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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versión impresa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.31 no.6 Lisboa dic. 2015

 

CLUBE DE LEITURA

Maior abrangência nos cuidados de saúde primários: vantagem ou desvantagem nos nossos dias?

Is comprehensive care in primary health care an advantage or a disadvantage?

Isabel Dias Coelho

Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, USF CSI Seixal


 

Bazemore A, Petterson S, Peterson LE, Phillips RL Jr. More comprehensive care among family physicians is associated with lower costs and fewer hospitalizations. Ann Fam Med. 2015;13(3):206-13.

Uma das características fundamentais dos cuidados de saúde primários (CSP) diz respeito à abrangência da prática clínica, mas a sua relação com os resultados em saúde permanece por esclarecer.

O termo abrangência relaciona-se com o acesso por todos os utentes a cuidados de saúde integrados, prestados por clínicos capazes de providenciar a maioria das necessidades dos cuidados em saúde. Entre as especialidades médicas, a esfera de ação da medicina geral e familiar (MGF) é provavelmente a mais abrangente, garantindo a cobertura de um amplo espectro de problemas de saúde e modalidades de tratamento, incluindo doentes internados, em ambulatório, obstétricos, pediátricos, geriátricos, cirurgias minor, entre outras. Em teoria, os cuidados de saúde abrangentes serão capazes de levar a cabo “the right care, at the right time, in the right place”, evitando custos de saúde tão mais caros quanto mais tardios.

Apesar de uma formação vasta e ampla, o alcance dos cuidados prestados pelo médico de família (MF) tem vindo a diminuir. Algumas razões apontadas serão o atual estilo de vida, a pressão competitiva no mercado das várias especialidades ou os incentivos para simplificar a prática clínica. Os MF optarão por exercer exclusivamente em ambulatório, enquanto uma gama crescente essencialmente em ambiente hospitalar, nomeadamente no serviço de urgência. Consideram-se atualmente novas definições para os CSP, que vão para além das linhas orientadoras tradicionais e que incluem estreitar funções na MGF em nome da eficiência. Não obstante esta tendência, o relatório de 2004 Future of Family Medicine Report refere que a disciplina está empenhada em providenciar os serviços médicos globais expectáveis pelo MF.

Décadas de evidência suportam o potencial dos CSP como antídoto para os custos em saúde, que representa grande parte da fatia da economia global. Considerando os avanços nos cuidados de saúde, variações demográficas e a variação da amplitude na prática clínica dos MF, desconhece-se se a abrangência nos cuidados terá ainda efeitos positivos nos custos de saúde. Os autores decidiram, por isso, estudar a relação entre a abrangência individual de diferentes MF e os resultados em saúde dos seus utentes, nomeadamente as taxas de hospitalização e o custo total dos serviços prestados.

 Para tal elaboraram um estudo no qual foi considerada uma amostra de utentes, constituída por benificiários de um programa de segurança social americano, o Medicare, que providencia seguros de saúde. Consideraram-se apenas os benificiários com idade igual ou superior a 65 anos e que solicitaram uma observação pelos médicos da amostra, pelo menos uma vez em 2011. Os médicos incluídos no estudo foram retirados de um pool total de 31.000 médicos registados na American Medical Association Masterfile e que prestam cuidados ditos primários, incluindo MF, clínicos gerais, internistas, geriatras e pediatras. Posteriormente, criou-se uma subamostra restrita aos MF que obtiveram certificação do diploma de licenciatura com o American Board of Family Medicine (ABFM) entre os anos 2007 e 2011. Paralelamente foram constituídas duas medidas de abrangência. A primeira, capaz de captar os padrões de prática dos MF, a partir do questionário de autopreenchimento do exame de certificação do ABFM, onde o MF relata informação, nomeadamente o tempo que dedica às diferentes atividades clínicas (cuidados ao recém-nascido, pequena cirurgia, dor, partos, etc). A segunda medida utiliza os códigos Bereson Eggers Type of Service (BETOS). Estes estandardizam e somam os vários tipos de procedimentos usados nos serviços prestados pelo MF nas solicitações Medicare. Como medidas de resultado em saúde consideraram-se os pagamentos efetuados por cada benificiário durante o ano 2011 e os doentes com pelo menos uma hospitalização durante o ano 2011.

