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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.31 no.4 Lisboa ago. 2015

 

CLUBE DE LEITURA

Suplementação de ferro por rotina e rastreio de anemia ferropénica em crianças: qual a evidência?

Routine iron supplementation and iron deficiency anemia screening in young children: what is the evidence?

Manuel Barbosa*

Médico Interno de Medicina Geral e Familiar, USF Caravela, ULS Matosinhos


 

McDonagh MS, Blazina I, Dana T, Cantor A, Bougatsos C. Screening and routine supplementation for iron deficiency anemia: a systematic review. Pediatrics. 2015;135(4):723-33.

Introdução

Embora a ferropenia seja normalmente assintomática, a anemia ferropénica (AF) tem sido associada a atrasos cognitivos e comportamentais nas crianças. Nos EUA, a prevalência de ferropenia em crianças e lactentes é de 8%, embora só num terço destes haja anemia associada.

Este estudo para a US Preventive Services Task Force pretendeu rever a evidência dos benefícios e prejuízos da suplementação de ferro rotineira e do rastreio de AF em crianças e a associação entre uma alteração dos níveis de ferro e uma melhoria nos resultados de saúde em populações relevantes para os Estados Unidos.

Métodos

Pesquisaram-se, de 1996 a agosto de 2014, as bases da MEDLINE e Cochrane e a lista bibliográfica de revisões sistemáticas relevantes. Incluíram-se ensaios clínicos e estudos observacionais controlados, em inglês, que avaliassem riscos e benefícios da suplementação por rotina com ferro e do rastreio de AF em crianças dos seis aos 24 meses em países desenvolvidos.

Estudaram-se variáveis clínicas (crescimento, desenvolvimento, mortalidade e qualidade de vida), de malefício (como overdose e descontinuação de estudo) e variáveis intermédias (índices hematológicos e incidências de AF, ferropenia e anemia).

Resultados

Suplementação de ferro por rotina

Incluíram-se dez ensaios com suplementação (por gotas orais, fórmula ou alimentos enriquecidos em ferro) durante três a 18 meses. Os controlos usavam fórmula ou suplemento não enriquecidos em ferro, dieta específica, leite de vaca ou nada. As amostras variavam entre 24 a 493 crianças (exceto um estudo chileno com 1.798 crianças, mas com falhas metodológicas). Apenas um estudo realizou análise com intenção de tratar. Foram excluídas crianças prematuras e com patologia afetando a absorção de ferro, crescimento ou desenvolvimento.

Seis estudos avaliaram variáveis de crescimento. Cinco não encontraram um efeito claro da suplementação. O único com diferenças estatisticamente significativas, o referido estudo chileno, encontrou valores de crescimento menores no grupo de suplementação (peso 7,98 vs 8,09kg; comprimento 66,6 vs 66,9cm, ambos p<0,01).

Três estudos analisaram pontuações em testes de desenvolvimento: dois usaram a escala Bayley, não se encontrando diferenças; um usou a escala Griffiths, onde o grupo de suplementação diminuiu mais de pontuação (-9,3 vs -14,7; p=0,04).

Nas variáveis intermédias, os achados foram inconsistentes para a suplementação. Para AF, dos cinco ensaios disponíveis apenas o estudo chileno demonstrou um benefício significativo (RR: 0,14 (IC95% 0,09-0,20)). Para ferropenia, em cinco estudos apenas dois sugeriam benefício (RR: 0,52 (IC95% 0,45-0,59)). Para anemia, dos seis estudos quatro reportaram benefícios significativos (de RR: 0,07 (IC95% 0,01-0,48), a RR: 0,14 (IC95% 0,09-0,20)). Oito estudos reportaram níveis de hemoglobina, com pequenas diferenças apenas significativas em três. Nove estudos reportaram níveis de ferritina, com resultados inconsistentes.

Nenhum dos ensaios reportou riscos sérios. Cinco estudos avaliaram a adesão terapêutica, não encontrando associação ao conteúdo de ferro.

Rastreio de AF

Não se encontraram novos estudos que avaliassem os programas de rastreio em crianças assintomáticas nem o tratamento da AF com ferro oral neste grupo etário. Também nenhum estudo avaliou a associação entre melhoria dos níveis de ferro e resultados de saúde em populações relevantes.

