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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.4 Lisboa ago. 2016

 

CLUBE DE LEITURA

Será o leite hidrolisado protetor de doença alérgica ou autoimune?

Is hydrolysed formula protective of allergic or autoimmune disease?

Sofia Faria, Carla Patrícia Silva

Médicas Internas de Medicina Geral e Familiar, Unidade de Saúde Familiar Lagoa - Unidade Local de Saúde de Matosinhos


 

Boyle RJ, Ierodiakonou D, Khan T, Chivinge J, Robinson Z, Geoghegan N, et al. Hydrolysed formula and risk of allergic or autoimmune disease: systematic review and meta-analysis. BMJ. 2016;352:i974.

Introdução

A prevalência de patologias imunomediadas, como a doença alérgica e autoimune, parece estar a aumentar em muitos países, sendo uma importante causa de doença crónica em idades jovens. A exposição dietética na infância, nomeadamente a exposição precoce à proteína de leite de vaca sob a forma de leite de fórmula, pode influenciar o risco destas doenças. Assim, as atuais guidelines europeia, norte-americana e australiana recomendam o uso de leite de fórmula hidrolisado nos primeiros quatro a seis meses de vida para prevenção primária da doença alérgica.

Métodos

Esta revisão sistemática e meta-análise pretende avaliar o efeito da alimentação infantil com leite de fórmula hidrolisado na prevenção da sensibilização alérgica, doença alérgica ou doença autoimune. Esta revisão faz parte de uma série de revisões sistemáticas encomendadas pela UK Food Standards Agency para emitir recomendações do Reino Unido sobre a alimentação infantil.

Foi feita uma pesquisa nas bases de dados da MEDLINE, Embase, Web of Science, CENTRAL e LILACS, entre janeiro de 1946 e abril de 2015. Foram incluídos estudos que utilizaram leite de fórmula hidrolisado com origem em leite de vaca, como intervenção, comparado com outros tipos de leite de fórmula hidrolisado, leite humano ou leite de fórmula não hidrolisado. Os outcomes analisados foram subdivididos em atópicos e autoimunes. Nos outcomes atópicos incluiu-se a asma, o eczema, a rinite e/ou conjuntivite alérgica, as alergias alimentares e a sensibilização alérgica (testes cutâneos, imunoglobulinas E específicas ou total). Como outcomes autoimunes foram incluídos a diabetes mellitus tipo 1, a doença celíaca, a doença inflamatória intestinal, a doença tiroideia autoimune, a artrite reumatóide juvenil, o vitiligo e a psoríase.

Os investigadores analisaram o risco de viés dos estudos incluídos através de uma versão modificada da ferramenta de risco de viés da Cochrane Collaboration, que avaliou o risco de viés de seleção, o risco de erros de avaliação e o risco de viés de atrito. Os investigadores avaliaram também a presença de conflito de interesses.

Resultados

Foram identificados 52 estudos (37 ensaios clínicos) sobre leite de fórmula hidrolisado, incluindo 19.000 participantes. Destes, 28 eram ensaios clínicos controlados e randomizados, seis quasi-randomizados e três ensaios clínicos controlados, descrevendo outcomes alérgicos ou autoimunes. Vinte e três estudos utilizaram fórmula parcialmente hidrolisada, 18 utilizaram fórmula extensamente hidrolisada. Em 30 dos 37 ensaios, as crianças apresentavam um risco elevado de outcomes devido à presença de história familiar (familiar de primeiro grau). O risco de viés e de conflito de interesses foi incerto ou alto na maioria dos estudos para os outcomes alérgicos e baixo ou incerto para a maioria dos estudos para os outcomes autoimunes.

Vinte e sete estudos reportaram o efeito da fórmula hidrolisada sobre o risco de eczema na infância. Os resultados obtidos não demonstraram diferença significativa entre a fórmula extensamente hidrolisada e o leite de fórmula standard no grupo 0-4 anos (OR 0,84; IC 95% 0,67 a 1,07; I2=30%) nem no grupo 5-14 anos (OR 0,86; IC 95% 0,72 a 1,02; I2=0%). Relativamente à fórmula parcialmente hidrolisada, os ensaios clínicos controlados e randomizados não revelaram efeito significativo no risco de eczema nos 0-4 anos (OR 0,94; IC 95% 0,75 a 1,17; I2=0%).

Vinte e um estudos reportaram o efeito da fórmula hidrolisada sobre o risco de sibilância e sibilância recorrente. Os resultados obtidos para o outcome sibilância recorrente não mostraram diferença significativa entre a fórmula parcialmente hidrolisada e a fórmula standard nas idades 0-4 anos (OR 0,82; IC 95% 0,48 a 1,41; I2=15%) e 5-14 anos (OR 0,99; IC 95% 0,65 a 1,51; I2=43%). O mesmo se verificou para o leite de fórmula extensamente hidrolisada com base em caseína ou proteína do soro.

O risco de rinite alérgica foi avaliado em doze estudos. Nas idades 0-4 anos, a fórmula parcialmente hidrolisada (mas não a extensamente hidrolisada) associou-se a uma redução significativa do risco de rinite alérgica. Contudo, esta meta-análise foi dominada por estudos com intervenções multifacetadas. Nas idades 5-14 anos não se verificou redução significativa deste outcome com a fórmula hidrolisada.

O risco de alergia alimentar e sensibilização alérgica foi analisado em 13 e 19 estudos, respetivamente. Não houve diferença significativa no risco de alergia alimentar com uso de fórmula parcialmente (RR 1,73; IC 95% 0,79 a 3,80; I2=42%) ou extensamente hidrolisada (RR 0,86; IC 95% 0,26 a 2,82; I2=42%), comparado com a fórmula standard, nas idades 0-4 anos, nem para a extensamente hidrolisada dos 5-14 anos. Não há diferença significativa na sensibilização alérgica ao leite de vaca com fórmula parcialmente (RR 1,30; IC 95% 0,65 a 2,60; I2=0%) ou extensamente hidrolisada (RR 0,77; IC 95% 0,09 a 6,730; I2=77%).

A comparação direta entre fórmula extensamente versus parcialmente hidrolisada e fórmula extensamente hidrolisada com base em caseína versus proteína do soro não revelou diferença significativa no risco de eczema, sibilância recorrente, rinite alérgica e alergia alimentar.

Seis estudos avaliaram o efeito da fórmula extensamente hidrolisada comparada com a fórmula standard no risco de diabetes mellitus tipo 1, não se verificando diferença significativa (RR 1,12; IC 95% 0,62 a 2,02; I2=25%). Não foram encontrados estudos para outros outcomes autoimunes.

Conclusão

Esta revisão não encontrou evidência consistente que suporte o uso de fórmula hidrolisada como forma de prevenção de doença alérgica ou autoimune.

COMENTÁRIO

As atuais recomendações são unânimes relativamente ao aleitamento materno exclusivo nos primeiros quatro a seis meses de vida.1-3 Contudo, na impossibilidade de aleitamento materno, a European Academy of Allergy and Clinical Immunology (EAACI) e a American Academy of Allergy, Asthma & Immunology recomendam o leite de fórmula hidrolisado em crianças de alto risco nos primeiros quatro meses de vida para prevenção da doença alérgica. Por alto risco entendem-se as crianças com pelo menos um familiar em primeiro grau com história de doença alérgica.1-2

Os leites de fórmula hidrolisados, frequentemente denominados hipoalergénicos, foram concebidos para tentar reduzir o risco de alergia ou intolerância alimentar. De acordo com estudos realizados, em termos ideais, as fórmulas hidrolisadas devem conter peptídeos tão curtos quanto possível para diminuir a alergenicidade das proteínas e tão longos quanto possível para melhorar o seu valor nutricional. As fórmulas parcialmente hidrolisadas são compostas por peptídeos com peso molecular até 5.000 Daltons (D), podendo ainda conter peptídeos de dimensão suficiente para induzir reação alérgica em crianças sensibilizadas. As fórmulas extensamente hidrolisadas são compostas na sua maioria por peptídeos inferiores a 1.500 D, reduzindo significativamente a alergenicidade.4

