a rastreio por mamografia em relação às não submetidas.

As primeiras conclusões dos autores acerca da mortalidade por cancro da mama baseiam-se numa revisão sistemática da Cochrane (2011). O risco relativo global, comparando mulheres rastreadas e não rastreadas, é de 0,80 [Intervalo de confiança (IC) 95% 0,73 - 0,89], ou seja, a redução de risco relativo da mortalidade por cancro da mama nas mulheres rastreadas é de 20% (IC 95% 11 - 27).

Em termos de ganho absoluto, uma mulher inicialmente rastreada aos 50 anos de idade e que o continue a ser até aos 70 anos, não terá qualquer benefício nos primeiros 5 anos de rastreio, mas a redução na mortalidade irá prolongar-se até 10 anos após o término do mesmo. Em relação à evicção de mortes por cancro da mama, por cada 235 mulheres rastreadas, 1 morte será evitada.

Sobrediagnóstico

O principal dano do rastreio é, para os autores, o sobrediagnóstico, definido como a deteção por rastreio de cancros que nunca teriam sido detetados clinicamente durante o tempo de vida da mulher, sejam eles invasivos ou in situ, uma vez que ambos são ativamente tratados.

Três importantes ensaios clínicos aleatorizados e controlados concluiram que 11% de todos os cancros detetados por mamografia de rastreio são sobrediagnóstico e que a probabilidade de uma mulher a quem foi diagnosticado um cancro representar sobrediagnóstico é de 19%. Aplicando este valor à incidência cumulativa de cancro da mama atual do Reino Unido (invasivo e in situ), 1 em cada 77 mulheres rastreadas dos 50 aos 70 anos terão um cancro da mama sobrediagnosticado.

Os autores defendem que o sobrediagnóstico ocorre e que a consequência deste sobrediagnóstico são cirurgias, radioterapia e quimioterapia desnecessárias. Contudo, concluem que é impossível distinguir, à partida, os carcinomas fatais dos sobrediagnósticos e que são necessários mais estudos que afiram melhor a percentagem de sobrediagnósticos.

Carcinoma Ductal in Situ

O carcinoma ductal in situ é um tumor maligno dos tecidos epiteliais da mama mas cujas células não se infiltram para além da membrana basal, ficando limitado aos ductos de onde surge, pelo que não constitui, por si só, uma patologia fatal, embora possa ser associado com cancro invasivo. O problema deste tipo de carcinoma é que é detetado mais frequentemente por via da mamografia de rastreio do que sintomaticamente (20% vs 5%). Estudos não demonstram qualquer efeito significativo do carcinoma ductal in situ na sobrevivência da mulher até 20 anos de follow-up após o diagnóstico. Assim, o diagnóstico de carcinoma ductal in situ por mamografia de rastreio obriga à ponderação entre os potenciais ganhos no diagnóstico e tratamento desta lesão pré-cancerígena invasiva em algumas mulheres e os riscos de tratamento em outras mulheres de algo que nunca afetaria a sua vida.

Outros danos

Embora de menor grau, os autores entendem que existem outros danos associados ao rastreio. A dor associada à realização da mamografia é frequente e, nalguns casos, levará a que as mulheres não tornem a realizá-la. Cerca de 4% das mulheres submetidas a rastreio são reconvocadas para repetir a mamografia e possivelmente realizar biópsia. Destas, 1 em cada 5 terá cancro; das restantes, 70% vão necessitar de mais estudos imagiológicos e 30% de biópsia, procedimentos estes que causam dano psicológico e ansiedade.

Quase a totalidade (99%) das pacientes a quem foi diagnosticado um cancro da mama por rastreio vai ser submetida a cirurgia, 70% a radioterapia e 25% a quimioterapia. Todos estes procedimentos acarretam morbilidades reconhecidas embora tenham uma mortalidade reduzida (<0,15%). A grande questão é para as mulheres cujo cancro é sobrediagnóstico e para as quais as morbilidades não são compensadas por nenhum potencial ganho por diminuição da mortalidade.

Conclusões

O rastreio do cancro da mama prolonga a vida. A evidência disponível sugere uma redução da mortalidade de 20% das mulheres submetidas a programas de rastreio ao longo de 20 anos, o que corresponde a 1 morte evitada em 235 mulheres rastreadas. Contudo o sobrediagnóstico existe e não deve ser negligenciado. Por cada 10 mil mulheres rastreadas aos 50 anos e durante os 20 anos seguintes, 681 cancros serão detetados (129 dos quais sobrediagnóstico) e 43 mortes prevenidas, ou seja, por cada morte por cancro da mama evitado, 3 cancros sobrediagnósticos serão identificados e tratados. Todavia, segundo os autores, o benefício é superior ao dano, embora reconheçam que é necessário aumentar a especificidade da mamografia para que distinga os carcinomas mamários potencialmente fatais dos potencialmente «inócuos».

