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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.6 Lisboa dez. 2016

 

CLUBE DE LEITURA

Os rastreios oncológicos nunca mostraram salvar vidas, porquê?

Does cancer screening save lives?

J. Alexandre Freitas*, Maria da Conceição Balsinha**

*Médico Interno em Medicina Geral em Familiar. USF Marginal

**Médica Assistente em Medicina Geral e Familiar. USF Marginal


 

Prasad V, Lenzer J, Newman DH. Why cancer screening has never been shown to «save lives» - and what we can do about it. BMJ. 2016;352:h6080.

Resumo do artigo original

O argumento de que os rastreios oncológicos salvam vidas baseia-se em estudos que mediram a redução de mortalidade específica da doença rastreada. No entanto, esta medida não informa a população sobre a sua verdadeira preocupação: diminuir o risco de morrer.

Por que podem os rastreios oncológicos não reduzir a mortalidade global

Uma revisão sistemática evidenciou que três de 10 meta-análises mostraram uma redução na mortalidade causada pela doença rastreada, mas nenhuma mostrou redução da mortalidade global. Estes resultados podem dever-se aos estudos não terem potência suficiente para mostrar pequenas reduções da mortalidade global e às mortes por complicações do rastreio anularem a redução de mortalidade da doença rastreada.

Tomando como exemplo o estudo Minnesota Colon Cancer Control Study, que usou a pesquisa de sangue oculto nas fezes (PSOF) anualmente como exame de rastreio, mostrou que por cada 10.000 indivíduos rastreados morreram menos 64 por cancro colorretal, mas apenas menos dois por qualquer causa. Para que esta diferença de mortalidade global tivesse significado estatístico, o estudo teria de ser cinco vezes maior. A diferença entre a redução de mortalidade específica e global pode dever-se a mortes por complicações decorrentes do rastreio.

Estas mortes colaterais são mais prováveis em rastreios associados a falsos positivos, sobrediagnóstico e achados incidentais, como são maiores exemplos o uso do PSA para rastreio do cancro da próstata e a radiografia de tórax para o rastreio do cancro do pulmão. Homens diagnosticados com cancro da próstata têm maior probabilidade de morrer no ano seguinte ao diagnóstico por complicações do tratamento, enfarte agudo do miocárdio ou suicídio.

O efeito total dos rastreios oncológicos é complexo e não pode ser totalmente compreendido através da mortalidade específica como endpoint.

Benefícios na mortalidade em ensaios clínicos requerem escrutínio

O ensaio clínico que, provavelmente, mostrou maior evidência de redução de mortalidade global associada a rastreios (6,7%) foi o National Lung Cancer Screening (NLTS), que incluiu 53.454 fumadores aleatoriamente distribuídos por rastreio com TC de baixa dose ou radiografia de tórax. No entanto, foram identificadas algumas limitações neste estudo:

• O grupo de controlo foi rastreado com radiografia de tórax (não houve grupo sem exame de rastreio);

• A redução de mortalidade global no grupo de TC foi superior ao ganho em mortalidade relacionada com cancro do pulmão (123 vs. 87);

• A redução de mortalidade por cancro de pulmão, estimada em menos 12.000 mortes por ano nos EUA, tem de ser comparada com as possíveis complicações (e.g., colapso pulmonar, enfarte agudo do miocárdio, AVC, morte) decorrentes do rastreio positivo e estimadas em 27.034;

• A metodologia do NLST pode ter falhas já que uma meta-análise de ensaios clínicos semelhantes revelou que aqueles que fizeram TC não sobreviveram mais tempo.

Perceção pública do rastreio

Uma revisão sistemática sobre a perceção da população relativamente aos rastreios do cancro do colo do útero, da mama e da próstata mostrou que existe uma visão inflacionada dos benefícios dos rastreios e falta de conhecimento sobre os seus malefícios. Num dos estudos sobre cancro da mama, 68% das mulheres pensava que o rastreio reduzia para metade a incidência da doença e 75% pensava que em cada 1.000 mulheres rastreadas durante 10 anos morreriam menos dez. As estimativas mais otimistas não se aproximam destes números. As revisões mais recentes da Cochrane sobre os rastreios com PSA e mamografia não mostraram uma redução da mortalidade específica.

A decisão da Swiss Medical Board de não recomendar rastreio do cancro da mama baseou-se no facto de não se conseguir reduzir a mortalidade global. Assim, parece não existir benefício, havendo aumento da morbilidade, da ansiedade e dos custos económicos.

Os profissionais e as autoridades da saúde que defendem o rastreio enfatizam os seus benefícios, por vezes fomentando o medo; outros pensam que a decisão partilhada deveria ser o foco. No entanto, enquanto não existir informação clara sobre os benefícios não podemos ajudar os utentes a tomar uma decisão informada (devemos ser honestos com esta incerteza).

Malefícios

Perante as dúvidas sobre o benefício dos rastreios torna-se ainda mais importante considerar os seus malefícios. Uma análise empírica mostrou que os estudos primários sobre rastreios oncológicos prestam pouca atenção aos malefícios. Em 57 estudos, apenas 7% quantificaram o sobrediagnóstico e 4% reportaram os falsos positivos.

Das mulheres rastreadas por mamografia durante uma década, 60% têm pelo menos um falso positivo, assim como 13% dos homens rastreados com PSA em quatro ocasiões. No NLST ocorreram 96,4% de falsos positivos. Em relação ao sobrediagnóstico, estima-se que ocorreu em 18% das pessoas diagnosticadas naquele estudo e que ocorra em uma em cada três pessoas com diagnóstico de carcinoma invasivo da mama.

O que se segue?

