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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.31 no.5 Lisboa out. 2015

 

CLUBE DE LEITURA

Exames pré-endoscópicos de rotina: será tudo necessário?

Routine testing before endoscopic procedures: is everything needed?

Leonor Mouro Rolo*, Gisela Pereira Pinto*, Nuno Gonçalves da Silva*, Pedro Cardoso Ferreira*

*Médicos Internos de Medicina Geral e Familiar, USF Dunas, ULS Matosinhos


 

ASGE Standards of Practice Committee, Pasha SF, Acosta R, Chandrasekhara V, Chathadi KV, Eloubeidi MA, et al. Routine laboratory testing before endoscopic procedures: guideline. Gastrointest Endosc. 2014;80(1):28-33.

Os exames laboratoriais de rotina pré-procedimento definem-se como um conjunto de testes pré-definidos que são pedidos a todos os doentes submetidos a um determinado procedimento, independentemente da informação específica obtida a partir da história clínica e exame físico. Os testes rotineiramente realizados antes de um procedimento cirúrgico ou endoscópico são considerados elementos importantes na avaliação pré-anestésica. Contudo, existe informação insuficiente sobre os seus benefícios, sendo que a maioria dos estudos demonstra que são desnecessários. Num estudo que envolveu 2.000 pacientes, 40% realizou testes pré-operativos com indicação e, destes, menos de 1% revelaram anormalidades que poderiam cursar com alteração da rotina anestésica.

Objetivo

Avaliar a necessidade de realizar testes laboratoriais de rotina prévios a uma endoscopia.

Métodos

Foram pesquisados artigos nas bases de dados MEDLINE e PubMed, publicados entre janeiro de 1990 e dezembro de 2013. Foi adicionada literatura citada nos artigos incluídos nas referências. Nas situações em que não estavam disponíveis resultados de ensaios clínicos prospetivos foram tidos em conta resultados provenientes de grandes séries e relatos de especialistas reconhecidos.

Resultados

Estudo da coagulação: Nos doentes sem evidência de transtorno hematológico, o tempo de protrombina (TP), o INR e o tempo parcial de tromboplastina (PTT) não se correlacionam com o risco de hemorragia. Além disso, os valores que definem coagulopatia considerados aceitáveis para a realização de endoscopia permanecem obscuros. Uma possível justificação para a sua realização é o diagnóstico de pacientes com hemofilia ou doença de von Willebrand, uma vez que estes casos poderão não se manifestar até uma intervenção cirúrgica, que se complica com hemorragia. Contudo, o PTT não é um parâmetro sensível para a hemofilia e apresenta uma taxa de falsos positivos de cerca de 2,3%. Deste modo, o estudo da coagulação efetuado de forma rotineira não se mostra clinicamente útil na ausência de uma suspeita clínica de distúrbios da coagulação, antecedentes pessoais de transtorno hemorrágico, terapêutica anticoagulante em curso, desnutrição, terapêutica prolongada com antibióticos que induzam deficiências de fatores de coagulação ou de obstrução biliar prolongada.

Hemograma: A anemia severa é encontrada em menos de 1% dos doentes assintomáticos. O motivo para a sua avaliação é determinar a necessidade de transfusão sanguínea nos pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos com risco significativo de perda hemática. No que se refere aos procedimentos endoscópicos, o hemograma deverá apenas ser considerado nas intervenções que impliquem risco alto de hemorragia nos doentes com anemia, com fatores de risco para sangramento, doença hepática avançada ou patologia hematológica conhecida.

Plaquetas: A contagem de plaquetas justifica-se no âmbito de uma suspeita clínica de trombocitopenia baseada na anamnese ou exame físico, antecedentes de hemorragia ou equimoses fáceis, suspeita de síndroma mieloproliferativo ou terapêutica com fármacos que provoquem trombocitopenia.

Bioquímica sérica: Considerando os custos elevados do painel bioquímico e a fraca correlação entre resultados anormais e outcomes desfavoráveis, estes testes não se justificam nos pacientes saudáveis que serão sujeitos a uma endoscopia. Todavia, perante história de disfunção renal, endócrina, hepática ou terapêuticas ativas que poderão afetar tais funções, esta análise deve ser obtida. Nos doentes com diabetes insulinodependentes, a avaliação da glicose sérica deve ser realizada imediatamente antes do procedimento, contudo, sem necessidade de ser avaliada por rotina analítica pré-endoscópica. Tem sido sugerido que a avaliação da função renal deve ser considerada nos doentes com mais de 40 anos para ajuste dos fármacos utilizados no período peri-operatório. A insuficiência renal é reconhecida como fator adverso nas cirurgias major. Não há, porém, evidência que suporte a recomendação da sua determinação no caso da endoscopia.

Radiografia torácica: Habitualmente indicada nos pacientes com mais de 60 anos, sobretudo se possuidores de hábitos tabágicos, antecedentes de infeção respiratória recente ou sinais ou sintomas sugestivos de doença cardiopulmonar avançada. Numa meta-análise, apenas 10% dos exames pré-operatórios foram considerados anormais, mas o procedimento cirúrgico foi alterado apenas em 0,1% dos casos. Na endoscopia, este exame não deverá ser realizado a não ser nos doentes com clínica respiratória de novo ou insuficiência cardíaca descompensada.