COMENTÁRIO

O objetivo de um programa de rastreio é diminuir a mortalidade por determinada doença, fundamentado na convicção de que um diagnóstico mais precoce melhora o prognóstico. Para isso, dois pré-requisitos são fundamentais: o rastreio deve ser capaz de antecipar o mais possível o diagnóstico de um carcinoma fatal; e o tratamento precoce destes cancros deve conferir vantagem face ao tratamento apenas na fase da sua apresentação clínica. Serão estas premissas cumpridas?

O rastreio do cancro da mama em Portugal foi pela primeira vez inserido no Plano Nacional Oncológico de 1990-19941 e consiste na realização de uma mamografia bianual a mulheres entre os 50 e os 69 anos de idade. Nos Estados Unidos da América (EUA), o rastreio do cancro da mama (bianual dos 40 aos 64 anos de idade)2 tem mais de 30 anos e alguns investigadores têm feito a análise dos resultados obtidos até à data. Um estudo em particular, recentemente publicado no New England Journal of Medicine,3 concluiu que, nos EUA, a implementação deste rastreio aumentou muito mais o número de cancros diagnosticados precocemente (mais 122/100 000 mulheres) do que diminuiu os casos com diagnóstico tardio (menos 8/100 000 mulheres), o que parece significar, segundo os autores, que apenas uma pequeníssima parte desses 122 cancros precocemente diagnosticados iriam evoluir para estádios mais avançados. Neste estudo, a taxa de sobrediagnóstico encontrada foi de 31%. Ainda segundo estes autores, os dados parecem indicar que a redução da mortalidade por cancro da mama verificada nos últimos anos se deve mais à evolução dos meios de terapêutica do que à realização de mamografias de rastreio. Esta conclusão é apoiada por um estudo,4 baseado nas estatísticas da Organização Mundial de Saúde a nível europeu, que sugere que o rastreio do cancro da mama não tem uma responsabilidade direta na redução da mortalidade por cancro da mama observada.

Um outro estudo5 europeu, que analisou 20 anos de follow-up em mulheres submetidas a programas de rastreio, concluiu que em cada 1 000 mulheres rastreadas, 67 terão o diagnóstico de cancro da mama (dos quais 6% serão sobrediagnóstico) e 21 - 23 falecerão (menos 7 do que as que morreriam se não tivessem sido rastreadas). Das 1 000 mulheres rastreadas, 200 serão reconvocadas para investigação devido a um falso-positivo, das quais 170 serão submetidas a procedimentos não invasivos e 30 a invasivos.

O efeito a longo-prazo da radiação decorrente do rastreio ainda não é conhecido. Mais estudos são necessários para que se perceba a real magnitude dos benefícios e riscos da mamografia. Contudo, e apesar dos conhecimentos atuais serem favoráveis à realização do rastreio de cancro da mama por mamografia, considerando que o benefício é superior ao risco, a mulher deve ser informada desses mesmos riscos e benefícios, para que a sua decisão de participar no rastreio seja a mais esclarecida possível.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Despacho 10/89, de 28 de Novembro de 1989, do Diário da República.

2. National Breast and Cervical Cancer Early Detection Program (NBCCEDP), Nov 2012. Disponível em: http://www.cdc.gov/cancer/nbccedp/ (acedido em 02/02/2013).         [ Links ]

3. Bleyer A, Welch HG. Effect of three decades of screening mammography on breast-cancer incidence. N Engl J Med 2012 Nov 22; 367 (21): 1998-2005.         [ Links ]

4. Autier P, Boniol M, Gavin A, Vatten LJ. Breast cancer mortality in neighbouring European countries with different levels of screening but similar access to treatment: trend analysis of WHO mortality database. BMJ 2011 Jul 28; 343: d4411.         [ Links ]

5. Paci E, Euroscreen Working Group. Summary of evidence of breast cancer service screening outcomes in Europe and first estimate of the benefit and harm balance sheet. J Med Screen 2012; 19 Suppl 1: 5-13.         [ Links ]

 

CONFLITOS DE INTERESSE

O autor declara não apresentar nenhum conflito de interesses.

Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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