SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.30 número3Metas da pressão arterial nas pessoas com Diabetes e Hipertensão: qual é a evidência? índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.30 no.3 Lisboa maio 2014

 

CLUBE DE LEITURA

Aplicação das novas guidelines para o tratamento da dislipidémia na prevenção das doenças cardiovasculares

Application of new cholesterol guidelines in cardiovascular disease prevention

Ana Catarina Henriques

Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, USF Cova da Piedade


 

Pencina MJ, Navar-Boggan AM, D’Agostino RB, Williams K, Neely B, Sniderman AD, et al. Application of new cholesterol guidelines to a population-based sample. N Engl J Med. 2014;370(15):1422-31.

Introdução

Em 2013, as guidelines do American College of Cardiology e do American Heart Association (ACC-AHA) alargaram as indicações para o tratamento da dislipidemia na prevenção das doenças cardiovasculares. Até à data, as orientações recomendadas eram as do Third Adult Treatment Panel (ATP III), do National Cholesterol Education Program.

Estas últimas identificavam, como potenciais candidatos, a terapêutica com estatina os doentes com doença cardiovascular estabelecida ou diabetes e colesterol-LDL ≥100 mg/dl. O uso de estatina era também recomendado como prevenção primária com base na avaliação combinada do nível de colesterol-LDL e o risco de doença coronária a 10 anos estimada a partir da tabela de risco de Framingham.

As mais recentes orientações recomendam a utilização de estatinas nos indivíduos com doença cardiovascular conhecida, independentemente do nível de colesterol-LDL. Relativamente à prevenção primária, recomendam o uso de estatinas em indivíduos com um nível de colesterol-LDL ≥190 mg/dl ou ≥70 mg/dl e com o diagnóstico concomitante de diabetes mellitus ou um risco de doença cardiovascular igual ou superior a 7,5% a 10 anos, calculado numa nova tabela de risco proposta pela ACC-AHA em detrimento da escala de risco de Framingham.

Este trabalho teve como objetivo estimar o número de pessoas nos Estados Unidos da América para as quais as novas guidelines recomendam a terapêutica com estatina.

Métodos

Utilizando dados do National Health and Nutrition Examination Surveys, de 2005 e de 2010, estimou-se o número e o perfil dos fatores de risco das pessoas para as quais seria recomendado o tratamento com estatinas de acordo com as novas guidelines da ACC-AHA, em comparação com as guidelines do ATP III. Foram estudados 3.773 indivíduos entre os 40 e os 75 anos de idade, cujo nível de colesterol-LDL era conhecido e com triglicéridos inferiores a 400mg/dl.

Resultados

Em comparação com as guidelines da ATP-III, as novas orientações aumentam o número de adultos norte-americanos para os quais se recomenda a terapêutica com estatina: de 43,2 milhões (37,5%) para 56 milhões (48,6%). A maior parte deste aumento (10,4 milhões de 12,8 milhões) ocorre em adultos sem doença cardiovascular.

Dos adultos com idades compreendidas entre os 60 e 75 anos, sem doença cardiovascular e que não recebiam o tratamento com estatina, a percentagem elegível para o início desta terapêutica aumenta de 30,4% para 87,4% no sexo masculino e de 21,2% para 53,6% no sexo feminino. Este resultado deve-se, em grande parte, a um aumento do número de adultos que será classificado apenas com base no seu risco cardiovascular a 10 anos.

O grupo de indivíduos elegíveis para a terapêutica com estatinas, segundo as novas guidelines, inclui mais homens do que mulheres e indivíduos com uma pressão arterial mais elevada, mas um nível significativamente mais baixo de colesterol-LDL.

Discussão

A comparação das guidelines apresenta algumas limitações, nomeadamente o facto de não ser possível quantificar o efeito das novas recomendações em indivíduos que já estavam medicados com estatinas e sobre os quais não se sabe o motivo do seu início. A presença de doença cardiovascular pode também ter sido subestimada, uma vez que a doença vascular periférica e os acidentes isquémicos transitórios não foram considerados. Outros critérios de elegibilidade, como a presença de história familiar de doença cardíaca, também não são considerados de igual forma pelas duas recomendações, o que pode modificar a indicação de iniciar o tratamento.

Apenas foram analisados indivíduos entre os 40 e os 75 anos, uma vez que as novas guidelines são pouco claras fora deste intervalo de idade. No entanto, com o aumento da esperança média de vida e com o aparecimento cada vez mais precoce de doença cardiovascular seria benéfico perceber se são necessárias estratégias preventivas mais agressivas para os adultos mais jovens.

O efeito de uma recomendação pode ser limitado pela deficiente implementação e este estudo não entra em linha de conta com a adesão ao tratamento, pelo que os benefícios que as novas guidelines parecem trazer podem estar sobrevalorizados. As mesmas guidelines parecem exigir uma discussão do risco-benefício entre o utente e o médico antes do início do tratamento, o que pode também influenciar a decisão final.

COMENTÁRIO

Esta atualização representa a primeira grande revisão desde 2002, altura em que foram publicadas as guidelines da ATP III.1-2

As novas guidelines da ACC-AHA diferem substancialmente das do ATP-III, particularmente no que diz respeito à prevenção primária de doenças cardiovasculares. Enquanto o ATP-III dá mais ênfase aos níveis de colesterol-LDL na seleção de candidatos à terapêutica com estatina, a ACC-AHA baseia as suas recomendações no cálculo do risco cardiovascular a 10 anos, baseado numa nova escala de risco, com colesterol-LDL igual ou superior a 70mg/dl.

