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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.30 no.6 Lisboa dez. 2014

 

CLUBE DE LEITURA

Uma vacina contra a Neisseria meningitidis sorogrupo B: lidar com a incerteza

Dealing with uncertainty about the serogroup B Neisseria meningitidis vaccine

Marlene Sousa*

*Médica Assistente de Medicina Geral e Familiar, USF Caravela - Unidade Local de Saúde de Matosinhos


 

Andrews SM, Pollard AJ. A vaccine against serogroup B Neisseria meningitidis: dealing with uncertainty. Lancet Infect Dis. 2014;14(5):426-34.

Introdução

A Neisseria meningitidis (NM) causa meningite bacteriana e septicémia. Esta doença é preocupante pela dificuldade de reconhecimento precoce, início e escalada infecciosa rápida, taxa de mortalidade e sequelas debilitantes.

A incidência da doença invasiva é baixa e quando diagnosticada atempadamente é tratável. O desafio consiste no diagnóstico precoce. A vacinação tem potencial para reduzir o impacto da doença e as sequelas.

A bactéria NM é classificada em 12 sorogrupos. A doença causada pelo sorogrupo C foi praticamente erradicada nos países em que a vacina foi incluída nos planos de vacinação, demonstrando eficácia na protecção individual e produção de imunidade de grupo. A maior parte dos casos de meningococemia nos países desenvolvidos é agora causada pelo sorogrupo B.

Desde 2013 foi licenciada na Europa uma vacina contendo quatro componentes proteicos do sorogrupo B (Bexsero®, 4CMenB). Esta demonstrou ser segura e imunogénica in vitro, mas não há dados de eficácia em estudos clínicos e não há como demonstrar o efeito de imunidade de grupo sem a incluir em programas de vacinação.

Este artigo de revisão pretende resumir o processo de desenvolvimento da vacina, abordar incertezas acerca do uso e realçar a necessidade de avaliação cuidadosa de programas de vacinação.

Métodos

Foi efectuada pesquisa na PubMed e na Web of Knowledge com os termos “(Neisseria meningitidis OR meningococcus OR meningococcal disease) AND vaccine AND (Serogroup B OR Serotype B)”.

Foram incluídos artigos publicados em inglês entre Novembro de 1999 e Dezembro de 2012, com particular atenção aos publicados após Janeiro de 2009. Outros estudos foram identificados pelas listas de referências bibliográficas dos artigos seleccionados.

Resultados

• A vacina 4CMenB e seus componentes

A vacina 4CMenB foi desenvolvida através de “vacinologia reversa”, ou seja, pela pesquisa, no genoma da bactéria, de genes codificadores de proteínas, expressas na superfície ou excretadas pela mesma, acessíveis aos anticorpos.

Através desta técnica foram identificadas várias proteínas, três incluídas na vacina (fHbp - proteína expressa na superfície bacteriana, NadA - proteína meningocócica com papel na adesão e NHBA - proteína exposta na superfície com propriedades de ligação à heparina) e um quarto componente (composto pela fusão de duas proteínas recombinantes com as proteínas fHBP e NHBA, combinadas com vesículas de membrana externa) que funciona como esqueleto da vacina.

Esta composição parece causar maior reactividade à imunização, com maiores taxas de febre quando é administrada com outras vacinas.

• Estimativa de protecção imunitária e cobertura vacinal

A estimativa de protecção desta vacina é difícil de obter pela sua complexidade, pelos multi-componentes e pela baixa incidência da doença pelo sorogrupo B, que dificulta a realização de ensaios clínicos.

Para estimar essa protecção foi usado um método de avaliação in vitro (SBA assay). No teste SBA, a actividade bactericida é medida pelo efeito que os anticorpos do soro de indivíduos imunizados tem no processo de eliminação, mediado pelo complemento, dos meningococos na presença de complemento exógeno de soro humano. O uso de soro humano para a obtenção de complemento compromete a reprodutibilidade, reduzindo a validade das comparações. Não é claro que um teste SBA para uma determinada estirpe possa predizer imunidade após a vacinação contra o sorogrupo B. A expressão de proteínas de superfície da bactéria varia entre estirpes e diferentes condições de cultura, dificultando a predição da actividade bactericida.

Outro método de previsão de imunidade (Meningococcal Antigen Typing System - MATS) foi desenvolvido para providenciar um teste que combine a informação sobre a capacidade bactericida in vitro do soro de imunizados com a medição de actividade de anticorpos funcionais, permitindo estabelecer o patamar a partir do qual a protecção é previsível. Para este método de avaliação há dados contraditórios, com alguns estudos a apontar para uma sobrestimação de eficácia e outros que falam de subestimação.

Apesar das controvérsias estes dois testes, são os únicos disponíveis para a avaliação da eficácia.

• Efeito potencial

O facto de a previsão de cobertura e eficácia da 4CMenB ser baseada em dados in vitro dificulta recomendações para implementação em larga escala.

