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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.29 no.4 Lisboa jul. 2013

 

ARTIGOS BREVES

Pêlos na língua - um caso de língua pilosa negra

Hair on the tongue - a case of black hairy tongue

Daniela Boleto*

*Interna do 3º ano do internato de MGF, USF Emergir, São Domingos de Rana

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

A língua pilosa negra é uma condição benigna, caracterizada por projecções filiformes semelhantes a pêlos na região dorsal da língua. É uma patologia pouco frequente, mas de fácil diagnóstico e tratamento.

Apresenta-se um caso clínico de um homem de 42 anos que recorreu a uma consulta de urgência com a sua médica de família, com queixas de glossodinia, disgeusia e halitose com cerca de quatro semanas de evolução. Referia consumos de tabaco e cannabis. Fez-se o diagnóstico de língua pilosa negra. Foi aconselhado um reforço da higiene bucal e a parar/diminuir o consumo de tabaco e cannabis, tendo a situação resolvido após duas semanas.

Palavras-chave: Língua Villosa Nigra; Língua Pilosa; Doenças da Língua; Doenças da Boca.


 

ABSTRACT

Black hairy tongue is a benign condition characterized by hair-like projections on the dorsum of the tongue. This is an uncommon disease but it is easily diagnosed and treated.

I report the case of a 42 year-old man who consulted with his family doctor complaining of glossodynia, dysgeusia and halitosis of four weeks’ duration. He smoked tobacco and cannabis. Black hairy tongue was diagnosed. The patient was advised to improve oral hygiene and stop consumption of tobacco and cannabis. Complete resolution of symptoms and signs was noted after two weeks.

Key-words: Hairy Tongue; Tongue Diseases; Mouth Diseases.


 

Introdução

O diagnóstico e o tratamento de algumas situações dermatológicas, principalmente as menos observadas, representam frequentemente um desafio para os médicos com especialidades mais generalistas. Focando a área da cavidade oral, as patologias podem abranger um amplo leque de diferentes e heterogéneas situações, tornando difícil não só o diagnóstico como um encaminhamento adequado.1

Descrição do Caso

Utente do sexo masculino, 42 anos, caucasiano, casado, natural e residente no Concelho de Cascais. Insere-se numa família nuclear, na fase IV do ciclo de Vida Familiar de Duvall e com uma classificação Graffar média. É guitarrista numa banda.

Como problemas activos salienta-se o tabagismo (36 UMA, durante 18 anos), o consumo de cannabis e a existência de dois lipomas na região escapular esquerda.

No início de 2012 procedeu a uma alteração dos seus hábitos de vida diária (por auto-iniciativa), nomeadamente: diminuição do consumo de fritos e comidas pré-processadas e aumento do exercício físico semanal, culminando numa perda de peso de 8 kg (IMC passou de 27 para 24); cessou por completo o consumo de álcool, substituindo-o por doses diárias superiores a dois litros de sumos de frutas variadas; diminuição do consumo de tabaco e aumento do consumo de cannabis, que passou a ser quase diário. Estas alterações dos seus hábitos eram conhecidas pela esposa.

O utente veio a uma consulta de urgência por apresentar queixas com quatro semanas de evolução de glossodinia, disgeusia e halitose. A sintomatologia ter-se-ia iniciado cerca de cinco meses após as alterações do estilo de vida. Negava outros sintomas ou sinais associados, nomeadamente dor, náuseas, vómitos, febre, odinofagia ou alterações do olfacto, assim como negava o consumo de medicamentos com ou sem receita médica ou de produtos de ervanária.

O exame objectivo era normal, com excepção de uma mancha na linha média e região dorsal da língua, com projecções semelhantes a pêlos, de coloração acastanhada, não destacáveis com a espátula (Fig. 1).

 

 

Ainda que tenha sido o primeiro caso que observei, o facto de já ter lido sobre uma patologia com estas características permitiu-me estabelecer de imediato o diagnóstico de língua pilosa negra. Após uma breve pesquisa e revisão em sites de medicina baseada na evidência e atlas na área da Dermatologia, estabeleceu-se um plano terapêutico em conjunto com o utente. Foi-lhe indicado um reforço da higiene bucal e cessação do consumo de tabaco e cannabis, tendo a situação resolvido após duas semanas (apesar de apenas ter existido uma diminuição e não cessação dos consumos).

Comentário

A língua vilosa (ou pilosa) negra é uma condição benigna, caracterizada pela deficiente descamação e subsequente hipertrofia, alongamento e pigmentação das papilas filiformes, tornando-se semelhantes a vilosidades.2 Apesar do que o nome poderá induzir, as vilosidades podem adquirir uma tonalidade amarela, verde, castanha ou preta.1 Geralmente afecta a região dorsal da língua onde predominam as papilas filiformes, sendo pouco frequente a manifestação de sintomas. Quando existem queixas, estas são de glossopirose, glossodinia, disgeusia, halitose e eventualmente náuseas.3,4,5

Apesar da etiologia definitiva desta situação clínica ainda estar por esclarecer, existem múltiplos factores que predispõem à sua ocorrência, nomeadamente: má higiene bucal, consumo de tabaco ou álcool, consumo de café ou chá, infecção por HIV, status pós-radioterapia ou infecção por candida albicans.3 Esta doença também tem estado frequentemente associada ao uso de antibióticos (tetraciclinas, amoxicilina, linezolida), medicação psicotrópica (antidepressivos tricíclicos, olanzapina, benzodiazepinas, fluoxetina, fenotiazinas), inibidores da bomba de protões, ferro ou anti-sépticos orais.1,4

Existem casos descritos a partir dos dois meses de idade, no entanto a frequência tende a aumentar com a idade, sendo mais comum em idosos com défices de peças dentárias, má higiene oral e com dieta restrita a alimentos pastosos ou liquídos.3

O diagnóstico desta patologia é essencialmente clínico. Deve efectuar-se o diagnóstico diferencial com algumas doenças que podem provocar o escurecimento da língua, nomeadamente a Doença de Addison, Síndrome de Peutz-Jeghers, Melanoma, Hemocromatose, reacções tóxicas a metais e Síndrome de Laugier-Hunziker. Ponderar eventualmente o diagnóstico de líquen plano, leucoplasias da mucosa oral, anemia perniciosa ou esclerodermia. Deverá obviamente excluir-se em primeiro lugar a presença de restos alimentares.1,4

O tratamento consiste numa correcta higiene bucal e na cessação da situação potencialmente desencadeante, resolvendo a grande maioria dos casos. A higiene bucal pressupõe um fricção recorrendo ao uso de escova e pasta de dentes, cerca de duas a três vezes por dia, com o objectivo de remover a queratina em excesso.1,4 Existem alguns casos descritos de melhorias com o uso de queratolíticos, retinóides ou antifúngicos tópicos, assim como com o uso de iogurtes ricos em Lactobacillus acidophilus, no entanto são casos isolados e fica a dúvida sobre o seu benefício para além da higiene instituída. Em última instância, e na falha do tratamento não invasivo, poderá recorrer-se a uma abrasão cirúrgica superficial da mucosa.4

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Goldsteins B, Goldstein A. Oral Lesions: Disponível em: http://www.uptodate.com [acedido a 21/07/2012].         [ Links ]

2. Sheikh Z., Khan AS, Khan S. Lingua villosa nigra. Lancet 2011 Apr 2; 377 (9772): 1183.         [ Links ]

3. Nisa L, Giger R. Black Hairy Tongue. Am J Med 2011 Sep; 124 (9): 816-7.         [ Links ]

4. Yan P, Mistry N, Au S. Dermacase: can you identify this condition? Black hairy tongue. Can Fam Phys 2010 May; 56 (5): 439-41.         [ Links ]

5. Dimitrios S, Maria-Aikaterini M, Alexandre F, Nikolaos S. Lingua villosa nigra. Intern Med 2012; 51 (11): 1453.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Dra. Daniela Boleto

Rua Nova Aliança, Piso 0

2785-780 SÃO DOMINGOS DE RANA

danielaboleto@gmail.com

 

Agradecimentos

A autora deseja agradecer à Dra. Sandra Espadana pela colaboração e leitura crítica do texto.

Conflito de interesses

A autora declara não ter qualquer conflito de interesse e não existir qualquer fonte de financiamento para o artigo.

Recebido em 10/12/2012

Aceite para publicação em 21/02/2013

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