SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número1A propósito do artigo “O que classificar nos registos clínicos com a Classificação Internacional de Cuidados Primários?”Vacinação contra Influenza em profissionais de saúde: uma revisão sistemática índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.31 no.1 Lisboa fev. 2015

 

CLUBE DE LEITURA

Efeito do rastreio e aconselhamento sobre estilos de vida na incidência de doença cardíaca isquémica

Effect of screening and lifestyle counselling on incidence of ischaemic heart disease in general population

Marta Araújo*, Susana Pinho**

Médicas Internas de Medicina Geral e Familiar

*Unidade de Saúde Familiar Arco do Prado, ACeS Grande Porto VII - Gaia

**Unidade de Saúde Familiar St. André de Canidelo, ACeS Grande Porto VII - Gaia


 

Jørgensen T, Jacobsen RK,Toft U, Aadahl M, Glümer C, Pisinger C. Effect of screening and lifestyle counselling on incidence of ischaemic heart disease in general population: Inter99 randomised trial. BMJ. 2014;348:g3617.

Introdução

A doença cardíaca isquémica (DCI) mantém-se como a principal causa de morbilidade e mortalidade a nível mundial. As suas principais causas são conhecidas há décadas, sendo a maioria dos novos casos devida a tabagismo, inatividade física e a uma dieta pouco saudável.

Uma revisão sistemática que reuniu vários ensaios clínicos aleatorizados e controlados sobre intervenções, visando vários fatores de risco cardiovasculares para a prevenção da DCI, mostrou um efeito modesto nas alterações de estilo de vida mas não um efeito na diminuição da mortalidade por DCI a longo prazo.1

Assim, o objetivo do estudo foi determinar se a redução da incidência da DCI a longo prazo pode ser conseguida através de um rastreio populacional de risco cardiovascular (RCV), seguido de aconselhamento intensivo e repetido.

Métodos

Foram identificados todos os indivíduos entre os 30 e os 60 anos a residir numa dada região da Noruega, tendo sido selecionados aleatoriamente e agrupados por género e idade, de forma equivalente, num grupo de intervenção e num grupo controlo. A intervenção consistia num rastreio/avaliação (questionário sobre hábitos e estilos de vida, avaliação física, incluindo biometrias) e estudo analítico (perfil lipídico, prova de tolerância oral à glicose, provas funcionais respiratórias), cálculo do RCV e aconselhamento sobre estilos de vida (até quatro sessões de 15-45 minutos, de acordo com o perfil de risco), efetuado por profissionais de saúde treinados e com protocolo de aconselhamento. A intervenção foi repetida após um ano, aos três anos e aos cinco anos de follow-up. O risco absoluto foi determinado com recurso ao programa informático PRECARD (Score de Risco de Copenhaga que deu origem ao Heart-Score, recomendado pela Sociedade Europeia de Cardiologia). O outcome primário foi a incidência de DCI aos 10 anos de follow-up e os outcomes secundários foram a incidência de AVC, eventos combinados (AVC e DCI) e mortalidade aos 10 anos de follow-up. Indivíduos no grupo de controlo desconheciam a existência de uma intervenção. Foram excluídos os indivíduos com DCI e/ou AVC prévios ao início do estudo.

Resultados

Foram incluídas 59.616 pessoas (grupo de intervenção n = 11.629; grupo controlo n = 47.987). No grupo de intervenção, 6.091 pessoas aceitaram participar (52,4%) e, destas, 60% foram consideradas de alto risco (n = 3.542). A 92% (n = 3.352) do total do grupo de alto risco foi oferecido aconselhamento de grupo, enquanto os restantes 8% já recebiam aconselhamento especializado (e.g., por nutricionista).

Após 10 anos de follow-up, dos 58.308 sem história de base de DCI, 2.782 desenvolveram DCI (565 no grupo de intervenção e 2.217 no grupo controlo) e, dos 58.940 sem história de base de AVC, 1.726 tiveram AVC (326 no grupo de intervenção e 1.400 no grupo controlo). Um total de 3.163 pessoas faleceu durante o período de 10 anos.

Não foram verificadas diferenças estatisticamente significativas na incidência de DCI (p=0,30) nem na incidência de AVC (p=0,48), eventos combinados (p=0,56) ou morte (p=0,29).

Discussão

Este é um dos estudos de intervenção publicados com maior amostra a incidir sobre o efeito do rastreio populacional seguido por um período de aconselhamento intensivo sobre medidas de estilo de vida.

Apesar de terem sido descritas alterações significativas no estilo de vida dos participantes após os cinco anos, não se verificaram efeitos no desenvolvimento de DCI, AVC, eventos combinados ou morte ao final de 10 anos. Estes dados são concordantes com os encontrados por uma meta-análise da Cochrane2 que concluiu que intervenções de base populacional não tiveram efeito no desenvolvimento de DCI.