Procurou-se estabelecer a associação entre as duas medidas de abrangência e características dos utentes, médicos e características geográficas sobre o local de ação do MF. Realizou-se uma regressão linear para estabelecer a associação entre as medidas de abrangência e as medidas de pagamento de serviços e, ainda, uma análise multivariada (considerando apenas os MF sujeitos a certificação) para verificar a associação das medidas de abrangência com os serviços de saúde utilizados e probabilidade de hospitalização.

Durante o ano 2011, 3.652 MF observaram 555.165 benificiários Medicare e 1.133 MF, com diploma certificado entre 2007 e 2011, observaram 185.044 benificiários Medicare. A maioria dos utentes era do sexo feminino, caucasianos, com idade média de 75 anos.

Entre os MF da amostra variou muito a medida de abrangência do ABFM para as diferentes áreas clínicas, assim como a utilização de códigos BETOS. Estabelecendo associação entre estas medidas e as características do MF, verifica-se que o MF licenciado no estrangeiro obtém um score BETOS significativamente menor do que se licenciado nos EUA; uma licenciatura mais recente associa-se a um score do ABFM maior; MF do sexo feminino obtêm menor score BETOS; MF na área rural e em áreas com maior número de MF per capita têm maior score em ambas as medidas de abrangência.

Na análise multivariada parece não haver relação entre as medidas de abrangência e a probabilidade de hospitalização do doente. Pelo contrário, verifica-se uma associação negativa entre as medidas de abrangência e os pagamentos Medicare (benificiários tratados pelos MF com mais altos scores de abrangência têm despesas totais 10,3% inferiores aos doentes tratados por MF com scores mais baixos) e, portanto, uma clara tendência para menores taxas de pagamento por utente quanto mais alto o grau de abrangência.

Comentário

A WONCA, na sua declaração de 2002, enfatiza a abordagem abrangente como uma das competências nucleares do MF, ou seja, essencial para a disciplina e que deve estar presente independentemente do sistema de saúde em que seja aplicada.1 No entanto, permanece uma das características menos estudadas dos CSP. Existe evidência considerável acerca do benefício da continuidade e coordenação dos cuidados, mas poucos estudos avaliam empiricamente o valor da abrangência. Com este estudo verifica-se que uma gama mais ampla de serviços prestada pelo MF associa-se a menos custos e menor número de hospitalizações associadas à Medicare.2 Esta evidência leva-nos a uma conjuntura reflexiva em MGF. Em 2004, sete organizações americanas de MGF reafirmaram que todos os MF estão comprometidos em providenciar cuidados abrangentes aos seus utentes. Declaram ser a abrangência um dos valores-chave da especialidade, responsável por muito do que a população valoriza e pela confiança que a mesma deposita nos CSP e que contribuiu para a formação da identidade individual e estabelecimento da posição do MF na comunidade médica.3 No entanto, ao MF estão a ser solicitadas a aquisição e a aplicação de cada vez maior número de habilidades, nomeadamente na administração e liderança de equipas, no aumento das capacidades informáticas, burocráticas, sociais, entre outras - tudo isto enquanto cuidam de um pool de doentes cada vez mais idoso e com maior número de patologias. A realidade em Portugal não é exceção, sendo que a atual conjuntura económico-social acarreta nos CSP um dia-a-dia cada vez mais exigente, com necessidade de dar resposta a um maior número de atividades, através de políticas focadas na gestão da saúde mais eficiente e ao menor custo. Num estudo acerca da complexidade da especialidade de MGF, da década de 90, ¼ dos MF considerou que o espectro de cuidados era mais alargado do que deveria ser e 30% acreditava que esta amplitude tinha aumentado nos últimos anos.4 A complexidade com que se pauta a especialidade tem sido referida inclusivamente como fator de sobrecarga e burnout.5 Tais forças motrizes tendem a afastar o MF para longe do que são os tradicionais elementos da prática clínica e a disciplina tem-se perguntado se os valores de base se mantêm os mesmos e imutáveis. À medida que a disciplina revela uma nova visão, que tende a acompanhar uma sociedade mais desenvolvida e exigente sob o ponto de vista económico-social, é razoável examinar o significado do generalismo da prática e a importância do conjunto de serviços que definem a MGF. Mas apesar de todas estas questões, este estudo vem mostrar que uma maior abrangência dos cuidados de saúde por parte dos MF se associa a uma diminuição dos custos. Não obstante toda a pressão económica atual, a realidade pressupõe o seguimento de populações cada vez mais complexas, com diferenças a nível do estado de saúde, cultura e acesso aos cuidados, pelo que se acredita que beneficiarão enormemente de um sistema baseado em CSP robusto e igualitário, com uma abordagem generalista mas que prioriza e personaliza cuidados.5-6

