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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.31 no.4 Lisboa Aug. 2015

 

CLUBE DE LEITURA

Novos anticoagulantes orais e risco de hemorragia gastrointestinal: uma realidade?

New oral anticoagulants and risk of gastrointestinal bleeding: a reality?

Raquel Pedro*, Maria Ana Sobral*

*Médica Interna de Medicina Geral e Familiar - USF AlphaMouro


 

Chang HY, Zhou M, Tang W, Alexander GC, Singh S. Risk of gastrointestinal bleeding associated with oral anticoagulants: population based retrospective cohort study. BMJ. 2015 Apr 24;350:h1585. doi: http://dx.doi.org/10.1136/bmj.h1585

Introdução

Os anticoagulantes orais são fármacos amplamente utilizados em todo o mundo para várias condições clínicas, incluindo a fibrilhação auricular (FA).1

O dabigatrano e o rivaroxabano estão disponíveis como alternativas à varfarina na prevenção do acidente vascular cerebral na FA.2 Estes fármacos oferecem numerosas vantagens em relação à varfarina; entre elas, têm um perfil farmacocinético mais favorável, melhor perfil de segurança, menos interações medicamentosas e não requerem monitorização analítica.2-3

Ensaios clínicos estabeleceram um perfil de eficácia e de segurança não inferior ao da varfarina.2-4 Contudo, e apesar da perceção que estes ensaios apresentam, a segurança real destes novos anticoagulantes orais em comparação com a varfarina parte de estudos observacionais limitados e pouco claros.5-8

A hemorragia gastrointestinal acarreta elevada morbimortalidade. Existem alguns relatórios onde foram reportados casos de hemorragia grave associada ao dabigatrano em doentes idosos, nos extremos do peso corporal ou com insuficiência renal, doentes esses que têm sido excluídos dos estudos.9

O presente estudo tem como objetivo determinar a segurança do dabigatrano e do rivaroxabano em relação à varfarina no que diz respeito ao risco de hemorragia gastrointestinal.

Metodologia

Trata-se de um estudo coorte, retrospetivo e de base populacional.

Foi colhida informação de uma base de dados de saúde nacional (EUA), que contém dados demográficos e clínicos, nomeadamente informação sobre diagnósticos (ICD-9) e prescrição. Foram incluídos indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, com ficheiro clínico atualizado nos seis meses prévios a 1 de outubro de 2010, com a primeira prescrição de varfarina, dabigatrano ou rivaroxabano datada entre 1 de outubro de 2010 e 31 de março de 2012 e sem história de evento hemorrágico prévio. Definiram-se como variáveis de controlo os dados demográficos, três condições clínicas (diagnóstico de traumatismo, insuficiência renal e infeção por H. Pylori), três prescrições (anti-inflamatórios não esteroides, inibidores da bomba de protões e esteroides) e nível de comorbilidades.

Estatisticamente foi utilizado o PMS (Propensity Score Matching) de forma a controlar as diferentes características associadas aos doentes expostos aos três fármacos. Após análise estatística considerou-se o género, comorbilidades e uso de anti-inflamatórios não esteroides como fatores de estratificação de risco. O cálculo de risco relativo foi avaliado através de modelos de risco proporcional de Cox e a nivelação de resultados através do PMS.

Resultados

Foram incluídos 46.163 doentes distribuídos de acordo com o anticoagulante oral utilizado: 85,8% utilizadores de varfarina, 10,6% de dabigatrano e 3,6% de rivaroxabano. Em números absolutos, a incidência de hemorragias gastrointestinais foi superior nos utilizadores de dabigatrano e menor nos utilizadores de rivaroxabano (dabigatrano vs. rivaroxabano vs. varfarina: 9,01 v 3,41 v 7,02 por 100 person years - medida utilizada, uma vez que existiu variação no tempo de exposição ao fármaco).

Considerando o rivaroxabano e a varfarina, após ajuste das covariáveis, não existiu diferença estatisticamente significativa de risco de hemorragia gastrointestinal entre os dois fármacos (risco relativo de 0,95; IC 95% [0,96;1,53]).

A comparação entre dabigatrano e varfarina também não estabeleceu diferenças estatisticamente significativas (risco relativo 1,20; IC 95% [0,96;1,52]). Contudo, esta comparação em indivíduos com menos de 65 anos apresentou um risco relativo de 1,33 (IC 95% [0,98;1,83]) com um valor de p<0,1, o que, apesar de não ser estatisticamente significativo, poderá indicar que existe um risco acrescido de hemorragia gastrointestinal nesta faixa etária associado ao uso de dabigatrano.

Discussão

Da análise deste estudo conclui-se que nem o dabigatrano nem o rivaroxabano estão associados a um aumento estatisticamente significativo do risco de hemorragia gastrointestinal comparativamente à varfarina.

