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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.29 no.4 Lisboa jul. 2013

 

EDITORIAL

A medicina preventiva também é importante para a saúde mental

Andre Matalon*

*Department of Family Medicine, Rabin Medical Center, Beilinson Hospital; Department of Family Medicine, Sackler School of Medicine , Tel Aviv University.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

A prevenção primária e a prevenção secundária são conceitos já bem conhecidos e estabelecidos na comunidade médica e são parte integrante do trabalho diário dos médicos de família em todo o mundo.

A prevenção primária é a promoção da saúde. A medicina preventiva é mais fácil de definir nas doenças somáticas, tais como o tabagismo e a obesidade. A aplicação da prevenção primária na saúde mental implicaria principalmente evitar o stress, descansar quando se está cansado, dormir quando se tem sono, praticar exercício constante, praticar meditação ou yoga, treinar a mente para o pensamento positivo, estar em relacionamento íntimo com outra pessoa e evitar a solidão.

A prevenção secundária é a deteção precoce de doenças. Exemplos comuns disso são a mamografia para a deteção precoce de cancro de mama e o exame de sangue oculto nas fezes para deteção precoce de cancro colorretal.

Ministérios da saúde de muitos países exigem aos médicos o uso de medidas no campo da medicina preventiva e da deteção precoce de doenças. No entanto é surpreendente que isto só se aplique às doenças do corpo e não haja recomendações para a medicina preventiva na saúde mental, fato que reforça a cisão entre mente e corpo característica da medicina ocidental.

Então, qual é o papel da medicina preventiva no campo da saúde mental?

Hoje em dia, a medicina interna e a medicina familiar lidam com estas questões muito mais do que no passado, tanto para prevenir o sofrimento futuro de seus pacientes, mas também por causa da pressão dos empregadores ou dos seguros médicos e planos de saúde que querem evitar os custos financeiros de tratar doenças caras e evitar ações judiciais futuras. Mas poucos sabem quais são as ações de prevenção secundária na saúde mental.

Foi apenas em 1967 que Gerald Caplan1, um psiquiatra social, redefiniu os tipos de prevenção em saúde mental.

Este assunto é particularmente importante nesta década de medicalização crescente da sociedade: as pessoas fazem mais testes e exames médicos e diagnosticam-se mais doenças que, mesmo sendo tratadas, não alterariam o curso ou a qualidade de vida do doente, sendo talvez até melhor se não se soubesse de sua existência. Num artigo recente, Moynihan2 defende que a medicina está a ser contestada por um excesso de diagnósticos de doenças, tanto por causa das novas tecnologias que revelam pequenas lesões cuja natureza não é clara e que levam a mais testes para a sua clarificação, quer porque a indústria farmacêutica está interessada em expandir as definições de doenças já existentes, para que mais pessoas venham a consumir mais fármacos.

As companhias de seguros e várias organizações médicas também podem abordar diretamente as pessoas para convencê-las a fazer exames médicos, tanto por razões económicas como pela ilusão de que estes testes podem evitar danos futuros. Às vezes, estes pedidos são um assédio a pessoas saudáveis e intimidam ou semeiam ansiedade. Alguns médicos podem também gerar ansiedade aos doentes com o seu pedido de exames para atingir os índices de qualidade em medicina preventiva que o governo ou os serviços de saúde estabeleceram. Isto geralmente pode acontecer de uma forma em que o médico não percebe que está a ser «paternalista» e não dá valor à autonomia do paciente na escolha do que ele considera certo. Esta conduta leva à necessidade de aumentar a consciência de todos os médicos para prevenção secundária de saúde mental.

O stress da vida diária e a ansiedade podem causar uma cadeia de alterações neurológicas, endócrinas e imunológicas que, por sua vez, podem intensificar ou acelerar processos de doença.

O importante seria parar o processo que levaria à doença logo de início, antes que ele se cristalize ou se organize em doença. Muitas vezes pode suspender-se o processo e a pessoa poderá organizar-se e talvez voltar ao nível anterior de saúde.

Queremos enfatizar neste artigo a importância da prevenção secundaria da saúde mental através dos conceitos de Michael Balint e de alguns exemplos para esclarecer como podem ser aplicados.