Discussão

Nesta população não se encontrou evidência relativamente aos efeitos da suplementação com ferro no diagnóstico de atrasos psicomotores, neurodesenvolvimento ou qualidade de vida e os resultados de testes de desenvolvimento não indicam diferenças importantes. Não se encontrou evidência de benefícios claros ou relevantes nas medidas de crescimento.

A evidência dos riscos e benefícios do rastreio ou tratamento de AF nestas idades é limitada.

O potencial dos benefícios a longo prazo da prevenção de AF em crianças pressupõe que a melhoria dos níveis de ferro está associada a bons resultados clínicos a longo prazo. Evidência desta associação é limitada, não suportando uma relação clara.

Alguma da variação dos estudos pode ter sido devida a tamanhos amostrais inadequados, à variabilidade de definições de AF e a diferenças entre grupos à partida.

Conclusões

Não parece haver benefícios da suplementação com ferro por rotina no crescimento e desenvolvimento, sendo os valores hematológicos variavelmente afetados.

Os riscos e benefícios do tratamento não são claros, assim como a associação entre melhoria da AF e variáveis clínicas.

COMENTÁRIO

A ferropenia é a deficiência de micronutrientes mais comum, podendo variar de ferropenia sem anemia a anemia ferropénica e conduzir a anemia microcítica e alterações da função imune e endócrina.1-2

Esta revisão foi encomendada pela US Preventive Services Task Force (USPSTF) para atualização das suas recomendações anteriores, publicadas em 2006.3 De facto, a USPSTF tinha concluído que não havia evidência suficiente para recomendar ou desaconselhar o rastreio de anemia ferropénica (AF) em crianças assintomáticas de seis a 12 meses de idade, que tenham risco médio de AF. Nessa altura, a USPSTF recomendou suplementação de ferro por rotina a crianças de seis a 12 meses com risco aumentado de AF.

Uma revisão de 1996 para a USPSTF sugeria que a profilaxia com ferro reduzia a incidência de ferropenia e AF, mas poucos dados sobre resultados clínicos tinham sido reportados.4 A atualização de 2006 não avaliou o efeito da suplementação em variáveis intermédias e encontrou evidência mista quanto ao benefício da suplementação com ferro nos resultados dos testes de neurodesenvolvimento.3

Assim como em revisões anteriores da USPSTF, nesta revisão atual não se encontrou evidência relativamente aos efeitos de suplementação por rotina de ferro em crianças para as diferentes variáveis (atraso psicomotor, neurodesenvolvimento, resultados de testes de desenvolvimento ou qualidade de vida), após períodos de seguimento de três a 12 meses.4-5 A falta de evidência de benefícios claros ou importantes nas medidas de crescimento é consistente com os achados de uma recente meta-análise de 21 ensaios randomizados controlados que incluiu estudos de países com populações distintas.6

A revisão atual tem, no entanto, algumas limitações. Restringiu-se a estudos em inglês, realizados em países desenvolvidos ou com populações semelhantes à dos EUA, com baixo risco de AF. Embora o estudo não fosse dirigido especificamente a crianças de risco intermédio de AF, com a exclusão de prematuros e crianças com patologia que pudesse alterar a absorção de ferro, o crescimento ou o desenvolvimento, acabaram por ser excluídas as crianças com maior risco de AF. Adicionalmente, o verdadeiro impacto atual da AF pode estar influenciado pela adição de ferro em muitos produtos alimentares infantis, prática pouco regulamentada e pouco monitorizada.7-8 Os ensaios incluídos também não contemplavam a suplementação antes dos seis meses, restringindo a idade de estudo dos seis aos 24 meses. Estes podiam estar subdimensionados para encontrar diferenças nas variáveis de crescimento. Da mesma forma, a variabilidade das definições de anemia utilizadas, o risco desconhecido de AF ao início do seguimento e a variação da proporção de anemia nos grupos de controlo limitam a interpretação destes achados. De facto, o referido estudo chileno com falhas metodológicas (nomeadamente quebra da randomização) encontrou valores de crescimento menores no grupo de suplementação, possivelmente devido a diferenças de base entre grupos.

Perante metodologias tão diferentes e uma população tão selecionada, torna-se difícil para o clínico poder generalizar ou aconselhar com segurança numa ou noutra direção.