Em Julho de 2013, o comité sobre vacinação e imunização do Reino Unido não recomendava a imunização baseado na falta de dados de custo-efectividade da vacina. Isso mudou em Outubro de 2013 quando o mesmo comité reviu a recomendação, sugerindo a realização de mais estudos. Assim, foi avaliado o custo-efectividade com base num modelo de predição que incluiu vários esquemas de vacinação e a possibilidade de obtenção de imunidade de grupo. Na ausência de imunidade de grupo, a vacinação com 4CMenB aos dois, três, quatro e 12 meses preveniria 27% dos casos de doença e seria custo-efectiva para nove libras. Com produção de imunidade de grupo, o mesmo esquema de vacinação associado a um reforço no início da adolescência poderia prevenir até 71% dos casos após 10 anos e ser custo-efectivo para 17 libras. Contudo, um refinamento do modelo mostrou que é improvável a vacina ser custo-efectiva a qualquer preço. No entanto, numa análise final em Fevereiro de 2014 o comité referido reviu a recomendação e considerou-a custo-efectiva se o preço for baixo.

Mantêm-se questões sobre a magnitude do efeito da vacina contra as estirpes circulantes e os efeitos sobre os portadores da bactéria e a obtenção de imunidade de grupo.

A informação definitiva sobre o custo-efectividade desta vacina não pode ser obtida sem implementação de programas de imunização.

Conclusão

O desenvolvimento da vacina 4CMenB foi um importante progresso. A recomendação para a vacinação com a 4CMenB em esquema de quatro doses permitirá clarificar questões sobre eficácia e custo-efectividade da vacina. Assim, é necessário estabelecer programas de vigilância rigorosa após implementação da vacinação para examinar os efeitos imediatos e a longo prazo da vacina nos grupos-alvo e na população geral. Um programa de avaliação pós-implementação ajudará a eliminar as incertezas do impacto da vacina.

COMENTÁRIO

A doença meningoccócica (DM) invasiva é uma infecção grave causada pela Neisseria meningitidis. Os sorogrupos B e C são os mais comuns na Europa. A mortalidade varia entre 5% e 14% e as sequelas neurológicas, perda de audição, alterações cognitivas, cicatrizes e amputações podem atingir 11 a 19% dos sobreviventes.1

Com a vacinação contra o sorogrupo C, a incidência de DM em Portugal diminuiu para 0,8 casos/100.000 habitantes em 2011. Nesse ano registaram-se 65 casos de DM. O sorogrupo B tornou-se predominante, correspondendo a 72% dos casos isolados.2

A vacina 4CMenB está disponível para a prevenção de doença invasiva pelo sorogrupo B. A taxa de cobertura vacinal estimada para a Europa foi de 78%, variando entre 67% e 89%.3 Não há dados de cobertura para Portugal.

Em ensaios clínicos, a vacina foi considerada imunogénica, segura e capaz de induzir memória imunológica. No entanto, o meningococo B possui uma grande diversidade genética pelo que a vacina não é 100% eficaz, a duração da imunidade é desconhecida, a efectividade ainda não foi avaliada e a sua utilização fora dos ensaios clínicos é limitada.

O esquema recomendado preconiza imunização de crianças a partir dos dois meses, com três doses separadas de um mês e uma dose de reforço entre os 12 e 23 meses. Os efeitos laterais são febre, sonolência, diarreia, vómitos, erupção cutânea, dor local, mialgias e artralgias. A frequência de efeitos secundários é maior quando administrada em simultâneo com outras vacinas.4

Os estudos de custo-efectividade são escassos. Há maior benefício da vacinação em áreas de elevada incidência e em surtos. Na Europa, pela baixa incidência da DM, esse benefício é menor.4 Um estudo holandês reviu o custo-efectividade da vacinação e concluiu pela ausência de benefício dada a baixa incidência de DM e os elevados custos da vacina.5

A vacina é segura e poderá ser administrada para protecção contra doença invasiva. Contudo, a dúvida mantém-se sobre a percentagem de estirpes circulantes em Portugal cobertas pela vacina e sobre a sua efectividade. Os custos de vacinação são elevados e é improvável que esta seja custo-efectiva nos preços praticados.

Muitas questões só serão respondidas após implementação da vacinação em larga escala e subsequentes programas de monitorização.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Cavaco A, Gouveia C, Rodrigues F, Prata F, Varandas L, Comissão de Vacinas. Recomendações sobre vacinas: actualização 2014. Lisboa: Sociedade de Infecciologia Pediátrica, Sociedade Portuguesa de Pediatria; 2014. Available from: http://www.spp.pt/UserFiles/file/Comissao_de_Vacinas/RECOMENDACOES_SOBRE_VACINAS_EXTRA_PNV_2014%20_1_%20FINAL.pdf         [ Links ]

2. Simões MJ. Epidemiologia de base laboratorial da doença meningocócica invasiva em Portugal. Observações: boletim epidemiológico. 2013;2(4):6-8. Available from: http://repositorio.insa.pt/handle/10400.18/1567         [ Links ]

3. Gill CJ. Novel assessment of a novel meningitis B vaccine. Lancet Infect Dis. 2013;13(5):381-2.         [ Links ]

4. Committee for Medicinal Products for Human Use. Assessment report: Bexsero, meningococcal group B vaccine (rDNA, component, adsorbed). London: European Medicines Agency; 2012. Available from: http://www.ema.europa.eu/docs/en_GB/document_library/EPAR_-_Public_assessment_report/human/002333/WC500137883.pdf         [ Links ]

5. Pouwels KB, Hak E, van der Ende A, Christensen H, van den Dobbelsteen GP, Postma MJ. Cost-effectiveness of vaccination against meningococcal B among Dutch infants: crucial impact of changes in incidence. Hum Vaccin Immunother. 2013;9(5):1129-38.         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

A autora declara não ter conflito de interesses.

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