Para sabermos se os rastreios salvam vidas precisamos de ensaios capazes de estudar a mortalidade global. Para tal, pensa-se que seriam necessários ensaios com 4,1 milhões de participantes, mas os seus custos seriam exorbitantes. Uma forma de mitigar esta limitação seria utilizar registos observacionais nacionais e, para que a evidência fosse mais robusta, poder-se-ia mesmo aleatorizar a população nos programas de rastreio atuais. Estes custos poderiam ser ainda mais reduzidos se os ensaios se focassem em grupos de maior risco e passassem a ser feitos em grupos de menor risco apenas se os resultados fossem favoráveis.

Para uma melhoria da evidência científica, os ensaios deveriam ter em conta todas as causas de morte para monitorizar os aumentos de mortalidade causados pelo próprio rastreio e os dados deveriam ser disponibilizados para reanálise.

Conclusão

Os profissionais de saúde deveriam ser francos acerca das limitações dos rastreios: os malefícios são conhecidos, mas desconhecemos os benefícios na redução da mortalidade. Recusar um rastreio pode ser uma opção razoável e prudente para muitas pessoas. É necessária maior e melhor qualidade da evidência disponível para permitir uma decisão partilhada racional entre médicos e utentes.

Comentário

As questões levantadas por este artigo permitem-nos refletir sobre os rastreios oncológicos tanto do ponto de vista da investigação como da prática clínica.

Na investigação é necessária uma mudança de paradigma, com a utilização da mortalidade global como endpoint.1 No entanto, isto requer ensaios de larga escala que podem ser mesmo inexequíveis, como já foi apontado por alguns especialistas.2-3 Esta limitação pode ser ultrapassada utilizando bases de dados informáticas de doentes nacionais, uniformizadas e robustas como as encontradas na Escandinávia.4 Este cenário contrasta com as bases de dados fragmentadas e incongruentes encontradas na saúde noutros países, incluindo Portugal.4

Na prática clínica é necessária uma mudança de atitude dos profissionais de saúde e uma alteração da forma de pensar dos utentes perante a medicina preventiva em geral e os rastreios oncológicos em particular.5-7 A informação veiculada através de campanhas em meios de comunicação social, hospitais e outras instituições terá de ser mais honesta, pois atualmente enfatiza os benefícios e desvaloriza ou oculta os riscos.5-6 A informação deveria ser suportada na evidência disponível, mostrando que a diminuição da probabilidade de morrer é incerta e que, mesmo nos casos onde essa diminuição é mais provável, o risco associado ao rastreio não é negligenciável.6-7

Esta inclusão da incerteza na discussão com os utentes deveria também ser importada para a nossa consulta, possibilitando uma decisão mais racional.5,8 Da mesma forma, nas regiões onde se praticam rastreios populacionais, os convites deveriam ser revistos para que se faça um adequado aconselhamento pré-teste.5,8 No entanto, permanece a incerteza sobre qual a melhor forma de possibilitar aos utentes uma verdadeira decisão informada.9

Quando o médico de família (ou outro profissional de saúde) propõe um rastreio oportunístico deverá estar consciente das suas crenças e do seu (des)conhecimento relativo a esse rastreio.5,8 Esta consciência é especialmente importante nos rastreios onde existem metas contratualizadas com as instituições de saúde. Tendo em conta a pressão atual causada pelas metas elevadas, torna-se necessário refletir sobre as questões éticas envolvidas.10 Nomeadamente: se os utentes devem saber que a realização de determinado exame de rastreio influencia a avaliação do médico/instituição e, por vezes, a sua remuneração.8,10

Os utentes nunca poderão tomar uma decisão verdadeiramente informada se não conhecerem o nosso desconhecimento e os nossos conflitos de interesse sobre os atos que praticamos.5,8

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Black WC. All-cause mortality in randomized trials of cancer screening. J Natl Cancer Inst. 2002;94(3):167-73.         [ Links ]

2. Bell KJ, Bossuyt P, Glasziou P, Irwig L. Assessment of changes to screening programmes: why randomisation is important. BMJ. 2015;350:h1566.         [ Links ]

3. Kopans DB, Halpern E. Re: All-cause mortality in randomized trials of cancer screening. J Natl Cancer Inst. 2002;94(11):863.         [ Links ]

4. Lauer MS, D’Agostino RB. The randomized registry trial: the next disruptive technology in clinical research? N Engl J Med. 2013;369(17):1579-81.         [ Links ]

5. Treadwell J, McCartney M. Overdiagnosis and overtreatment: generalists — it’s time for a grassroots revolution. Br J Gen Pr. 2016;66(644):116-7.         [ Links ]

6. Woloshin S, Schwartz LM, Black WC, Kramer BS. Cancer screening campaigns: getting past uninformative persuasion. N Engl J Med. 2012;367(18):1677-9.         [ Links ]

7. Hoffmann TC, Del Mar C. Patients’ expectations of the benefits and harms of treatments, screening, and tests: a systematic review. JAMA Intern Med. 2015;175(2):274-86.         [ Links ]

8. RCGP. RCGP Standing Group on overdiagnosis: for shared decisions in healthcare [Internet]. London: Royal College of General Practitioners; s.d. (cited 2016 Mar 22). Available from: http://www.rcgp.org.uk/policy/rcgp-policy-areas/overdiagnosis.aspx

9. Edwards AG, Naik G, Ahmed H, Elwyn GJ, Pickles T, Hood K, et al. Personalised risk communication for informed decision making about taking screening tests. Cochrane Database Syst Rev. 2013;(2):CD001865.         [ Links ]

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Conflitos de interesse

Os autores declaram não ter conflito de interesses.

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