Estima-se que, de acordo com as novas guidelines, cerca de 48,6% dos adultos com idades entre os 45 e os 75 anos e com triglicerídeos inferiores a 400mg/dl seriam elegíveis para terapêutica com estatina. Este aumento poderá condicionar um número superior de indivíduos sob terapêutica quando comparado com o número de eventos cardiovasculares esperados, o que implicaria uma maior sensibilidade. Por outro lado, o facto de existirem muitos indivíduos tratados que nunca virão a ter nenhum evento cardiovascular resulta numa menor especificidade. Isto significa que estaremos a tratar cada vez mais indivíduos e muitos deles sem doença. Considerando este ato como uma excessiva medicalização, estará nas mãos do médico de família a prevenção quaternária, isto é, evitar a iatrogenia associada às intervenções médicas exageradas. O facto de as novas guidelines sugerirem uma discussão prévia entre utente e médico sobre os benefícios da terapêutica poderá ser um fator protetor dos interesses do utente.

A precisão da nova escala de risco de atribuição de risco cardiovascular não foi testada prospetivamente. Esta parece superestimar o risco cardiovascular de alguns indivíduos, nomeadamente naqueles sem doença cardiovascular documentada, pelo que a sua utilização pode não ser consensual.3

Por outro lado, se a utilização das estatinas como prevenção primária reduz o risco cardiovascular em cerca de 25%,4 um total de aproximadamente 475 mil eventos cardiovasculares seriam evitados. Este benefício parece ser superior no grupo etário dos 60 a 75 anos do que no grupo etário mais jovem (40 a 59 anos), o que pode ser explicado pelo facto de a prevalência de doença cardiovascular aumentar acentuadamente com a idade.

A adoção das novas guidelines parece exigir mudanças na prática clínica dos profissionais, nomeadamente a suspensão de avaliações de rotina do perfil lipídico em doentes que estão medicados com estatinas, uma vez que os níveis-alvo já não são enfatizados.

Serão os dados apresentados aplicáveis à população europeia? Outro estudo recente comparou a aplicação das guidelines da ACC/AHA, da ATP-III e da European Society of Cardiology (ESC) numa coorte europeia. Na população em estudo, as proporções de indivíduos elegíveis diferem substancialmente entre as orientações: a ACC/AHA recomendaria estatinas para quase todos os homens e dois terços das mulheres da coorte, proporções superiores às recomendadas pela ATP-III ou ESC.5

Em Portugal, a Norma de Orientação Clínica da Direcção-Geral da Saúde - Abordagem terapêutica das dislipidémias -6 foi construída com base nas guidelines da ATP-III. As novas guidelines poderão implicar, quiçá, uma reestruturação desta norma.

O objetivo primordial destas novas orientações é recomendar a terapêutica com estatinas em indivíduos que têm maior probabilidade de dela beneficiar e identificar aqueles em que o benefício é nulo. As orientações podem guiar no processo de tomada de decisão clínica, mas não substituí-lo; devem informar, mas não ditar; guiar, mas não impor; e apoiar, mas não restringir, especialmente na prevenção primária.7-8

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Pencina MJ, Navar-Boggan AM, D'Agostino RB, Williams K, Neely B, Sniderman AD, et al. Application of new cholesterol guidelines to a population-based sample. N Engl J Med. 2014;370(15):1422-31.         [ Links ]

2. Keaney JF Jr, Curfman GD, Jarcho JA. A pragmatic view of the new cholesterol treatment guidelines. N Engl J Med. 2014;370(3):275-8.         [ Links ]

3. Brett AS, Pencina MJ et al. Estimating the Potential Effect of the New Cholesterol Guidelines. N Engl J Med. 2014 Mar 19. (Epub ahead of print)        [ Links ]

4. Taylor F, Huffman MD, Macedo AF, Moore TH, Burke M, Davey-Smith G, et al. Statins for the primary prevention of cardiovascular disease. Cochrane Database Syst Rev. 2013;1:CD004816.         [ Links ]

5. Kavousi M, Leening MJ, Nanchen D, Greenland P, Graham IM, Steyerberg EW, et al. Comparison of application of the ACC/AHA guidelines, Adult Treatment Panel III guidelines, and European Society of Cardiology guidelines for cardiovascular disease prevention in a European cohort. JAMA. 2014;311(14):1416-23.         [ Links ]

6. Direcção-Geral da Saúde. Abordagem terapêutica das dislipidémias: norma de orientação clínica n.º 019/2011, de 28/09/2011, actua-lizada a 11/07/2013. Lisboa: DGS; 2013.         [ Links ]

7. Stone NJ, Robinson JG, Lichtenstein A. The new cholesterol treatment guidelines. N Engl J Med. 2014;370(20):1957.         [ Links ]

8. Krumholz HM. The new cholesterol and blood pressure guidelines: perspective on the path forward. JAMA. 2014;311(14):1403-5.         [ Links ]

CONFLITOS DE INTERESSE

A autora declara não ter conflito de interesses.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons