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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.30 no.5 Lisboa out. 2014

 

EDITORIAL

Método clínico centrado no paciente: a matriz da eficiência e da evidência

Paula Broeiro*

*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Retornar ao Método Clínico Centrado no Paciente, a essência de ser Médico de Família, não se coaduna com mudanças organizativas baseadas em lógicas de produção fabril. A ausência de especialização numa única técnica, num único aparelho ou sistema, num único grupo etário aliado à imprevisibilidade e necessária flexibilidade para uma adaptação à mudança, é, por vezes, difícil de investigar e pouco reconhecido numa sociedade que desvaloriza a relação e valoriza a técnica.1

Neste editorial pretende-se relembrar que o que nos torna diferentes é uma matriz transversal da eficiência, independente do paradigma médico vigente. A demonstração do benefício desta matriz requer provas robustas, como dizia McWhinney em 1976: a Medicina Geral e Familiar (MGF), para ser aceite, deveria tornar-se menos pragmática, mais teórica e produzir mais investigação quantitativa.1

A MGF é uma especialidade médica que não tem uma visão dualista, mente e corpo. Sem essa barreira artificial, a relação entre o paciente e o médico pode desenvolver-se através de muitos encontros para todos os tipos de doença. Ao examinar o corpo também estamos a atender à mente, pela expressão do sentimento (e.g., postura, movimento).1 O Método Clínico Centrado no Paciente (MCCP) tem em conta as particularidades de cada pessoa que adoece e valoriza o papel terapêutico do médico; a abordagem holística do paciente e/ou da doença no seu contexto; o processo de raciocínio e tomada de decisão conducente ao diagnóstico tendo em conta as expectativas, sentimentos e medos do paciente.2-4 Em MGF, a proporção de pacientes que permanecem sem um diagnóstico específico é elevada porque os quadros clínicos se apresentam com sintomas inespecíficos sendo a compreensão do paciente a chave do entendimento.2-3,5

Existindo uma variabilidade de formas de abordagem clínica, tem sido difícil a operacionalização do que se entende por MCCP.2 O cuidado centrado no paciente promove a qualidade das relações pessoais, profissionais e organizacionais e contribui para a participação ativa dos pacientes na consulta.6 O MCCP é uma abordagem que respeita as preferências do paciente e em que a comunicação tem efeito nos resultados de saúde, através da autoconfiança e da motivação para a mudança que podem contribuir para a adesão e autocuidado.6 Os médicos treinados mudam do paradigma da autoridade para o da parceria, solidariedade, empatia e colaboração que facilita a complexa integração da Medicina Baseada em Evidência (MBE).6

Há 20 anos, a MBE anunciou um “novo paradigma” de prática médica. Decorreram duas décadas de entusiasmo e financiamento que produziram numerosos sucessos de que a Asma é um exemplo. O exercício mimético e o raciocínio baseado no conhecimento teórico das ciências básicas foram substituídos por evidências de alta qualidade como ensaios clínicos randomizados e estudos observacionais.7 A MBE tornou-se rapidamente uma comunidade intelectual enérgica, empenhada em tornar a prática clínica mais científica e, assim, alcançar cuidados mais consistentes e custo-efetivos e com maior segurança para os pacientes.7 A MBE tem sido implementada através de Orientações Técnicas, utilizadas para padronizar os cuidados médicos, não os individualizando. Na tomada de decisão trouxe um uso consciente, explícito e judicioso da melhor evidência.8 No entanto, desde o início, os críticos da MBE estavam preocupados com a ênfase na evidência experimental e no desvalorizar das ciências básicas e do conhecimento tácito que se acumula com a experiência clínica.

Hoje, ao invés do esperado, mas como alguns anteciparam, o conceito de MBE parece estar em crise porque:

• O volume das provas, em especial, das Orientações Técnicas se tornou incontrolável;

• Os benefícios na prática clínica são, por vezes, estatisticamente marginais;

• As regras, aparentemente inflexíveis, são orientadas para a doença e para a gestão, ao invés de centradas no paciente;

• As Orientações Técnicas, baseadas em evidência, não são orientadas para a complexidade da multimorbilidade.7

Como poderemos melhorar a MBE? Fazendo do cuidado ao paciente a prioridade ética; exigindo provas individualizadas entendíveis por médicos e pacientes; tomando decisões partilhadas com os pacientes; baseando-se numa forte relação médico-paciente e nos aspectos humanos do cuidado.7

Muito progresso foi feito e vidas salvas através das revisões sistemáticas, sínteses e aplicação de evidências empíricas de alta qualidade. No entanto, a medicina baseada em evidências não resolveu os problemas a que se propôs, talvez porque o contexto económico, político, tecnológico e comercial complexo de saúde contemporânea tende a orientar a agenda baseada em evidências para as populações, as estatísticas, o risco e a certeza.7 Na tomada de decisão partilhada, os pacientes podem ficar confusos ou mesmo esmagados quando o exercício clínico é inadequadamente conduzido por protocolos algorítmicos, Orientações Técnicas verticais e metas populacionais.7 A grande variabilidade na aplicação prática da MBE continua a ser um problema. Todavia, a MBE está longe de ser um modelo fracassado, esta crise fê-la retornar aos princípios do MCCP7 e fez surgir um novo conceito: medicina baseada na competência cultural.8 A medicina baseada em competência cultural integra os princípios do cuidado ao paciente, com a compreensão das influências sociais e culturais que afetam a qualidade dos cuidados.9 Este conceito surgiu da desproporcionalidade dos resultados em saúde (e.g., doença cardiovascular, diabetes) associados a grupos minoritários, sendo os determinantes sociais da saúde implicados nessas disparidades.10

De certa forma, MBE e a medicina baseada em competência cultural são complementares para melhorar a qualidade da prática médica, tal como a MBE, se integrada no MCCP, facilita a explicitação dos prós e contras entre opções terapêuticas.8

Stewart e colaboradores realizaram um estudo cujo objetivo foi determinar se o MCCP em cuidados de saúde primários (CSP) estava associado à melhor utilização de serviços de saúde.11 A prática do MCCP foi determinada utilizando uma versão modificada do Davis Observation Code (DOC). A associação entre o MCCP e a diminuição da utilização de serviços foi estatisticamente significativa em quatro das cinco categorias avaliadas: consultas hospitalares (p=0,0209), hospitalizações (p=0,0033), exames complementares de diagnóstico (p=0,0027) e utilização de especialidades hospitalares (p=0,0417). A prática de cuidados centrados no paciente mostrou-se associada a uma redução do total de gastos em saúde estatisticamente significativa (p=0,0002).11 Apesar das limitações identificadas pelos autores que impedem a generalização dos resultados, este estudo fornece uma base consistente para a prática duma medicina centrada no paciente.11 Além disso, existem evidências emergentes de uma associação entre a comunicação centrada no paciente e a utilização eficiente de recursos médicos e realização de testes de diagnóstico.11-12 Uma possível explicação para a relação entre o MCCP e a diminuição da utilização de cuidados de saúde pode ser a diminuição da ansiedade pelos pacientes e o aumento da confiança nos médicos.11-12 A abordagem centrada no paciente é cada vez mais considerada um paradigma de qualidade internacional.12 Identifica-se a importância do MCCP como essencial à eficiência porque:

• Estabelece pontes entre paciente e médico, entre a mente e o corpo, entre a saúde e a doença, entre a doença e o contexto;

• Integra a medicina baseada na competência cultural e a MBE;

• Facilita a aplicação individual da MBE.

A atualidade da preocupação de McWhinney quanto à necessidade de evidências provenientes de investigação leva-nos a pensar que, à semelhança da investigação translacional desenvolvida entre as ciências básicas e a investigação médica de ponta (e.g., oncofarmacologia), é indispensável uma translação equivalente com as ciências sociais, ciências da saúde (e.g., farmácia e tecnologias da saúde, engenharia biomédica) e a saúde pública. Esta tradução do conhecimento científico em ação para melhorar a saúde pública é já uma das prioridade para o Control Disease Centre (CDC) no campo das doenças crónicas.13

Urge implicar-nos na construção de evidências translacionais que suportem os potenciais benefícios (pessoais, sociais, económicos, bem como de saúde pública) do Método Clínico Centrado no Paciente.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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9. South-Paul J, Axtell S, Betancourt JR, Blue AV, Garcia RD, Lie DA, et al. Cultural competence education. Washington, DC: Association of American Medical Colleges; 2005. Available from: https://www.aamc.org/download/54338/data/culturalcomped.pdf         [ Links ]

10. Anderson LM, Scrimshaw SC, Fullilove MT, Fielding JE, Normand J, Task Force on Community Preventive Services. Culturally competent healthcare systems: a systematic review. Am J Prev Med. 2003;24(3 Suppl):68-79.         [ Links ]

11. Stewart M, Ryan BL, Bodea C. Is patient-centred care associated with lower diagnostic costs? Healthc Policy. 2011;6(4):27-31.

12. Bertakis KD, Azari R. Patient-centered care is associated with decreased health care utilization. J Am Board Fam Med. 2011;24(3):229-39.         [ Links ] doi: 10.3122/jabfm.2011.03.100170

13. Wilson KM, Brady TJ, Lesesne C. An organizing framework for translation in public health: the knowledge to action framework. Prev Chronic Dise. 2011;8(2):A46.         [ Links ]

 

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