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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.30 no.1 Lisboa fev. 2014

 

CLUBE DE LEITURA

E quando o outro médico errou? A arte de comunicar com o doente

And when the other doctor was wrong? The art of communicating with the patient

Maria João Sá*, Joana Neto**

*Interna de Medicina Geral e Familiar, USF Lidador

**Interna de Medicina Geral e Familiar, USF S. João de Sobrado


 

Gallagher TH, Mello MM, Levinson W, Wynia MK, Sachdeva AK, Snyder Sulmasy L, et al. Talking with patients about other clinicians' errors. N Engl J Med 2013 Oct 31; 369 (18): 1752-7.

Introdução

O erro médico é comum, expectável e compreensível. No entanto, conversar com os doentes sobre este tema é um dos maiores desafios que se coloca na prática médica diária. Uma das particularidades reside no facto de que o médico que comunica o erro nem sempre ser responsável por este, já que, atualmente, os cuidados de saúde são prestados por equipas multidisciplinares. Desta forma, conversar sobre o erro médico envolve situações em que outros colegas são, primariamente, responsáveis. As guidelines existentes oferecem pouca orientação no que respeita à comunicação do erro cometido por outros, o que aumenta a incerteza sobre o que fazer. Consequentemente os doentes recebem pouca informação e perdem-se oportunidades de construir uma relação de confiança e evitar processos litigiosos.

Métodos

Os autores reuniram um grupo de trabalho constituído por peritos em segurança dos doentes, seguros de responsabilidade civil profissional, comunicação clínica, bioética e políticas de saúde. Após a reunião, um grupo de participantes elaborou um manuscrito que completa as recomendações existentes, para médicos e instituições, sobre como comunicar com os doentes sobre o erro de outros colegas.

Resultados

Os motivos que justificam a divulgação do erro médico estão bem descritos. No entanto, múltiplas barreiras, incluindo o constrangimento, a falta de confiança nas capacidades de comunicação e mensagens divergentes de instituições e seguradoras, tornam a comunicação do erro um desafio.

Em primeiro lugar, é difícil determinar exatamente o que sucedeu, quando o médico que se depara com o erro não está diretamente envolvido. Muitas vezes há pouca informação ao dispor, pelo que a solução passa sempre por conversar com o colega envolvido, esclarecer se na verdade ocorreu algum erro e, apenas depois, conversar com o doente. Existe uma relutância natural em arriscar uma reputação desfavorável entre colegas, quebrar boas relações entre e dentro de equipas de trabalho ou então mesmo lesar o bom nome de uma instituição. Diferenças de poder, de graduação, de género ou raça e a relação prévia entre colegas, criam dinâmicas interpessoais muito complexas e difíceis de gerir. Apesar das instituições poderem ajudar a determinar o sucedido e planear a divulgação do erro, alguns médicos podem também recear uma cascata imprevisível de punições por parte da própria instituição.

O direito do doente em receber informação, honesta e partilhada com compaixão, é soberano. Não cabe aos doentes nem às suas famílias carregar o fardo de procurar informação sobre os problemas sucedidos. Como profissionais, os médicos devem ser capazes de colocar as necessidades dos seus doentes acima das suas.

Antes de conversar com o doente sobre o erro médico, é fundamental recolher o máximo de informação possível. Os médicos devem melhorar a sua capacidade de discutir entre si questões relativas à qualidade e adotar estratégias que minimizem uma postura defensiva. Este compromisso é fundamental para a auto-regulação, que está na base do profissionalismo médico. Uma abordagem proativa da discussão do erro médico, curiosa mas não acusatória, deve ter em conta que o profissional que não está diretamente envolvido não tem a informação completa. O objetivo desta discussão passa por estabelecer concretamente o que aconteceu. Se os colegas determinarem que não houve erro, o processo termina aqui; se concordam que na verdade existiu erro médico, devem discutir o que deve ser comunicado à instituição que representam e ao doente; se discordam sobre o que aconteceu, devem recorrer à própria instituição ou a organizações profissionais.