Michael Balint3 explica-nos no seu livro «O médico, o paciente e sua doença» que um processo que se inicia com stress, externo ou interno, como por exemplo um conflito não resolvido, pode transformar-se em doença, física ou mental. Esse processo pode levar alguns minutos, mas também pode levar alguns anos. Se o médico da família, a quem as pessoas recorrem com queixas de sintomas físicos inexplicáveis ou simplesmente fraqueza («illness without a disease»), se preocupar somente com os sintomas do doente sem perceber o stress psicossocial que os acompanham, não o diagnosticar e tentar intervir, pode inconscientemente e sem intenção, ajudar o paciente a «organizar» a doença. É importante portanto intervir neste processo e ajudar o paciente a ver e resolver os problemas psicossociais que muitas vezes não são conscientes, mas podem estar na base dos sintomas não específicos.

Os médicos de família usam muitas vezes intervenções psicoterapêuticas focadas, geralmente breves, e às vezes fazem-no sem perceber e sem estar cientes disso. Quando um doente procura o médico com uma dor no peito não relacionada com o esforço e não tem sinais de doença cardíaca, o médico centrado no exame físico não só ausculta o coração mas também pressiona os músculos peitorais, as costelas ou o esterno para reproduzir a dor. Enquanto pressiona, ele pode explicar ao doente que a dor é muscular, externa ao coração e cada vez que ele tiver a mesma dor pode colocar a mão no seu peito para ver se pode reproduzi-la. Com esta explicação simples o médico reduz uma ansiedade natural e comum sobre doenças cardíacas com risco de vida que uma pessoa com dor no peito pode ter e ensina um exercício que o doente pode fazer para reduzir a ansiedade se a dor retornar. Isso é um trabalho psicoterapêutico cognitivo-comportamental.

No entanto, se o médico tem medo da dor no peito do doente ou medo de uma ação médico-legal e envia cada paciente para esclarecer a dor do peito para o hospital ou para um cardiologista, ele não só estaria aumentando a ansiedade do doente, mas está a contribuir para causar a fixação no somático. Ele terá igualmente dificuldade em acalmar a ansiedade do paciente em outras visitas com sintomas menos alarmantes.

Este é um trabalho diário de cada médico de família e é um dos exemplos de prevenção secundária de saúde mental em medicina de família. As vezes, os médicos podem parar o processo de cristalização ou organização da doença também com o uso de medicamentos adequados, particularmente os antidepressivos, ou por alterações nos estilos de vida, fomentando o exercício físico e o pensamento positivo.

Outro exemplo seria o de um velho solitário que está perdendo peso e vem à consulta. Além do exame físico geral e, em particular, de seu fígado, estômago e intestinos, é importante verificar também os seus hábitos alimentares, os seus dentes, a extensão dos seus movimentos, a possibilidade de demência, questões de polimedicação e se está a tomar os tratamentos prescritos (compliance). Isto, em si, já seria uma boa intervenção médica. Mas o médico poderia também refletir sobre as razões para a sua solidão e averiguar o seu humor deprimido, já muito tempo depois da morte de sua esposa. Talvez haja um conflito com as crianças, ou vizinhos? Às vezes, este doente tem a necessidade de contar a história de sua longa vida, a fim de fechar conflitos ainda abertos, ou encarar sua ansiedade de morte. Claro que podemos dar-lhe um tratamento farmacológico e orientá-lo para tratamentos não farmacológicos, como uma caminhada diária, o tai chi, o relaxamento ou mesmo um tratamento psicológico. Também é possível analisar, em conjunto, como alterar o estado da sua solidão (sugerir um centro diário para idosos, um lar de idosos, estudos académicos para adultos).

Pode-se questionar a falta de tempo do médico de família. Mas, essas atividades são geralmente graduais, pequenos passos em cada consulta. Na maioria dos casos, o médico sabe a história do doente e a sua situação atual, mas até agora, frequentemente abstém-se de intervir. Infelizmente, a intervenção em situações de crise ou de doença pode vir tarde demais e ser complexa demais.

Finalizando, se tivermos conscientemente a atenção focada na integração físico-mental, a orientação integrativa dos cuidados do corpo e dos cuidados da saúde mental, proporcionando uma medicina curativa e preventiva adaptada para cada pessoa, estaremos então a exercer uma medicina familiar exemplar…

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Caplan G and Grunebaum H.; Perspectives on Primary Prevention, A Review. Arch. Gen. Psychiatry 1967; 17; 331-346        [ Links ]

2. Moynihan R., Doust J. and Henry D.; Preventing overdiagnosis: How to Stop Harming the Healthy. BMJ 2012; 344; e3502        [ Links ]

3. Balint M. The Doctor, His Patient, and the Illness. Revised 2nd ed.  London: Pitman Paperback; 1968.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

matalon@netvision.net.il

 

AGRADECIMENTOS

O autor agradece à Dra. Maria José Ribas a sua ajuda na preparação deste artigo.

Conflito de interesses

O autor declara não ter conflitos de interesses.

Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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