Este estudo veio contrariar estudos anteriores que descrevem associação entre o dabigatrano e um risco acrescido de hemorragia gastrointestinal.

No entanto, existem alguns pontos a examinar: a população considerada é mais jovem do que em estudos anteriores, com apenas 23,3% de indivíduos com idade igual ou superior a 65 anos; vários estudos europeus anteriores descreveram a inexistência de diferença no risco hemorrágico com a dose de 110mg, sendo que a dose considerada neste estudo foi de 150mg, o que limita a comparação de resultados; os intervalos de confiança apresentados são amplos e não permitem descartar que os novos anticoagulantes orais não se associem a um risco acrescido de hemorragia gastrointestinal.

Acresce que a colheita através de uma base de dados não considera, entre outros, o abandono terapêutico, a associação de terapêutica não registada, a mortalidade e o registo de testes laboratoriais.

Dadas as limitações dos estudos observacionais serão necessários mais estudos, nomeadamente ensaios clínicos, de forma a ser possível conhecer o perfil de eficácia e segurança destes fármacos.

COMENTÁRIO

Os antagonistas da vitamina K foram durante muitos anos os únicos anticoagulantes orais disponíveis, mas, devido aos seus riscos, impôs-se a necessidade de desenvolvimento de novos fármacos que possibilitassem uma anticoagulação mais segura, eficaz e prática para o doente. Novos fármacos foram desenvolvidos nos últimos anos e têm sido sujeitos a vários ensaios clínicos com o objetivo de avaliar a sua segurança e eficácia. Estes estudos têm demonstrado que estes fármacos são pelo menos tão eficazes e seguros como os antagonistas da vitamina K na prevenção de eventos trombóticos.2-4

Permanecem por esclarecer algumas questões relacionadas com a segurança a longo prazo destes novos fármacos. Desta forma, a utilização dos novos anticoagulantes orais continua a despertar alguma discussão, nomeadamente em relação à suspeita de risco acrescido de hemorragia gastrointestinal.

Uma meta-análise publicada em 2013, que incluiu 48 estudos, demonstrou que existe um aumento do risco de hemorragia gastrointestinal para os novos anticoagulantes relativamente à varfarina.9

O presente estudo veio contrariar o resultado desta meta-análise e de outros estudos anteriores, mas apresenta uma série de limitações que, entre outras, incluem população mais jovem e a dose de dabigatrano utilizada foi de 150mg, superior à utilizada na maioria de estudos europeus anteriores que reportam os seus resultados utilizando a dose de 110mg.

Os novos anticoagulantes orais apresentam vantagens particularmente associadas à sua farmacocinética, nomeadamente início de ação rápido e tempo de semivida curto. Ao contrário da varfarina, cuja dose se vê afetada pela biodisponibilidade associada à dieta e várias condições clínicas, acresce o facto de estes fármacos não necessitarem de monitorização analítica periódica. Ao serem independentes da vitamina K e da função hepática apresentam reduzidas interações medicamentosas e o uso de dose fixa ao longo do tempo, apenas com necessidade de ajuste à função renal, constituem outras vantagens destes fármacos.10

Contudo, o uso destes novos anticoagulantes também apresenta desvantagens. Em doentes com má adesão à terapêutica, o facto de serem fármacos com semivida curta e sem necessidade de monitorização analítica torna difícil perceber se o doente está adequadamente anticoagulado. O seu uso está contraindicado nas próteses valvulares cardíacas, na gravidez e a insuficiência renal pode constituir uma contraindicação ou um motivo a ser considerado para não utilização ou para redução da dosagem destes fármacos. A falta de antídoto em caso de hemorragia grave e o custo destes fármacos constituem outras das desvantagens.10

Relativamente ao perfil de segurança mantém-se em discussão, apontando a maioria dos estudos, de uma forma consistente, para um menor risco de hemorragia major (intracraniana e hemorragia fatal) quando comparados com a varfarina.4,11

Dadas as limitações dos estudos já existentes, é necessário investir em mais estudos com um tipo de desenho diferente, podendo ser estudados simultaneamente outros outcomes, como o risco hemorrágico em geral. O conhecimento fundamentado em estudos de qualidade sobre o perfil de eficácia e segurança destes fármacos é fundamental para uma escolha ponderada tendo em conta benefício vs. risco destes fármacos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Kirley K, Qato DM, Kornfield R, Stafford RS, Alexander DC. National trends in oral anticoagulant use in the United States, 2007 to 2011. Circ Cardiovasc Qual Outcomes. 2012;5(5):615-21.         [ Links ]

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3. Hanley CM, Kowey PR. Are the novel anticoagulants better than warfarin for patients with atrial fibrillation? J Thorac Dis. 2015;7(2):165-71.         [ Links ]

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Conflitos de interesse

As autoras declaram não ter conflito de interesses.

Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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