Relativamente ao rastreio universal de ferropenia, importa reforçar os conceitos de diagnóstico precoce versus diagnóstico oportuno. De uma maneira geral, o rastreio e o diagnóstico precoces conduzem muitas vezes apenas ao sobrediagnóstico, ou seja, ao erro de prognóstico (o diagnóstico é correto, mas a “história natural” não é a prevista e por isso o rastreio e diagnóstico precoce acarretam mais danos que benefícios).9-10

Como tem sido descrito, poucos dos testes de rastreio disponíveis atualmente demonstram uma redução documentada da mortalidade específica e reduções na mortalidade geral são muito raras ou não existentes.11 Nunca é demais reforçar que, na prática atual da medicina geral e familiar, importa saber aceitar e trabalhar na incerteza.12

Será necessária, portanto, mais e melhor investigação para avaliar os riscos e benefícios da suplementação com ferro por rotina e rastreio para prevenir AF em crianças pequenas em países desenvolvidos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. World Health Oraganization. Iron deficiency anaemia: assessment, prevention and control (a guide for programme managers). Geneva: WHO; 2001.         [ Links ]

2. Bailey RL, West Jr KP, Black RE. The epidemiology of global micronutrient deficiencies. Ann Nutr Metab. 2015;66 Suppl 2:22-33.         [ Links ]

3. US Preventive Services Task Force. Screening for iron anemia, including iron supplementation for children and pregnant women (Internet). USPSTF; 2006 (cited 2015 Jun 15). Available from: http://www.uspreventiveservicestaskforce.org/uspstf/uspsiron.htm        [ Links ]

4. US Preventive Services Task Force. Screening for iron deficiency anemia: including iron prophylaxis. In DiGuiseppi C, editor. Guide to clinical preventive services. 2nd ed. Baltimore, MD: Williams & Wilkins; 1996. chapter 22. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK15471/?report=reader         [ Links ]

5. Oregon Evidence-based Practice Center. Screening for iron deficiency anemia in childhood and pregnancy: update of the 1996 US Preventive Task Force Review. Rockville (MD): Agency for Healthcare Research and Quality; 2006. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK33399/        [ Links ]

6. Vucic V, Berti C, Vollhardt C, Fekete K, Cetin I, Koletzko B, et al. Effect of iron intervention on growth during gestation, infancy, childhood, and adolescence: a systematic review with meta-analysis. Nutr Rev. 2013;71(6):386-401.         [ Links ]

7. Lim KH, Riddell LJ, Nowson CA, Booth AO, Szymlek-Gay EA. Iron and zinc nutrition in the economically-developed world: a review. Nutrients. 2013;5(8):3184-211.         [ Links ]

8. De-Regil LM, Suchdev PS, Vist GE, Walleser S, Peña-Rosas JP. Home fortification of foods with multiple micronutrient powders for health and nutrition in children under two years of age. Cochrane Database Syst Rev. 2011 Sep 7;(9):CD008959.         [ Links ]

9. Gérvas J, Pérez Fernández M. Miscelánea no exactamente clínica (la confusión entre diagnóstico precoz y diagnóstico temprano y su impacto en el sobrediagnóstico). Actual Med Fam. 2014;10(6):353-8.         [ Links ] Spanish

10. Gérvas J. Un buen médico hace diagnósticos oportunos (precoces sólo cuando conviene): el caso del inconveniente diagnóstico precoz de la demencia/Alzheimer. Acta Sanitaria. 2014 Mar 30 (cited 2015 Jun 15). Available from: http://www.actasanitaria.com/un-buen-medico-hace-diagnosticos-precoces-solo-cuando-conviene-el-caso-del-inconveniente-diagnostico-precoz-de-la-demenciaalzheimer/. Spanish

11. Saquib N, Saquib J, Ioannidis JP. Does screening for disease save lives in asymptomatic adults? Systematic review of meta-analyses and randomized trials. Int J Epidemiol. 2015;44(1):264-77.         [ Links ]

12. Yaphe J. Teaching and learning about uncertainty in family medicine. Rev Port Med Geral Fam. 2014;30(5):286-7.         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

O autor declara não ter conflito de interesses.

Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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