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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.31 no.3 Lisboa June 2015

 

EDITORIAL

Multimorbilidade e comorbilidade: duas perspectivas da mesma realidade

Paula Broeiro*

*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Apresença de mais de um problema de saúde em cada pessoa é uma constante e uma preocupação em cuidados de saúde primários. A designada multimorbilidade tem sido estudada de forma heterogénea, desde a simples contagem do número de doenças por indivíduo a sistemas sofisticados de classificação e medição da carga de doença.1 Contudo, a evidência sobre o benefício das intervenções é limitada.1-2 Torna-se premente a caracterização de padrões e a identificação de intervenções e metas que deverão ser iniciadas por uma clara definição do conceito multimorbilidade: dois ou mais problemas de saúde diagnosticados na mesma pessoa, não definindo nenhum como central.1,3-4

O termo ‘multimorbilidade’ surgiu como uma alternativa “democrática” ao termo “comorbilidade”.5 Este último designa “qualquer problema independente e adicional a uma doença existente e em estudo” - doença ou problema índice -, colocando-a em posição central e as restantes em situação secundária, interferindo ou não no curso e tratamento da doença índice.5-6 A distinção entre multimorbilidade e comorbilidade parece, assim, fictícia, dependendo da perspectiva de análise, uma vez que o mesmo paciente tem multimorbilidade para o seu Médico de Família e comorbilidade para o seu Pneumologista (e.g., Asma, doença índice).

Ambos os termos, “comorbilidade” e “multimorbilidade”, se referem a múltiplos problemas ou condições de saúde, sem todavia ser clara a distinção entre o que é considerado como doença ou como factor de risco (e.g., Hipertensão é uma doença ou um factor de risco?).5 Esta indefinição constitui uma limitação, presente em muitos dos estudos sobre esta temática, mas outras relacionam-se com a não identificação de gravidade das doenças e suas repercussões na vida, bem como com a não inclusão da prioridade do paciente em paralelo com a do médico (e.g., insuficiência cardíaca - médico vs osteoartrose-paciente).5

A abordagem de múltiplos problemas e condições de saúde crónicos de uma única pessoa, na perspectiva de um problema índice e comorbilidades, torna-se ineficaz e ineficiente, pois considera a maioria dos problemas apenas na sua relação com o problema índice.6 Em sentido inverso, o conceito de multimorbilidade potencia a abordagem da totalidade dos problemas (holística), tendo em conta o sentir da pessoa (centrada no paciente) e promove a compreensão da interacção entre problemas físicos, mentais e sociais (complexidade).6

Não dispondo de dados recentes de prevalência em Portugal socorremo-nos de uma revisão sistemática de estudos de prevalência em contexto de cuidados de saúde primários, cujos resultados revelaram estimativas globais que oscilaram entre 12,9% na população adulta e 95,1% na população com 65 anos ou mais.1 Ressalta desses estudos que a multimorbilidade se encontra consistentemente associada à idade (igual ou superior a 65 anos), ao género feminino, ao baixo nível socioeconómico,1-2 bem como à doença mental.1

É, pois, consensual que o envelhecimento populacional aumenta a carga de doença crónica e a prevalência de doentes com multimorbilidade.3-4,7-8 Na população de mais idade, a multimorbilidade é a regra e não a excepção. Contudo, o impacto da multimorbilidade na dependência está por esclarecer.9 Koller et al desenvolveram um estudo de coorte com a duração de cinco anos (2005 a 2009), numa população idosa, com o objectivo de estimar o impacto da multimorbilidade na dependência e necessidade de cuidados de longo prazo. A média de seguimento foi de 4,5 anos e os resultados confirmam, apenas, que as pessoas com multimorbilidade tiveram um maior risco de se tornarem dependentes de cuidados (HR: 1,85; IC 1,78-1,92).7

Os doentes com multimorbilidade (ou com elevado número de comorbilidades, quando está em estudo um problema-índice) são geralmente excluídos da investigação clínica, pelo que a natureza e a complexidade das necessidades destes doentes carecem de melhor compreensão e suporte de evidência.2,9 Estudos de coorte prospectivos são um método robusto de descrever e estudar a história natural das condições de saúde crónicas, bem como os efeitos da multimorbilidade ao longo do tempo e os factores que influenciam estes efeitos. Sem o conhecimento gerado por esse tipo de estudos não será possível partir para o desenvolvimento de intervenções eficazes.9

A multimorbilidade coloca em questão o paradigma de gestão da doença (definida, desenvolvida e orientada para a doença), a investigação e a educação médica tradicionais. Numa revisão sistemática de estudos qualitativos de Sinnott et al, publicada no BMJ em 2013, são sintetizados os quatro principais constrangimentos ao cuidar de doentes com multimorbilidade: desorganização e fragmentação dos cuidados de saúde; inadequação das normas de orientação clínica e da Medicina baseada em evidência; desafios da prestação de cuidados centrados no paciente e barreiras no processo de tomada de decisão partilhada.10

A dissonância de conceitos, princípios e interesses, como a organização dos sistemas de saúde, a especialização médica ou a distinção entre curar e cuidar geram a desorganização e fragmentação dos cuidados de saúde e dificultam a abordagem da multimorbilidade. As diferentes políticas têm afastado o Médico de Família do seu core business, a abordagem holística do paciente, neste caso particular, da multimorbilidade, fazendo-o sentir-se, por vezes, excluído do cuidado.10

O método clínico centrado no paciente11 é essencial quando se considera que um sistema de saúde deve cuidar de pessoas com multimorbilidade.6 Não existindo um problema dominante, o cuidado centrado no paciente é o ideal para equilibrar todos os problemas e permitir uma abordagem integrada.6 A medição de desempenho para a multimorbilidade não foi adequadamente desenvolvida, importando salientar que os indicadores específicos de doença (e.g., diabetes) podem ser atingidos, mas desadequados ou descontextualizados, em pacientes com multimorbilidade.6

Os objectivos do cuidado aos pacientes com multimorbilidade são evitar a iatrogenia, reduzir a morbilidade e mortalidade, sem comprometer a funcionalidade e qualidade de vida. Mas os instrumentos existentes não contemplam estes objectivos e não incluem as necessidades e a complexidade do cuidar destes pacientes com multimorbilidade.6

Em muitos países foi implementado o modelo de gestão integrada da doença, que mantém a lógica doença única, integrando o doente na organização através do gestor de caso, mas não o cuidado ao paciente.12 Os pacientes com multimorbilidade estão ligados a vários médicos e serviços, não coordenados entre si, e ficam confusos quanto a quem é responsável e por quê, podendo existir problemas insuficientemente controlados e outros duplamente tratados.12 As necessidades dos pacientes com multimorbilidade não são a soma das necessidades decorrentes das doenças individuais e, portanto, a organização por doença única tem um efeito negativo na continuidade dos cuidados.12

A complexidade ligada à multimorbilidade acarreta dificuldades na gestão dos cuidados de saúde e das terapêuticas9,13 e pode assumir diferentes níveis: individual (paciente), organizacional (sistema de saúde) e profissional (médico).12 Uma melhoria dos cuidados prestados a doentes com multimorbilidade será um desafio para todos os sistemas de saúde, exigindo cuidados de saúde primários fortes que integrem uma abordagem holística, centrada no paciente e na complexidade da multimorbilidade9 e um sistema de saúde focado no cuidar, contrariando a lógica de serviços de saúde especializados e fragmentados.14 A colaboração eficiente entre profissionais e serviços é essencial, devendo os responsáveis valorizar os seus Médicos de Família e priorizar a continuidade dos cuidados e a melhoria da qualidade de vida e funcionalidade dos pacientes,15 ao invés de premiar o mero atingimento de indicadores de doença descontextualizados.14

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Violan C, Foguet-Boreu Q, Flores-Mateo G, Salisbury C, Blom J, Freitag M, et al. Prevalence, determinants and patterns of multimorbidity in primary care: a systematic review of observational studies. PLoS ONE. 2014;9(7):e102149.         [ Links ]

2. Smith SM, Soubhi H, Fortin M, Hudon C, O’Dowd T. Managing patients with multimorbidity: systematic review of interventions in primary care and community settings. BMJ. 2012;345:e5205.         [ Links ]

3. France EF, Wyke S, Gunn JM, Mair FS, McLean G, Mercer SW. Multimorbidity in primary care: a systematic review of prospective cohort studies. Br J Gen Pract. 2012;62(597):e297-e307.         [ Links ]

4. Barnett K, Mercer SW, Norbury M, Watt G, Wyke S, Guthrie B. Epidemiology of multimorbidity and implications for health care, research, and medical education: a cross-sectional study. The Lancet. 2012;380(9836):37-43.         [ Links ]

5. Valderas JM, Mercer SW, Fortin M. Research on patients with multiple health conditions: different constructs, different views, one voice. J Comorbidity. 2011;1(1):1-3.         [ Links ]

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8. Laan W, Bleijenberg N, Drubbel I, Numans ME, De Wit NJ, Schuurmans MJ. Factors associated with increasing functional decline in multimorbid independently living older people. Maturitas. 2013;75(3):276-81.         [ Links ]

9. Mercer SW, Gunn J, Wyke S. Improving the health of people with multimorbidity: the need for prospective cohort studies. J Comorbidity. 2011;1(1):4-7.         [ Links ]

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11. Stewart M, Brown J, Levenstein J, McCracken E, McWhinney IR. The patient-centred clinical method. 3. Changes in residents’ performance over two months of training. Fam Pract. 1986;3(3):164-7.         [ Links ]

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15. Smith SM, Soubhi H, Fortin M, Hudon C, Dowd OT. Interventions for improving outcomes in patients with multimorbidity in primary care and community settings. Cochrane Database Syst Rev. 2012 Apr 18;4:CD006560.         [ Links ]

 

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