No entanto, o efeito na população é diferente do efeito individual e o aconselhamento tem resultados em algumas pessoas, devendo, assim, continuar a ser parte natural da prática médica diária.

Evidência científica crescente tem demonstrado que pequenas alterações na sociedade, determinadas por políticas de saúde, são potentes determinantes da incidência de DCI. Talvez o recurso a estas ferramentas seja mais profícuo que o rastreio e o aconselhamento e rastreios populacionais, devendo a responsabilidade de alterar estilos de vida ser partilhada entre profissionais de saúde, políticos e administradores.

Conclusões

O rastreio populacional sistemático, seguido de aconselhamento generalizado sobre medidas de estilo de vida, não foi capaz de reduzir a incidência de DCI, AVC e mortalidade global, pelo que não pode ser recomendado. Contudo, o aconselhamento sobre estilo de vida deve continuar a fazer parte da prática clínica diária, ainda que não inserido num programa sistemático realizado a toda a população.

COMENTÁRIO

Este é o artigo final de um estudo desenvolvido ao longo de mais de uma década, cujos resultados intermédios, já publicados,3-8 mostraram um efeito significativo na redução da prevalência de fumadores, na melhoria dos hábitos dietéticos e no aumento da atividade física após cinco anos de aconselhamento. Estes achados indicam que o aconselhamento promove modificações benéficas a nível individual, pelo menos por um período de tempo limitado. Contudo, estes dados não permitem concluir se o rastreio do RCV e o aconselhamento de estilos de vida são capazes de reduzir a DCI, o AVC e a mortalidade a nível populacional, justificando assim a sua aplicação sistemática a toda a população.9

Trata-se de um trabalho de grande pertinência clínica, com validade interna reconhecida por uma revista internacional (British Medical Journal), com vários pontos fortes e limitações que os próprios autores identificam. Salientam-se como pontos fortes a qualidade metodológica, o recurso a um sistema de avaliação de risco baseado em dados nacionais (PRECARD) e a intervenção baseada em teorias comportamentais acreditadas. Como limitações aponta-se o facto de a intensidade da intervenção se ter baseado exclusivamente em aconselhamento de medidas de estilo de vida e que podem ter sido de curta duração. O tempo de follow-up pode também ter sido reduzido, assim como a taxa de participação conseguida (52,4% do grupo intervencionado) pode não permitir a extrapolação dos resultados obtidos para um nível populacional. Os indivíduos não respondedores e os que desistem dos programas são com frequência de classes económicas inferiores, com um estilo de vida menos saudável e por isso os que mais beneficiariam deste tipo de intervenções.10

O consultório do médico de família (MF) é um local privilegiado para intervenções sobre estilo de vida, dada a relação de confiança médico-utente, assim como a longitudinalidade de cuidados. Por outro lado, o MF necessita de fazer o melhor uso do seu tempo limitado para a consulta. Assim, é importante pensar sobre as intervenções que são realmente suportadas pela evidência e nas quais se deve investir, o que se reflete na tendência atual para investigação nesta área.11-13 Segundo a USPSTF, em 2012, “a evidência de que o benefício para a saúde do aconselhamento comportamental nos CSP, para promover dieta saudável e atividade física em indivíduos saudáveis, é escassa. Os MF devem escolher e seletivamente aconselhar os seus pacientes, mais do que aplicá-lo de forma generalizada a toda a população”.14 Na mesma linha, os benefícios dos controversos “exames de rotina”, efetuados de forma indiscriminada, têm-se mostrado menores e os danos maiores do que o esperado, levando ao sobrediagnóstico e consequente sobretratamento, sendo cada vez mais questionada a sua indicação.13 O MF, numa perspetiva de cuidado centrado na pessoa, deve fazer o aconselhamento e solicitar exames de forma individualizada e selecionada.

Mais recentemente, a investigação tem-se voltado para as alterações de comportamento motivadas por políticas de saúde pública e que têm mostrado resultados promissores na redução da incidência de DCI.15-20 Também em Portugal têm surgido medidas nesse sentido, como a aprovação de normas para a proteção dos cidadãos da exposição involuntária ao fumo do tabaco,21 para a determinação do limite de adição de sal no pão22 e, mais recentemente, a possibilidade de agravamento fiscal, em sede de IVA, para alimentos considerados não saudáveis (ricos em gorduras, bebidas açucaradas). O sucesso a longo prazo passará cada vez mais pela agregação de esforços entre os vários agentes da comunidade ligados à área da saúde, numa perspetiva populacional que nunca descure a adequada individualização dos cuidados.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Ebrahim S, Smith GD. Systematic review of randomised controlled trials of multiple risk factor interventions for preventing coronary heart disease. BMJ. 1997;314(7095):1666-74.         [ Links ]

