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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.3 Lisboa jun. 2016

 

EDITORIAL

Sobre medicina paliativa: alguns aspectos relevantes para reflexão

Miguel Julião, MD, MSc, PhD*

*Médico Paliativista, Professor Convidado da Faculdade de Medicina de Lisboa

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Os cuidados paliativos demonstraram já um benefício efectivo no apoio às pessoas com doença avançada e incurável e seus familiares ou cuidadores.

É já conhecida a eficácia da medicina paliativa no alívio do sofrimento dos doentes, na melhoria da sua qualidade de vida e no aumento da satisfação dos familiares.1

Outro aspecto mais recente e que merece uma particular atenção é o do aumento da sobrevida com o acompanhamento precoce em cuidados paliativos.

Com o intuito de compreender o efeito da introdução de cuidados paliativos precocemente integrados no tratamento oncológico standard de doentes com diagnóstico recente de cancro do pulmão de não-pequenas células metastático, Temel e seus colaboradores2 desenvolveram um ensaio clínico aleatorizado e controlado, não ocultado. Cento e cinquenta e um doentes em seguimento ambulatorial com este diagnóstico foram aleatorizados para receber cuidados paliativos precocemente integrados nos seus cuidados oncológicos ou somente para receber cuidados oncológicos. Os principais resultados do estudo mostraram que os doentes do grupo de cuidados paliativos precoces apresentaram valores superiores de qualidade de vida e bem-estar físico e funcional comparando com o grupo controlo. A percentagem de doentes com sintomas depressivos após 12 semanas de seguimento foi menor no grupo com cuidados paliativos (16 vs. 38%; p=0,01), apesar de ter sido sobreponível a prescrição de fármacos antidepressivos nos dois grupos. Por fim, apesar dos doentes com cuidados paliativos precoces terem sido submetidos a um menor número de tratamentos agressivos em fim de vida (33% vs. 54%; p=0,05), a sua sobrevida foi superior quando comparada com o grupo controlo (11,6 meses vs. 8,9 meses; p=0,02).

Outro estudo é o de Bakitas et al.,3 ensaio clínico aleatorizado e controlado que incluiu 207 doentes oncológicos e que pretendeu estudar o impacto da introdução de cuidados paliativos precoces (início do recrutamento) versus tardios (três meses após o recrutamento) durante a trajectória da sua doença, em diversos resultados, como a qualidade de vida, o impacto dos sintomas, o humor, o uso de recursos hospitalares, o local de morte e a sobrevida a um ano. Os investigadores mostraram que a introdução precoce de cuidados paliativos aumentava a sobrevida a um ano em 15%, apesar de não ter sido verificada eficácia nos restantes resultados.

Outro termo frequentemente utilizado - quantas vezes de forma vaga de conteúdo - é o de dignidade. O conceito de dignidade em fim de vida é hoje mais inteligível na prática clínica diária. Através de investigação qualitativa a doentes oncológicos em fim de vida, Chochinov et al.4 construíram um Modelo de Dignidade que objectiva de forma simples as áreas do sofrimento relacionado com a perda de dignidade - preocupações relacionadas com a doença, recursos pessoais e sociais de dignidade. Deste modelo emergiram intervenções simples de apoio à dignidade - Cuidados Conservadores de Dignidade5 - ou intervenções mais específicas como a terapia da dignidade.6 A terapia da dignidade é uma intervenção psicoterapêutica breve que foi projectada para responder à angústia psicossocial e existencial de doentes em fim de vida, convidando-os a relatar e a discutir questões de vida que lhes são mais importantes, articulando-as para que sejam lembradas, após a morte que se aproxima. Estas discussões e lembranças são posteriormente transcritas e editadas num documento de legado final que, normalmente, é entregue a familiares ou outros entes queridos, por decisão do doente.

Os resultados do último ensaio clínico aleatorizado, controlado e multicêntrico de Chochinov et al.,7 sobre a eficácia da terapia da dignidade em diversas áreas do sofrimento em fim de vida face a duas outras intervenções de suporte, mostraram que esta intervenção aumentava o sentido de utilidade de vida, a qualidade de vida, o sentido de dignidade, melhorando a forma como a família via e apreciava os seus familiares. A terapia da dignidade foi também significativamente melhor na melhoria do bem-estar espiritual, na diminuição da depressão e na satisfação pós-intervenção.

Num ensaio clínico aleatorizado e controlado português,8 numa amostra de 80 doentes com elevado sofrimento psicológico seguidos em cuidados paliativos, a terapia da dignidade mostrou ser eficaz na redução da depressão, ansiedade, desmoralização e desejo de antecipação de morte, com um aumento da qualidade de vida e do sentido de dignidade. Outro resultado importante a retirar deste estudo foi o aumento discreto da sobrevida dos doentes alocados ao grupo de terapia da dignidade face ao grupo controlo.9

Mais evidência tem emergido acerca de aspectos da experiência psicológica em fim de vida. Em 75 doentes portugueses seguidos em cuidados paliativos, o desejo de antecipação de morte clinicamente significativo foi encontrado em apenas 15 doentes. Neste grupo, o desejo de antecipação de morte mostrou estar associado, de forma independente, a ser casado/vivendo junto (odds ratio (OR)=5,3), à existência de depressão (OR HADS-dep=8,3) e à sonolência (OR=5,8). Dos 15 doentes com desejo de antecipação de morte, 11 tinham diagnóstico de episódio depressivo major, utilizando a DSM-IV.10 Suportando a evidência científica internacional,11 os dados portugueses apresentados reforçam que a tendência natural de cada pessoa - mesmo aquela acometida por uma doença incurável, progressiva e sintomática - é a de viver e que o desejo de antecipar a morte é flutuante e que possui importantes factores desencadeantes subjacentes para os quais a medicina moderna e a sociedade possuem respostas eficazes de tratamento e intervenção. Sobre este assunto, Chochinov escreve: “Physicians whose patients disclose a wish to die must always be listening for underlying deep sorrow, the source of which may or may not be self-evident or readily accessible”.12

Sabemos que existe ainda um nevoeiro envolvendo os cuidados paliativos e que este se adensa por diversos medos, estigmas, irracionalidades de várias formas, vindas de vários sentidos - dos profissionais de saúde, das estruturas académicas, dos doentes e suas famílias -, aumentando o evitável sofrimento, aumentando a dor total, adensando, por exemplo, a suspeição incorrecta de que a medicação opióide acelera a morte. Uma das soluções reside no esforço - mesmo que gigantesco e demorado - da criação de uma maior consciência colectiva e educação.

O sofrimento humano é, de facto, multidimensional. Sempre foi e sempre será. A questão é que, actualmente, o sabemos para além de uma mera afirmação retórica.

Temos ainda a obrigação de persistir num caminho que busque um entendimento cada vez mais profundo do fenómeno humano e da sua complexidade. Não podemos desistir de compreender e de descobrir como intervir em aspectos tão profundos da existência humana como a vida, a morte e o seu natural percurso, os factores que a potenciam e debilitam. Desistir seria quase como negar antibioterapia perante um resultado cultural positivo para determinado microorganismo sensível e cuja actividade provoca sintomas graves, incapacitantes e risco de morte.

É necessária, assim, uma alteração das nossas práticas e da nossa cultura individual e, sobretudo, colectiva. Não estou certo, a este ponto se a tónica deva ser colocada apenas nos cuidados paliativos, na sua melhoria e disseminação. Mas, de facto, se estes fazem a diferença para os doentes e seus familiares, “e se mais cedo é melhor, porquê esperar?”.13

O problema do envelhecimento e das doenças incapacitantes é maior porque não se resume apenas ao eu que padece, mas a um nós que observa, para além da comunidade médico-científica. Este é um assunto mais lato, que nos atinge e responsabiliza como seres humanos. Somos e seremos todos chamados à sua resolução.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Zimmermann C, Riechelmann R, Krzyzanowska M, Rodin G, Tannock I. Effectiveness of specialized palliative care: a systematic review. JAMA. 2008;299(14):1698-709.         [ Links ]

2. Temel JS, Greer JA, Muzikansky A, Gallagher ER, Admane S, Jackson VA, et al. Early palliative care for patients with metastatic non-small-cell lung cancer. N Engl J Med. 2010;363(8):733-42.         [ Links ]

3. Bakitas MA, Tosteson TD, Li Z, Lyons KD, Hull JG, Li Z, et al. Early versus delayed initiation of concurrent palliative oncology care: patient outcomes in the ENABLE III randomized controlled trial. J Clin Oncol. 2015;33(13):1438-45.         [ Links ]

4. Chochinov HM, Hack T, McClement S, Kristjanson L, Harlos M. Dignity in the terminally ill: a developing empirical model. Soc Sci Med. 2002;54(3):433-43.         [ Links ]

5. Chochinov HM. Dignity-conserving care: a new model for palliative care - helping the patient feel valued. JAMA. 2002;287(17):2253-60.         [ Links ]

6. Chochinov HM, Hack T, Hassard T, Kristjanson LJ, McClement S, Harlos M. Dignity therapy: a novel psychotherapeutic intervention for patients near the end of life. J Clin Oncol. 2005;23(24):5520-5.         [ Links ]

7. Chochinov HM, Kristjanson LJ, Breitbart W, McClement S, Hack TF, Hassard T, et al. Effect of dignity therapy on distress and end-of-life experience in terminally ill patients: a randomised controlled trial. Lancet Oncol. 2011;12(8):753-62.         [ Links ]

8. Julião M, Oliveira F, Nunes B, Vaz Carneiro A, Barbosa A. Efficacy of dignity therapy on depression and anxiety in Portuguese terminally ill patients: a phase II randomized controlled trial. J Palliat Med. 2014;17(6):688-95.         [ Links ]

9. Julião M, Nunes B, Barbosa A. Dignity therapy and its effect on the survival of terminally ill Portuguese patients. Psychother Psychosom. 2015;84(1):57-8.         [ Links ]

10. Julião M, Barbosa A, Oliveira F, Nunes B. Prevalence and factors associated with desire for death in patients with advanced disease: results from a Portuguese cross-sectional study. Psychosomatics. 2013;54(5):451-7.         [ Links ]

11. Balaguer A, Monforte-Royo C, Porta-Sales J, Alonso-Babarro A, Altisent R, Aradilla-Herrero A, et al. An international consensus definition of the wish to hasten death and its related factors. PLoS One. 2016;11(1):e0146184.         [ Links ]

12. Chochinov HM. Physician-assisted death in Canada. JAMA. 2016 Jan 19;315(3):253-4.         [ Links ]

13. Gomes B. Palliative care: if it makes a difference, why wait? J Clin Oncol. 2015;33(13):1420-1.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

migueljuliao@gmail.com

 

Conflitos de interesse

O autor declara não ter qualquer conflito de interesses.

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