As recomendações sobre quem deve comunicar o erro apontam para o médico com uma relação de maior longevidade com o doente, que mais conhecimento tem sobre a situação em causa e com mais experiência em casos similares. Recomenda-se ainda que os médicos envolvidos devam estar presentes, evitando assim mensagens divergentes, e assegurando que a informação é transmitida com clareza. Demonstra-se, com transparência, a responsabilidade partilhada.

Muito embora o diálogo entre os profissionais deva ser o primeiro passo do processo, as instituições assumem um papel final na responsabilidade em assegurar uma comunicação de qualidade. Particularmente quando o erro médico condiciona consequências graves e prejudiciais para o doente, quando existem diversos profissionais ou instituições envolvidas, a comunicação entre os profissionais falha ou não se estabelece consenso ou existem conflitos de interesse, as instituições assumem um papel determinante, garantindo uma revisão cuidada de todo o processo. Diversas instituições dispõem já de programas de treino em comunicar com os doentes sobre o erro médico, assim como de um “disclosure coach”, facilitador e orientador de todo o processo.

Conclusões

Perante um erro médico que envolve outro colega, a conceção de profissionalismo deverá levar-nos ao encontro e não a evitar os profissionais envolvidos. Muito embora procurar compreender o sucedido e assegurar um diálogo aberto com o doente em causa desafie as tradicionais normas «entre colegas», a comunicação transparente do erro médico é uma responsabilidade profissional partilhada. Apenas uma abordagem coletiva poderá satisfazer plenamente as necessidades dos doentes e das suas famílias.

COMENTÁRIO

Falar com os doentes sobre o erro médico, cometido pelo próprio ou por um colega, é um assunto delicado e ainda pouco abordado na prática de muitos médicos. Embora a temática da segurança do doente (patient safety) seja já lecionada nas faculdades de medicina lusitanas, e ambicionada por associações de doentes, há ainda uma grande distância a percorrer na prática médica em Portugal. Pelo contrário, nos EUA este tema deu já os primeiros passos em 1999 com a publicação de To Err is Human: Building a Safer Health System.1 A Organização Mundial de Saúde criou em 2004 a World Alliance for Patient Safety e, em 2009, a Classificação Internacional sobre Segurança do Doente (CIDS) para uniformizar os conceitos nesta área.2 Também no Reino Unido se tem trabalhado esta temática, reforçando-se a importância de uma atitude transparente e aberta, caracterizada pelo encorajamento em admitir o erro médico, pela consciência de existir o risco de falhas, pela constante melhoria dos sistemas que o minimizam, e pela comunicação clara com os doentes ou seus familiares.3

Inicialmente debatido entre patologistas clínicos e cirurgiões, este assunto remete, cada vez mais, para o âmbito das especialidades médicas e, em particular, da Medicina Geral e Familiar, onde o médico de família é também o provedor do doente.4,5 Parece consensual que deverá ser o médico que tem a relação mais sólida e duradoura com o doente a transmitir a informação do erro médico, muito embora esta seja frequentemente uma situação complexa, considerando a sua natureza diversa. Para além disso, muitas vezes a comunicação entre médicos é escassa e a informação sobre o sucedido incompleta, colocando alguns problemas na comunicação com o doente.

Com a implementação de sistemas de Acreditação,6 a cultura do erro médico, ou melhor, da divulgação do erro médico, assume maior importância. Também a publicação da Norma da Direção-Geral da Saúde sobre o Sistema Nacional de Notificação de Incidentes e Eventos Adversos,7 bem como a criação da plataforma do Sistema Nacional de Notificação de Incidentes e de Eventos Adversos8, estão a contribuir para esta consciencialização. Mesmo assim, há que encontrar, a nível das Unidades de Saúde, mecanismos intrínsecos para detetar e corrigir estes erros.5 Criada em 2010, a Associação para a Segurança dos Doentes promove ações de formação neste âmbito.9 No entanto, o erro médico ocorrerá sempre e, como tal, há que saber como agir ética e clinicamente.

