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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.30 no.6 Lisboa dez. 2014

 

CLUBE DE LEITURA

Quimioprofilaxia no refluxo vesico-ureteral: uma opção actual?

Antibiotic prophylaxis in vesicoureteral reflux: a current option?

Ana Alves*, Diana Eira**

*Médica interna de Medicina Geral e Familiar, Unidade de Saúde Familiar Alto da Maia - ACES Maia-Valongo

**Médica interna de Medicina Geral e Familiar, Unidade de Saúde Familiar Maresia - ULS Matosinhos


 

The RIVUR Trial Investigators, Hoberman A, Greenfield SP, Mattoo TK, Keren R, Mathews R, et al. Antimicrobial prophylaxis for children with vesicoureteral reflux. N Eng J Med. 2014;370(25):2367-76.

Introdução

Um terço das crianças com infecção urinária febril apresenta refluxo vesico-ureteral (RVU), sendo que este se associa a um risco elevado de lesão renal. Estudos recentes têm revelado resultados contraditórios relativamente à efectividade da profilaxia antimicrobiana na diminuição da recorrência das infecções.

Métodos

Foi realizado um estudo multicêntrico, aleatorizado, duplamente cego e controlado com placebo que envolveu o acompanhamento de 607 crianças entre os dois e os 71 meses de idade, com refluxo vesico-ureteral de grau I a IV, diagnosticado após a primeira ou segunda infecção urinária febril ou sintomática. Estas crianças foram acompanhadas durante dois anos, com o objectivo de avaliar a eficácia da profilaxia com trimetropim-sulfametoxazol (3mg/kg de trimetropim e 15mg/kg de sulfametoxazol, uma vez por dia) na prevenção da recorrência da infecção urinária febril ou sintomática. Os outcomes secundários deste estudo foram a presença de cicatriz renal, a falência da profilaxia (uma combinação de recorrência de infecção urinária e cicatriz renal) e a resistência antimicrobiana.

Resultados

No grupo das crianças a fazer profilaxia, 39 em 302 desenvolveram infecção urinária recorrente, enquanto no grupo que recebeu placebo esta ocorreu em 72 das 305 crianças. A profilaxia reduziu o risco de recorrências em cerca de 50% das crianças e foi particularmente eficaz nas crianças com infecções febris e nas com disfunção vesical e intestinal de base. A ocorrência de cicatriz renal não foi significativamente diferente nos dois grupos. Entre 87 crianças cuja primeira infecção recorrente foi causada pela Escherichia coli, a proporção de bactérias resistentes ao trimetropim-sulfametoxazol foi de 63% no grupo que recebeu quimioprofilaxia e de 19% no grupo de controlo.

Discussão

Em crianças com refluxo vesico-ureteral diagnosticado após infecção urinária, a quimioprofilaxia está associada a uma redução substancial da recorrência de infecção, mas não da cicatriz renal.

COMENTÁRIO

Refluxo vesico-ureteral (RVU) define-se como o fluxo retrógrado de urina da bexiga para o ureter e rim. Pode ser classificado como primário (causado por uma malformação congénita da junção uretero-vesical), a forma de apresentação mais frequente, ou secundário (condição adquirida como resultado de uma disfunção uretero-vesical). A incidência do RVU em recém-nascidos saudáveis é de aproximadamente 1 a 3%, apesar de esta condição poder estar subestimada devido à necessidade de um procedimento invasivo para o seu diagnóstico. Em crianças diagnosticadas com uma infecção do trato urinário (ITU) febril esta incidência aumenta para cerca de 30 a 40%.1-2

O RVU é classificado em 5 graus, sendo o grau I o mais ligeiro e o grau V o mais severo. Todos os graus de RVU primário podem resolver-se espontaneamente ao longo do tempo, com maior probabilidade de resolução nas crianças mais novas e com graus de RVU menores;2-3 e mais precocemente se houver prevenção de ocorrência de ITUs.2 O RVU está associado à ocorrência de ITUs que podem levar ao desenvolvimento de pielonefrite, cicatriz renal, hipertensão e insuficiência renal crónica.2-3

A correção cirúrgica é curativa em cerca de 98% dos pacientes; contudo, está associada a um risco considerável de morbilidade, pelo que já não constitui o tratamento standard para todos os casos de RVU.2 A quimioprofilaxia antibiótica (intermitente ou contínua) para a prevenção de ITUs febris recorrentes e a atitude de vigilância são, actualmente, os tratamentos para o RVU usualmente mais utilizados na prática clínica com o objectivo de evitar a lesão renal e minimizar a morbilidade destes indivíduos.1,3

A profilaxia antibiótica contínua (“Continuous antibiotic prophylaxis - CAP”), inquestionável há uns anos atrás, começou gradualmente a gerar controvérsia entre a comunidade médica.2,4 O seu papel tem sido estudado de forma a entender melhor a sua eficácia geral, custo-benefício e determinar o momento de início e duração da profilaxia mais adequados.3 Alguns estudos revelaram não haver nenhum benefício com a CAP, especialmente nas crianças com baixos graus de RVU; outros estudos mostram que esta leva a uma redução significativa de ITUs recorrentes e impede o dano renal, especialmente em pacientes com graus III e IV de refluxo.3-4 A favor da não profilaxia com antibióticos estão também os danos potenciais do seu uso desnecessário, como efeitos adversos, aumento da resistência aos antibióticos, supressão medular e reacções alérgicas graves.4 Os antibióticos mais frequentemente utilizados na quimioprofilaxia são a amoxicilina e/ou trimetoprim, sulfametoxazol-trimetoprim ou nitrofurantoína, administrados diariamente em baixa dose.3-4

As últimas orientações da Associação Americana de Urologia (AUA), de 2010, recomendam o uso de quimioprofilaxia antibiótica contínua em crianças com menos de um ano de idade com RVU e história de ITU febril e com RVU grau III-V sem história de ITU febril. Nas crianças acima de um ano de idade, a CAP deverá ser ponderada de acordo com a presença de outros factores de risco (história de ITUs febris recorrentes, lesão renal ou disfunção vesical/intestinal), sendo a atitude de vigilância uma opção a considerar.5

Já a Associação Europeia de Urologia (EAU), em 2012, recomenda a CAP em todas as crianças com RVU diagnosticado durante o primeiro ano de vida, independentemente do grau de RVU e da presença de cicatrizes renais ou sintomas. Nas crianças com idade compreendida entre 1 e 5 anos que se apresentem com RVU grau III-V, a CAP é a opção preferencial para o tratamento inicial; e naquelas com graus inferiores de RVU e assintomáticas, a vigilância apertada sem quimioprofilaxia pode constituir uma opção de tratamento.3

Estudos aleatorizados recentes, a maioria deles não cegos, têm revelado resultados contraditórios relativamente à efectividade da profilaxia antibiótica na diminuição da recorrência das infecções. Uma possível razão para resultados tão divergentes entre estudos de quimioprofilaxia antibiótica poderá ser o não cumprimento correcto da profilaxia antibiótica contínua.4 Infelizmente, até este ponto, muitos dos estudos aleatorizados que avaliam a eficácia da CAP valorizaram a adesão terapêutica de forma pouco consistente, dificultando assim a interpretação de grande parte dos dados actuais sobre a eficácia do antibiótico.4

Ainda que seja difícil fazer recomendações definitivas com base em literatura recente, é consensual que a profilaxia antibiótica poderá não ser necessária para todos os pacientes com RVU.2-3 O que é realmente difícil e arriscado é a selecção das crianças que não beneficiarão da CAP. Esta selecção pode ser influenciada pela presença de factores de risco para ITU, como idade mais baixa, RVU de alto grau, estado de controlo dos esfíncteres, sexo feminino e presença de circuncisão.3 Pela inexistência de informação concreta e consequente dificuldade de selecção, a abordagem frequentemente utilizada é a utilização de CAP na maioria dos casos; no entanto, recomenda-se vivamente que as vantagens e desvantagens desta opção terapêutica sejam discutidas em detalhe com a família.2 Relativamente à duração ideal da CAP, não existem estudos recentes que permitam determinar este período temporal de forma fiável nas crianças com RVU.3

O estudo apresentado foi desenhado de forma a evitar algumas das limitações presentes em estudos anteriores, utilizando uma amostra grande e representativa de crianças com RVU de graus I a IV, critérios de diagnóstico rigorosos, escalas padronizadas e análise da adesão à terapêutica. Os resultados deste estudo, que demonstram que a quimioprofilaxia está associada a uma redução substancial da recorrência de infecção urinária, podem justificar a recomendação de CAP na prevenção da recorrência das infecções. No entanto, e apesar deste dado não ter sido valorizado pelos autores, verificou-se um aumento do número de bactérias resistentes ao trimetropim-sulfametoxazol no grupo submetido à quimioprofilaxia. Outra das grandes limitações que se podem apontar a este estudo é o facto de este fazer uma recomendação baseada na redução do número de recorrências de ITUs e não ter um efeito comprovado na prevenção da lesão renal, o que pode pôr em causa o custo-benefício futuro desta recomendação. Como tal, são necessárias mais análises de custo-eficácia para ajudar a reforçar a opção terapêutica pela quimioprofilaxia na prevenção da recorrência de ITU de forma a contribuir para uma resolução espontânea mais precoce do RVU.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. The RIVUR Trial Investigators, Hoberman A, Greenfield SP, Mattoo TK, Keren R, Mathews R, et al. Antimicrobial prophylaxis for children with vesicoureteral reflux. N Eng J Med. 2014;370(25):2367-76.         [ Links ]

2. Robinson J.  Antibiotic prophylaxis in vesicoureteral reflux: a practice revisited. Can Pharm J. 2013;146(2):84-7.         [ Links ]

3. Tekgül S, Riedmiller H, Hoebeke P, Kocvara R, Nijman RJ, Radmayr C, et al. EAU guidelines on vesicoureteral reflux in children. Eur Urol. 2012;62(3):534-42.         [ Links ]

4. Weinberg AE, Hseih MH. Current management of vesicoureteral reflux in pediatric patients: a review. Ped Health Med Ther. 2013;4:1-12.         [ Links ]

5. Peters CA, Skooj SJ. Management and screening of primary vesicoureteral reflux in children: AUA guideline. American Urological Association; 2010.         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

As autoras declaram não ter conflito de interesses.

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