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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.30 no.5 Lisboa Oct. 2014

 

EDITORIAL

A pertinência da Medicina Narrativa na prática clínica

Isabel Fernandes*

*Professora Catedrática da FLUL - Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Responsável Científica pelo Projecto Medicina & Narrativa - (Con)textos e práticas interdisciplinares (Ref. PTDC/CPC-ELT/3719/2012), do CEAUL/ULICES - Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa, financiado pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia).

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Quando, há meses, recebi o convite da Directora desta revista, Dr. Paula Broeiro, para abordar o tema da Medicina Narrativa (MN),* além de me sentir muito honrada e agradecida pela confiança em mim depositada, experimentei simultaneamente algum constrangimento, pois o espaço atribuído a um editorial não permite fazer jus ao muito que há a dizer sobre o tema. Entendam, pois, os leitores o que se segue como esboço meramente introdutório.

Falar da novidade da abordagem narrativa nas práticas de saúde é incorrecto e injusto. Desde o célebre triângulo hipocrático - médico/doença/doente - que a narrativa da doença por parte do último foi reconhecida como elemento integrante do encontro clínico. Não se trata, pois, de novidade. Contudo, ao arrepio desta longa tradição, a evolução histórica da prática médica recente, sobretudo a partir da Escola Clínica de Paris (1789), acentuou o pendor cientificizante, de cunho positivista e valorizador do regime dos factos que marcou um novo modo de entender e praticar medicina, actuante até aos nossos dias, em que o relato do doente foi perdendo terreno. Naquilo que pensadores como Michel Foucault1 caracterizam como um momento novo em termos epistemológicos, passam a reconhecer-se apenas como factos clínicos os dados objectivos, encarados como os únicos fiáveis. É com factos que o médico lida e tudo o que o não seja é menosprezado. Valores religiosos ou crenças de índole cultural, por exemplo, são desvalorizados. Tais aspectos, em geral, não se detectam pela observação objectiva; só podem ser veiculados oralmente - quando muito poderão emergir na anamnese, mas este é justamente o momento hoje menos valorizado do encontro clínico. Para ultrapassar esta depreciação, é necessário rever o conceito de história clínica, reconhecendo-o como um relato que vai ser decisivo para uma deliberação. Ora, a deliberação não serve para coisas demonstráveis, antes se aplica à incerteza, ao que não é totalmente racional - as decisões pendentes. Tal requer implicar o doente, ouvi-lo e conceder-lhe autonomia - esta é, para Diego Grácia, a “atitude ética” que deve caracterizar a clínica.

João Lobo Antunes,2 em obra recente, manifesta a sua admiração com os extraordinários progressos alcançados pela medicina, sobretudo ao longo da segunda metade do séc. XX. Mas, simultaneamente, teme que se tenha desincentivado a escuta do relato do doente (o médico interrompe-o, em média, ao fim de 18 segundos), que se desvalorize a observação física em favor dos meios auxiliares de diagnóstico e assim se perca de vista a singularidade de cada caso clínico, que tendencialmente passa a ser encarado como mera ilustração dum caso tipificado e enquadrado por dados estatísticos.2:29-30 Por aí se confunde a singularidade biológica do doente (sem dúvida crucial) com a, não menos importante, individualidade deste, a qual, segundo o autor, deve continuar a estar também no cerne da atenção do clínico.

Por reacção a este quadro, tem-se desenvolvido a MN que procura combater as tendências atrás descritas, ao mesmo tempo que ultrapassa a medicina hipocrática e a positivista pela agência que concede ao doente. Mas quando surgiu e o que traz de novo a MN?

Ainda que tenha havido manifestações de insatisfação e mal-estar perante este estado de coisas, já na década de 50 do século passado§ e, sobretudo nas décadas de 80 e 90 do mesmo século, que se fizeram notar de forma mais decidida publicações e iniciativas conducentes a um movimento que hoje se manifesta a nível mundial, mas muito em particular no mundo anglo-saxónico. Refiro-me ao aparecimento de programas como o da Universidade de Columbia - Program in Narrative Medicine (fundado em 2000) e publicações como as de Richard Zaner (1988),4 de Rita Charon (1995)5 ou de Brian Hurwitz (1998).6

Para legitimar esta nova tendência, alegou-se que ela visava corrigir o quadro anterior em que se procedia como se os médicos fossem treinados para tratar qualquer situação médica como mero problema a ser resolvido, mas sem ter em conta os aspectos psicológicos e contextuais do doente (história de vida, crenças, medos, dilemas). Impunha-se um redireccionar da atenção da doença para o doente e uma reconsideração da relação médico/doente que revalorizasse a singularidade e o contexto específico de cada caso. Assim, a NM ou NBM (Narrative-based Medicine), como também foi chamada, surgia pouco depois do momento em que se institucionalizava a EBM (Evidence-based Medicine), no início dos anos 80 do séc. XX, sendo esta última responsável por consubstanciar um modelo “duro” de ciência médica.|

Se Charon chama a atenção para a dimensão relacional e hermenêutica que define a MN, ao encará-la como uma medicina “praticada com a competência narrativa para reconhecer, interpretar e ser levado a agir pela situação crítica dos outros”8:83 (tradução minha), já Hurwitz torna explícito um outro propósito ao encarar a MN como: “uma prática e uma atitude intelectual que permite aos médicos olhar para lá dos mecanismos biológicos no cerne das abordagens convencionais à prática médica, e abarcar domínios de pensamento e modos de dizer que se focalizam na linguagem e na representação, nas emoções e nas relações que iluminam a prática dos cuidados de saúde”3:73 (tradução minha). Tal como este autor sublinha, não se trata de prescindir dos avanços da ciência médica, mas apenas de reconhecer que ela só por si não será capaz de fornecer bases sólidas que preparem o médico para a complexidade dum genuíno e profícuo encontro com o seu doente.

Nesta óptica assume particular importância a narrativa, não apenas por estar no cerne do intercâmbio linguístico entre médico e doente, mas por poder ser ainda vista como instrumento formativo capaz de fornecer instrumentos interpretativos indispensáveis e promover uma atitude mais atenta e perspicaz aos modos de dizer (e de calar) do doente.

Apanágio desta nova área é ainda o facto de ela não prescindir duma dimensão multidisciplinar, congregando, pela primeira vez na história da medicina, os saberes de disciplinas humanísticas como a filosofia, os estudos literários, a linguística e a ética, por exemplo, para as suas intervenções, quer no plano formativo (formação de estudantes e formação contínua) quer ainda no plano profilático (por exemplo, na prevenção do burnout médico).

Conforme defende Charon, em obra de referência nesta nova área: “o treino narrativo ao nível da leitura e da escrita contribui para a eficácia clínica”9:107 (tradução minha).

* O texto aqui apresentado resulta de investigação desenvolvida no âmbito do projecto Medicina & Narrativa - (Con)textos e práticas interdisciplinares (Ref. PTDC/CPC-ELT/3719/2012), do CEAUL/ULICES - Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa, financiado pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), pelo qual a autora é responsável científica.

Cf. Michel Foucault, Naissance de la clinique, onde o autor mostra como, nos séculos XVII e XVIII, se deu a consolidação da anatomia patológica como base epistemológica da medicina moderna (científica), ilustrando assim a profunda alteração que designa de “mudança de episteme.”

Neste passo baseio-me no conteúdo duma conferência proferida em Lisboa por Diego Gracia, em 29 de Março de 2011, no Centro de Saúde de Sete-Rios, no âmbito do ciclo de palestras e programa de formação promovidos pelo projecto Narrativa & Medicina, do CEAUL/ULICES.

§ Na década de 50 do séc., XX, o aparecimento dos Grupos Balint sinalizava a existência dum mal-estar e da necessidade de o colmatar: reconhecendo que a consulta médica é, no essencial, um acto de relação, visavam amparar o clínico, fazendo-o partilhar inter pares os dilemas e dificuldades da sua relação com o doente concreto, visando criar uma relação de confiança entre ambos. Contudo e curiosamente, como assinala Brian Hurwitz, na obra de Michael Balint, The doctor, his patient and the illness (1957), não há qualquer referência à narrativa. Cf. Hurtwitz 2011:75.3

| Sobre a relação entre a NBM e a EBM veja-se, por exemplo, o meu artigo «O elefante verde ou a importância da Medicina Narrativa na prática clínica» (2014).7

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Foucault M. Naissance de la clinique. 8e ed. Paris: PUF; 2009. ISBN 9782130578659        [ Links ]

2. Lobo Antunes J. A nova medicina. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2012. ISBN 9789898424433        [ Links ]

3. Hurtwitz B. Narrative (in) medicine. In Spinozzi P, Hurtwitz B, editors. Discourses and narrations in the biosciences. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht Unipress; 2011. p. 73-87.         [ Links ]

4. Zaner RM. Ethics and the clinical encounter. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice Hall; 1988. ISBN 9780132905459        [ Links ]

5. Charon R, Banks JT, Connelly JE, Hawkins AH, Hunter KM, Jones AH, et al. Literature and medicine: contributions to clinical practice. Ann Intern Med. 1995;122(8):599-606.         [ Links ]

6. Hurwitz B, Greenhalgh T. Narrative-based medicine: dialogue and discourse in clinical practice. London: BMJ Books; 1998. ISBN 0727912232        [ Links ]

7. Fernandes I. O elefante verde ou a importância da medicina narrativa na prática clínica. Rev Ordem Médicos. 2014;(153):76-81.         [ Links ] Portuguese

8. Charon R. Narrative medicine: form, function, and ethics. Ann Intern Med. 2001;134(1):83-7.         [ Links ]

9. Charon R. Narrative medicine: honoring the stories of illness. Oxford: Oxford University Press; 2006. ISBN 9780195340228        [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

narrativmedicin@gmail.com

 

Conflitos de Interesse

A autora declara não ter conflitos de interesse.

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