2. Ebrahim S, Taylor F, Ward K, Beswick A, Burke M, Davey Smith G. Multiple risk factor interventions for primary prevention of coronary heart disease. Cochrane Database Syst Rev. 2011;(1):CD001561.         [ Links ]

3. Pisinger  C, Glümer C, Toft U, von Huth Smith L, Aadahl M, Borch-Johnsen K, et al. High risk strategy in smoking cessation is feasible on a population-based level: the Inter99 study. Prev Med. 2008;46(6):579-84.         [ Links ]

4. Toft U, Pisinger C, Aadahl M, Lau C, Linneberg A, Ladelund S, et al. The impact of a population-based multi-factorial lifestyle intervention on alcohol intake: the Inter99 study. Prev Med. 2009;49(2-3):115-21.         [ Links ]

5. von Huth Smith L, Ladelund S, Borch-Johnsen K, Jørgensen T. A randomized multifactorial intervention study for prevention of ischaemic heart disease (Inter99): the long-term effect on physical activity. Scand J Public Health. 2008;36(4):380-8.         [ Links ]

6. Aadahl M, von Huth Smith L, Toft U, Pisinger C, Jørgensen T. Does a population-based multifactorial lifestyle intervention increase social inequality in physical activity? Br J Sports Med. 2011;45(3):209-15.         [ Links ]

7. Toft U, Kristoffersen L, Ladelund S, Ovesen L, Lau C, Borch-Johnsen K, et al. The impact of a population-based multi-factorial lifestyle intervention on changes in long-term dietary habits: the Inter99 study. Prev Med. 2008;47(4):378-83.         [ Links ]

8. Pisinger C, Toft U, Aadahl M, Glümer C, Jørgensen T. The relationship between lifestyle and self-reported health in a general population: the Inter99 study. Prev Med. 2009;49(5):418-23.         [ Links ]

9. Wilson JM, Jungner G. Principles and practice of screening for disease. Geneva: World Health Organization; 1968.         [ Links ]

10. Bender AM, Jørgensen T, Helbech B, Linneberg A, Pisinger C. Socioeconomic position and participation in baseline and follow-up visits: the Inter99 study. Eur J Prev Cardiol. 2012;21(7):899-905.         [ Links ]

11. Nguyen GT, Cronholm PF. The annual pelvic examination: preventive time not well spent. Am Fam Physician. 2013;87(1):8-9.         [ Links ]

12. Lin K. Skip the annual pelvic examination? How about the whole checkup. The American Family Physician Community Blog; 2014 Jul 1. Available from: http://afpjournal.blogspot.pt/2014/07/skip-annual-pelvic-examination-how.html        [ Links ]

13. Krogsbøll LT, Jørgensen KJ, Grønhøj Larsen C, Gøtzsche PC. General health checks in adults for reducing morbidity and mortality from disease. Cochrane Database Syst Rev 2012;10:CD009009.         [ Links ]

14. Moyer VA,  U. S. Preventive Services Task Force. Behavioral counseling interventions to promote a healthful diet and physical activity for cardiovascular disease prevention in adults: U. S. Preventive Services Task Force recommendation statement. Ann Intern Med. 2012;157(5):367-71.         [ Links ]

15. Franco M, Orduñez P, Caballero B, Tapia-Granados JA, Lazo M, Bernal JL, et al. Impact of energy intake, physical activity, and population-wide weight loss on cardiovascular disease and diabetes mortality in Cuba, 1980-2005. Am J Epidemiol. 2007;166(12):1374-80.         [ Links ]

16. Lightwood J, Glantz SA. Declines in acute myocardial infarction after smoke-free laws and individual risk attributable to secondhand smoke. Circulation. 2009;120(14):1373-9.         [ Links ]

17. Zatonski WA, McMichael AJ, Powles JW. Ecological study of reasons for sharp decline in mortality from ischaemic heart disease in Poland since 1991. BMJ. 1998;316(7137):1047-51.         [ Links ]

18. Ding A. Curbing adolescent smoking: a review of the effectiveness of various policies. Yale J Biol Med. 2005;78(1):37-44.         [ Links ]

19. Wagenaar AC, Salois MJ, Komro KA. Effects of beverage alcohol price and tax levels on drinking: a meta-analysis of 1003 estimates from 112 studies. Addiction. 2009;104(2):179-90.         [ Links ]

20. He FJ, MacGregor GA. A comprehensive review on salt and health and current experience of worldwide salt reduction programmes. J Hum Hypertens. 2009;23(6):363-84.         [ Links ]

21. Decreto-Lei nº 37/2007, de 14 de Agosto. Diário da República. 1ª série(156).

22. Decreto-Lei nº 75/2009, de 12 de Agosto. Diário da República. 1ª série(155).

 

Conflitos de interesse

As autoras declaram não ter conflito de interesses.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons