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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versión impresa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.3 Lisboa jun. 2016

 

CLUBE DE LEITURA

Prescrição antibiótica e satisfação dos utentes nos cuidados de saúde primários: estaremos sob pressão?

Antibiotic prescribing and patient satisfaction in primary care: are we underpressure?

Rute Carlos Vieira Carvalho

Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Ermesinde, ACES Maia-Valongo


 

Ashworth M, White P, Jongsma H, Schofield P, Armstrong D. Antibiotic prescribing and patient satisfaction in primary care in England: cross-sectional analysis of national patient survey data and prescribing data. Br J Gen Pract. 2016;66(642):e40-6.

Introdução

Uma das pedras angulares da prática ao nível dos cuidados de saúde primários (CSP) é a qualidade da relação médico-doente. Em Inglaterra e desde 2007, a avaliação desta relação tem sido alvo de estudos baseados em inquéritos que convidam, anualmente, os pacientes a dar a sua opinião sobre a qualidade dos cuidados prestados pelo médico assistente. No entanto, satisfazer o utente pode nem sempre equiparar-se à prestação dos melhores cuidados de saúde. Dados de um estudo realizado em 2014, demonstraram que 55% dos médicos de família se sentiam pressionados para prescrever antibióticos e que 45% já o tinha feito, reconhecendo que este tratamento era ineficaz.1-2 O presente estudo pretendeu determinar a relação entre a prescrição de antibióticos nos CSP e a satisfação referida pelo paciente.

Métodos

Foi realizado um estudo transversal com dados obtidos a partir de várias fontes: do General Practice Patient Survey (GPPS) (2,7 milhões de questionários; 982.999 respostas; taxa de resposta 36%), em 2012; do Quality and Outcomes Framework (QOF) dataset for England (n=8.164 médicos), entre 2011 e 2012 e características relativas ao profissional e às especificidades demográficas.

O GPPS é uma base de dados dos CSP ingleses que convida os pacientes com médico de família atribuído a reportar, anualmente, a experiência com os cuidados de saúde recebidos. Providencia feedback da opinião do paciente ao médico, sendo também importante na componente de incentivos remuneratórios do Quality and Outcomes Framework, permitindo a monitorização permanente por comissões e supervisores dos CSP.

Durante o período de tempo compreendido entre 2012 e 2013 foram obtidos os volumes de prescrição antibiótica, para cada médico, juntamente com outras 12 variáveis de prescrição. O volume de prescrição antibiótica foi identificado como um determinante na pontuação do GPPS e ajustado para fatores profissionais e demográficos, usando gráficos de regressão linear múltipla.

Resultados

Volume de prescrição antibiótica: Foram eliminados profissionais com as taxas de prescrição mais baixas e mais elevadas (n=159) e a distribuição da prescrição antibiótica foi normalizada, resultando numa amostra de 7.800 profissionais (95,5%). Um total de 33.702.980 prescrições antibióticas foram emitidas para uma população de 53.812.820 indivíduos. O número médio de antibiótico/paciente/médico foi de 2,15.

Preditores de experiência positiva: Nas respostas às perguntas do GPPS, o volume de prescrição antibiótica foi um preditor positivo significativo da satisfação “com o médico” e “com a prática clínica”. Por sua vez, a redução da prescrição destes fármacos associou-se a uma diminuição da satisfação de cerca de 0,81% no item que avaliava o tempo despendido pelo clínico.

Comparação com outros indicadores de prescrição: No modelo de regressão para a satisfação geral, o volume de prescrição antibiótica obteve o valor mais elevado (coeficiente de regressão ajustado: ß=0,08) relativamente às restantes 12 variáveis ​​de prescrição incluídas no modelo: custo/1.000 pacientes registados (uma medida da prescrição total de cada médico) (ß=-0,01), antidepressivos (ß=0,06), hipnóticos (ß=0,01), antipsicóticos (ß=0,04), estatinas de baixo custo (ß=0,02), ezetimibe ß=-0,04), cefalosporinas e quinolonas (proporção do total de antibióticos) (ß=-0,02), anti-inflamatórios não esteroides (ß=-0,01), ibuprofeno e naproxeno (proporção do total de anti-inflamatórios) (ß=0,06), diclofenac e inibidores da COX-2 (ß=0,05), protetores gástricos e fármacos antisecretores (ß=0,03), corticoides inalados (ß=-0,03) e análogos da insulina (ß=-0,02).

Discussão

A prescrição de antibióticos mostrou ser um determinante significativo da experiência do paciente, tanto para a satisfação com o médico, como, em menor grau, para a satisfação com a prestação de cuidados em geral. Médicos que prescreviam 25% menos antibióticos relativamente à média nacional poderiam esperar reduções na pontuação relativa à satisfação do paciente, entre 0,5% e 1,0%. Embora estas reduções fossem modestas, foram consistentes em todas as questões do GPPS que avaliavam a “satisfação do paciente”.

Estes resultados sugerem que os profissionais que respondam à perspetiva da resistência generalizada aos antibióticos, reduzindo a sua prescrição, podem esperar uma redução na satisfação dos seus pacientes. A comparação com outras variáveis de prescrição corrobora estes dados.