Como limitações a este estudo, os autores referem que as medidas de abrangência podem falhar em transparecer todas as suas dimensões ou em cobrir todo o espectro de idade, problemas de saúde e modalidades englobadas na prática do MF. Isto resultará na subestimação dos reais efeitos dos resultados da abrangência. Além disso, uma das medidas é baseada em dados sobre a prática clínica de uma amostra específica de MF, não existindo, no entanto, outros estudos mais amplos e passíveis de comparação. Acresce o facto de os beneficiários Medicare do estudo em questão serem caracteristicamente uma população com multimorbilidade relativamente à população geral e com um alto grau de utilização de serviços médicos, sendo difícil transpor resultados para a população geral.

Tanto os resultados apresentados, como as suas limitações, pedem por mais investigação na área das medidas de abrangência em CSP e a sua relação com custos, acesso e qualidade do serviço. No entanto, estes mesmos resultados devem encorajar as políticas de saúde a suportar uma prática mais abrangente e robusta. Ao mesmo tempo, os líderes da MGF e as instituições de formação devem ponderar como ajudar a preservar a noção de amplitude e abrangência no treino da especialidade numa era de crescimento de heterogeneidade e prática restritiva para os seus formandos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Evans P, editor. A definição europeia de medicina geral e familiar (clínica geral/medicina familiar) (Internet). Barcelona: WONCA Europa; 2002 (cited 2015 Oct 2). Available from: http://www.woncaeurope.org/sites/default/files/documents/European%20Definition%20in%20Portuguese.pdf         [ Links ]

2. Centers for Medicare & Medicaid Services. Medicare program: general information (Internet). Baltimore: CMS; 2014 (cited 2015 Oct 2). Available from: https://www.cms.gov/Medicare/Medicare-General-Information/MedicareGenInfo/index.html         [ Links ]

3. Martin JC, Avant RF, Bowman MA, Bucholtz JR, Dickinson JR, Evans KL, et al. The future of family medicine: a collaborative project of the family medicine community. Ann Fam Med. 2004;2 Suppl 1:S3-32.         [ Links ]

4. St Peter RF, Reed MC, Kemper P, Blumenthal D. Changes in the scope of care provided by primary care physicians. N Engl J Med. 1999;341(26):1980-5.         [ Links ]

5. Braga R. Complexidade em medicina geral e familiar (Complexity in family medicine). Rev Port Med Geral Fam. 2013;29(2):82-4. Portuguese

6. Stange KC, Ferrer RL. The paradox of primary care. Ann Fam Med. 2009;7(4):293-9.         [ Links ]

 

Conflitos de interesse

A autora declara não ter conflito de interesses.

Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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