Esta revisão sistemática não encontrou evidência que suporte o papel protetor da fórmula hidrolisada na redução do risco de doença alérgica ou autoimune, resultados que são contraditórios com as atuais recomendações internacionais.5

Já em 2006, uma revisão da Cochrane concluiu que existia evidência limitada com o uso de fórmula hidrolisada, comparada com a fórmula standard, na redução do risco de doença alérgica e alergia às proteínas do leite de vaca.6

Por sua vez, a Australasian Society of Clinical Immunology and Allergy (ASCIA), nas suas recomendações em 2008, defendia o uso de fórmula hidrolisada para reduzir o risco de doença alérgica em crianças de alto risco, em caso de necessidade de leite de fórmula nos primeiros meses de vida.7 No entanto, recentemente, a ASCIA alterou as suas recomendações com base nesta revisão sistemática, afirmando que não há evidência consistente que apoie o papel protetor de fórmulas parcialmente ou extensamente hidrolisadas para a prevenção de eczema, alergia alimentar, asma ou rinite alérgica em recém-nascidos ou crianças.3

Um dos aspetos a mencionar nesta revisão é que muitos dos estudos incluídos, relativamente a outcomes alérgicos, apresentam risco elevado ou incerto de viés, com métodos inadequados de randomização e alocação (viés de seleção) e evidência de conflito de interesses, sendo suportados financeiramente pela indústria de leite de fórmula. Além disso, os autores da revisão referem que são os estudos com menor qualidade metodológica que apresentam mais outcomes positivos, comparativamente aos estudos controlados e randomizados. Os autores sugerem ainda a existência de um possível viés de publicação pela presença de pequenos ensaios não publicados que mostram um aumento do risco de eczema e sibilância recorrente associada ao uso de fórmula hidrolisada.

Em suma, com base nesta revisão sistemática e meta-análise, parece não existir evidência que suporte as atuais recomendações sobre o uso de fórmula hidrolisada para prevenção da doença alérgica ou autoimune, pelo que os autores sugerem que estas sejam revistas. São, portanto, necessários mais estudos de elevada qualidade, de metodologia homogénea e independentes da indústria que definam o papel do leite de fórmula hidrolisado na doença alérgica e autoimune.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Muraro A, Halken S, Arshad SH, Beyer K, Dubois AE, Du Toit G, et al. EAACI food allergy and anaphylaxis guidelines: primary prevention of food allergy. Allergy. 2014;69(5):590-601.         [ Links ]

2. Fleischer DM, Spergel JM, Assa'ad AH, Pongracic JA. Primary prevention of allergic disease through nutritional interventions. J Allergy Clin Immunol Pract. 2013;1(1):29-36.         [ Links ]

3. Australasian Society of Clinical Immunology and Allergy. Guidelines for infant feeding and allergy prevention (Internet). Balgowlah, AU: ASCIA; 2016. Available from: https://www.allergy.org.au/images/pcc/ASCIA_PCC_Guidelines_for_infant_feeding_and_allergy_prevention_FINAL.pdf

4. Amaral JM. Tratado de clínica pediátrica. Lisboa: Abbott; 2008.         [ Links ] ISBN 9789892012773

5. Boyle RJ, Ierodiakonou D, Khan T, Chivinge J, Robinson Z, Geoghegan N, et al. Hydrolysed formula and risk of allergic or autoimmune disease: systematic review and meta-analysis. BMJ. 2016;352:i974.         [ Links ] 

6. Osborn DA, Sinn JJ. Formulas containing hydrolysed protein for prevention of allergy and food intolerance in infants. Cochrane Database Syst Rev. 2006;4:CD003664.         [ Links ]

7. Australasian Society of Clinical Immunology and Allergy. Infant feeding advice (Internet). Balgowlah, AU: ASCIA; 2008 (updated 2010). Available from: http://www.rch.org.au/uploadedFiles/Main/Content/allergy/ASCIA_Infant_Feeding_Advice_2010.pdf

 

Conflitos de interesse

As autoras declaram não ter conflito de interesses.

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