Limitações

É um estudo transversal observacional que não permite, por si só, demonstrar causalidade. Os dados recolhidos do GPPS não providenciaram informação direta sobre se foi ou não prescrito um antibiótico ao paciente que se encontrava a responder ao questionário, ou se este esperava uma prescrição antibiótica que não foi concretizada. A comparação com outras variáveis de prescrição pode não ser inteiramente válida, porque muitas só seriam aplicadas a uma pequena minoria de pacientes que responderam ao GPPS.

Os dados de prescrição obtidos foram confinados a prescrições emitidas pelos CSP, omitindo prescrições em serviços de urgência e atendimento permanente.

COMENTÁRIO

Um dos pilares da medicina geral e familiar (MGF) é o estabelecimento de uma boa relação médico-doente, ao longo do tempo, através de uma comunicação efetiva. De facto, temos assistido a uma mudança de paradigmas e mentalidades que favorece o empowerment do doente. Temos consciência de que a sua satisfação e cooperação no plano terapêutico é uma “arma” poderosa e indispensável. No entanto, é necessário estarmos cientes de que agradar ao paciente nem sempre está de acordo com a prestação de cuidados mais adequados à luz da evidência científica atual.1-2

De facto, o presente estudo destaca a necessidade de adotar uma postura reflexiva numa das mais comuns atitudes terapêuticas em MGF. Apesar de este ter sido realizado noutro país, esta é uma questão comum no nosso dia-a-dia, o que sugere que a realidade portuguesa poderá, infelizmente, não ser muito díspar da representada.

O uso de antibióticos é uma arma indispensável e robusta, podendo ser também um grande inconveniente, uma vez que a resistência antimicrobiana conduz ao aumento da morbimortalidade e dos custos em saúde.

De acordo com a OMS, a resistência aos antibióticos não é uma previsão para o futuro, mas uma calamidade atual e transversal a todo o mundo, pondo em risco todos os países.3

O Centre for Diseases Control and Prevention declara que mais de 2 milhões de pessoas adquirem anualmente uma infeção resistente aos antibióticos, sendo que 23 mil morrerão dessa infeção.4 Na Europa, cerca de 25.000 pessoas/ano morrem devido a infeções por bactérias resistentes.5

O Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos, da Direção-Geral da Saúde, de 2014, revela que Portugal apresenta das mais elevadas taxas de resistência antimicrobiana, relativamente a outros países europeus, em Staphylococcus aureus, Enterococcus faecalis, Enterococcus faecium e Acinetobacter spp., verificando-se, como na maioria dos outros países, uma crescente taxa de resistência de Enterobacteriaceae a cefalosporinas de terceira geração, quinolonas e carbapenemes.6

Devido aos crescentes perigos do aumento das resistências antibióticas, a preocupação com a satisfação do paciente pode ser um importante obstáculo à tentativa de racionalizar a prescrição destes fármacos, resultando num potencial problema major em saúde pública. Sem uma ação urgente e coordenada estaremos a caminhar para uma era em que infeções comuns, que têm sido facilmente tratáveis, voltem a ser letais.

Torna-se claro e premente encontrar alternativas seguras à prescrição de antibióticos, no que diz respeito à satisfação dos doentes. Para este efeito, para além de ser importante o compromisso dos médicos prescritores e dos órgãos administrativos de saúde no sentido de avaliar a situação atual e facilitar intervenções adequadas para melhorar o uso destes fármacos, é indispensável o recurso a estratégias populacionais de educação para a saúde, fomentando a literacia dos doentes e do público em geral.

De facto, os doentes parecem ficar menos satisfeitos devido a uma menor taxa de prescrição antibiótica, mas estaremos a ser médicos inferiores por isso?

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Ashworth M, White P, Jongsma H, Schofield P, Armstrong D. Antibiotic prescribing and patient satisfaction in primary care in England: cross-sectional analysis of national patient survey data and prescribing data. Br J Gen Pract. 2016;66(642):e40-6.         [ Links ]

2. Cole A. GPs feel pressurised to prescribe unnecessary antibiotics, survey finds. BMJ. 2014;349:g5238.         [ Links ]

3. World Health Organization. Antimicrobial resistance: fact sheet no. 194 (Internet). Geneva: WHO; 2015 (cited 2016 Jan 28). Available from: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs194/en/        [ Links ]

4. Centre for Diseases Control and Prevention. Antibiotic resistance threats in the United States, 2013 (Internet). Atlanta: CDC; 2013 (updated 2014 Jul 14). Available from: http://www.cdc.gov/drugresistance/        [ Links ]

5. Centre for Diseases Control and Prevention. Antibiotic resistance: the global threat [Internet]. Atlanta: CDC; 2015 (updated 2015 Nov 16). Available from: http://www.cdc.gov/globalhealth/infographics/antibiotic_resistance_global_threat.htm        [ Links ]

6. Direção-Geral da Saúde. Prevenção e controlo de infeções e de resistência aos antimicrobianos em números – 2014: programa de prevenção e controlo de infeções e de resistência aos antimicrobianos (Internet). Lisboa: DGS; 2014. Available from: http://www.dgs.pt/?cr=26580        [ Links ]

 

Conflitos de interesse

A autora declara não ter conflito de interesses.

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