São várias as vantagens enumeradas pelos doentes para a divulgação do erro médico. Além do respeito pela autonomia do doente, promove a decisão partilhada e informada entre médico e doente, é valorizado o facto do médico se expor pela verdade, comunicando o erro de uma forma transparente, levando à satisfação do utente e reforçando a confiança na honestidade e integridade do profissional. Esta comunicação também aumenta a probabilidade do doente não fazer queixa formal do médico.10

Com vista à solidificação de uma política de segurança do doente é fundamental a mudança de uma «cultura de culpa» para uma «cultura de aprendizagem». Assim, a comunicação aberta do erro médico entre colegas e superiores hierárquicos deverá ser feita numa perspetiva de melhoria constante, não devendo ser alimentados sentimentos de receio, medo ou culpa (por parte de colegas ou doentes).4 Paralelamente, a correta utilização dos diferentes termos erro médico e evento adverso (ou resultado inesperado) elimina o cunho punitivo e de culpabilidade atribuído a muitas das situações da prática clínica diária. Em boa verdade, o erro médico corresponde a uma «falha na execução de uma ação planeada de acordo com o desejado ou o desenvolvimento incorreto de um plano», ao passo que o evento adverso é «um incidente que resulta em dano para o doente».11 Este último termo parece ser mais positivo e seguro, promovendo mais facilmente uma cultura de segurança.4

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Kohn LT, Corrigan JM, Donaldson MS, eds.; Committee on Quality Health Care in America, Institute of Medicine. To Err Is Human: Building a Safer Health System. Washington, DC: National Academies Press; 2000.         [ Links ]

2. Organização Mundial de Saúde. Relatório Técnico Final sobre a Estrutura Concetual da Classificação Internacional de Segurança do Doente v.1.1. Genebra: OMS; 2009.         [ Links ]

3. Seven steps to patient safety. Disponível em: http://www.nrls.npsa.nhs.uk/resources/collections/seven-steps-to-patient-safety/ (acedido em 28/01/2014).         [ Links ]

4. Yaphe J. A new approach to medical error and adverse outcomes: a persistent need for a change in the culture in Portugal. Rev Port Med Geral Fam 2012 Nov-Dez; 28 (6): 400-1.         [ Links ]

5. Ribas MJ. Eventos adversos em Cuidados de Saúde Primários: promover uma cultura de segurança. Rev Port Clin Geral 2010 Nov-Dez; 26 (6): 585-9.         [ Links ]

6. Departamento da Qualidade de Saúde. Manual de Acreditação das Unidades de Saúde. Lisboa: Direção-Geral da Saúde; 2011.         [ Links ]

7. Norma de Orientação Clínica nº 08/2013, de 15/05/2013 - Sistema Nacional de Notificação de Incidentes e Eventos Adversos. Lisboa: Direção-Geral da Saúde; 2013.         [ Links ]

8. Sistema Nacional de Notificação de Incidentes e de Eventos Adversos. Disponível em: http://seguranca.dgs.pt/SNNIEA/ (acedido em 28/01/2014).         [ Links ]

9. Associação para a Segurança do Doente. Disponível em: http://apasd.ufp.pt/ (acedido em 28/01/2014).         [ Links ]

10. Kachalia A, Shojania KG, Hofer TP, Piotrowski M, Saint S. Does full disclosure of medical errors affect malpractice liability? The jury is still out. Jt Comm J Qual Saf 2003 Oct; 29 (10): 503-11.         [ Links ]

11. Norma de Orientação Clínica nº 17/2012, de 19/12/2012 - Taxonomia para notificação de incidentes e eventos adversos. Lisboa: Direção-Geral da Saúde; 2012.         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

O autor declara não ter conflito de interesses.

Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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