Eletrocardiograma (ECG): A sua realização não é recomendada pela alta incidência de testes anormais, mas sem interferência na prestação de cuidados. A idade isolada é um indicador fraco para a recomendação a favor do teste. Nos pacientes com antecedentes irrelevantes e exame físico sem alterações, submetidos a cirurgia minor ou a endoscopia não está recomendado. A exceção será quando é utilizado o droperidol para a sedação, uma vez que esta droga poderá causar prolongamento do intervalo QT, sendo contra-indicada nos doentes com esta condição.

Tipagem sanguínea: Não está recomendada, apenas se for previsível transfusão sanguínea (endoscopia durante hemorragia aguda GI).

Análise urina: Não está recomendada como rotina para realização de endoscopia.

Teste gravidez: Pode ser recomendado se houver suspeita.

COMENTÁRIO

Da análise das guidelines da Sociedade Americana de Gastroenterologia1 depreende-se que, no contexto de um procedimento endoscópico com sedação, a evidência existente relativa ao benefício da requisição de testes de avaliação de rotina é escassa.

Tradicionalmente, a investigação pré-anestésica é considerada um ponto fulcral. Contudo, nas últimas décadas esta prática tem sido questionada e estudada, devido aos elevados custos que acarreta.

Estes testes, realizados na ausência de indicação clínica, visam o diagnóstico de uma condição assintomática e incluem habitualmente um hemograma com plaquetas, função renal, doseamento de glicose, ionograma, teste de coagulação, radiografia torácica e eletrocardiograma.

Os estudos demonstram que a frequência de resultados anormais é muito baixa nos pacientes assintomáticos e sem antecedentes pessoais relevantes e, mesmo nos idosos, os benefícios desta investigação são duvidosos. Além disso, esta avaliação de pré-procedimentos endoscópicos mostrou-se pouco útil na prevenção de complicações e raramente influencia a técnica anestésica ou o outcome do procedimento. Tratam-se de testes não seletivos, aplicados de forma rotineira, que podem apresentar resultados falsos positivos, falsos negativos ou valores borderline que implicam, nesses casos, um rol de investigação subsequente, com risco acrescido para o paciente e atraso na realização da endoscopia.

Os custos do rastreio analítico e do follow-up de possíveis alterações, geralmente inocentes, também devem ser considerados.

Quando se fala em sedação, pretende-se que este procedimento seja o menos invasivo, o menos agressivo e com o custo económico e social menos gravoso para o doente. Por isso, todos os obstáculos que não são essenciais para a sua realização devem ser abolidos, o tempo de estadia no hospital deve ser reduzido ao mínimo e os incómodos para o doente devem ser minimizados. Só assim teremos utentes (que muitas vezes não estão doentes) aderentes a procedimentos em ambulatório e disponíveis para a realização de técnicas sob anestesia/sedação.2

A ASA Task Force3 recomenda, nesse sentido, que a avaliação pré-anestésica considere a avaliação clínica individual: os antecedentes pessoais, exame físico e fatores de risco do utente e do procedimento em vez de uma abordagem sistemática.

Nos últimos anos, em resposta, verificou-se uma alteração na postura de muitos médicos relativamente a esta temática, o que se refletiu na diminuição dos custos e, sobretudo, a segurança dos doentes não foi afetada.

Na atualidade, os médicos de família, quando solicitam uma colonoscopia, são inúmeras vezes confrontados com pedidos de requisições desta bateria de testes por parte das instituições onde os utentes irão realizar o procedimento.

De facto, dada a evidência e as recomendações emitidas por entidades como as Sociedades de Gastroenterologia e Anestesia, não se compreende os motivos pelos quais muitos clínicos continuam a perpetuar estas atitudes. Possivelmente, a dificuldade em mudar comportamentos enraizados, as imposições institucionais, o medo e a necessidade de proteção médico-legal poderão estar na base desta prática mantida.

Em suma, os testes de avaliação pré-anestésica, se requisitados de forma indiscriminada, são ineficazes, desnecessários e dispendiosos. Devem ser realizados sempre de forma criteriosa, atendendo à avaliação individual, tendo como objetivo o melhor benefício e proteção do nosso utente, evitando a sua exposição a riscos desnecessários das avaliações e, simultaneamente, consequências e problemas económicos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. ASGE Standards of Practice Committee, Pasha SF, Acosta R, Chandrasekhara V, Chathadi KV, Eloubeidi MA, et al. Routine laboratory testing before endoscopic procedures: guideline. Gastrointest Endosc. 2014;80(1):28-33.         [ Links ]

2. Caseiro JM, Serralheiro I, Medeiros L, Teles I, Regateiro ML, Afonso M, et al. Procedimentos 2013: procedimentos e protocolos utilizados em anestesia clínica e analgesia do pós-operatório. Lisboa: Instituto Português de Oncologia Dr. Francisco Gentil; 2012.         [ Links ]

3. Committee on Standards and Practice Parameters, Apfelbaum JL, Connis RT, Nickinovich DG, American Society of Anesthesiologists Task Force on Preanesthesia Evaluation, Pasternak LR, et al. Practice advisory for preanesthesia evaluation: an updated report by the American Society of Anesthesiologists Task Force on Preanesthesia Evaluation. Anesthesiology. 2012;116(3):522-38.         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

Os autores declaram não possuir qualquer conflito de interesse.

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