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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versión impresa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.34 no.2 Lisboa abr. 2018

 

OPINIÃO E DEBATE

Violência doméstica e segredo médico: o papel do médico de família

Domestic violence and medical secrecy: the role of the family doctor

Andreia Rodrigues Silva*

*USF Casa dos Pescadores, ACeS Grande Porto IV – Póvoa de Varzim/Vila do Conde

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

A violência doméstica tem vindo a ganhar cada vez mais visibilidade, quer a nível nacional como internacional; contudo, continua a ser subvalorizada e subdiagnosticada, nomeadamente ao nível dos cuidados de saúde. Torna-se, por isso, imperativo que todos os profissionais do setor da saúde, especialmente os médicos, saibam como abordar, diagnosticar e intervir neste contexto, salvaguardando o seu dever de segredo médico e de confidencialidade.

Palavras-chave: Violência doméstica; Médico de família


 

ABSTRACT

Domestic violence has been gaining increasing visibility, both nationally and internationally; however, it remains undervalued and underdiagnosed, particularly in the healthcare setting. It is therefore imperative that all healthcare professionals, especially physicians, know how to approach, diagnose and intervene in this context, safeguarding their duty of medical secrecy and confidentiality.

Keywords: Domestic violence; Family physician


 

Segundo o Manual de violência interpessoal, da Direção-Geral da Saúde, violência doméstica define-se como a violência física, sexual e psicológica que ocorre numa relação íntima ou familiar, podendo traduzir-se em agressões físicas, abusos sexuais e/ou maus tratos psicológicos.1

De acordo com o relatório anual de 2016 da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, a violência doméstica totaliza mais de 70% dos registos criminais e, embora maioritariamente exercida sobre mulheres, atinge também, direta e/ou indiretamente, crianças, idosas e idosos e outras pessoas que se encontram em situações de maior vulnerabilidade, como as portadoras de deficiência,2 ou seja, qualquer pessoa pode ser vítima de violência doméstica, independentemente do seu estatuto social, situação económica e profissional, idade, cultura ou religião. É, por isso, um problema transversal à nossa sociedade.

Apesar de ter vindo a ganhar visibilidade nos últimos anos, quer a nível nacional como internacional, continua a ser negligenciada por muitos setores da sociedade, inclusive o setor da saúde. Torna-se, por isso, premente que nós, profissionais médicos da área da saúde, encaremos este flagelo como parte integrante da nossa prática clínica e, nesse sentido, nos preparemos para uma situação de denúncia em que o apoio total à vítima e a tentativa constante de reabilitação do agressor sejam as prioridades.

A saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação.

Juramento de Hipócrates. Associação Médica Mundial, 1983.

Neste sentido, considero que o setor da saúde pode e deve desempenhar um papel essencial na prevenção, identificação e apoio às vítimas de violência doméstica, uma vez que, em algum momento da vida, a maioria entra em contacto com o Serviço Nacional de Saúde (SNS), quer em consultas de vigilância, de doença ou por outros motivos. O médico de família, por ser o primeiro ponto de contacto com o SNS, por desenvolver uma abordagem centrada na pessoa, orientada para o indivíduo e sua família, pela responsabilidade específica pela saúde da comunidade, pela prestação de cuidados continuados longitudinalmente que assegura e, sobretudo, por lidar com os problemas de saúde em todas as suas dimensões – física, psicológica, social, cultural e existencial –, assente numa modelação holística,3 tem um papel privilegiado para a prevenção, deteção e acompanhamento destas situações.

A principal questão, que muitas vezes coloca entraves a uma prestação de cuidados eficaz, prende-se com o facto de que sendo a violência doméstica um crime público e, como tal, de denúncia obrigatória, como pode um médico de família conciliar a observância deste normativo e o dever de assegurar a confidencialidade e segredo inerente à sua prática e à relação que tem com cada um dos seus utentes?

Mesmo após a morte do doente, respeitarei os segredos que me tiver confiado.

Juramento de Hipócrates. Associação Médica Mundial, 1983.

Segundo o Código Deontológico, que encerra um conjunto de normas de comportamento, cuja prática não só é recomendável como deve servir de orientação nos diferentes aspetos da relação humana que se estabelece no decurso do exercício profissional, o segredo médico é condição essencial ao relacionamento médico-utente, pressupondo e permitindo uma base de verdade e de confiança mútuas. Como tal, o segredo médico impõe-se em todas as circunstâncias, dado resultar de um direito inalienável de todos os direitos.4 Assim, no contexto da violência doméstica, se a vítima não quiser apresentar denúncia e pedir expressamente que nem o médico o faça, apenas e só após autorização do Presidente da Ordem dos Médicos é que o médico pode pedir escusa do segredo médico, revelando unicamente o que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do utente e do médico.4 No caso de se tratar de uma denúncia feita em ambiente de consulta por parte de terceiros, pertencentes ou não à família da vítima ou do agressor, o segredo médico prevalecerá. Contudo, e na minha opinião, sendo nossa função, enquanto médicos de família, salvaguardar a saúde dos nossos utentes e de suas famílias, devemos atentar ao alerta que nos foi feito e estar vigilantes a quaisquer sinais de perigo que a potencial vítima demonstre ou verbalize e, simultaneamente, estar mais atentos ao perfil e comportamento do alegado agressor. Considero também ser nosso dever promover a literacia em saúde, enfatizando que a violência doméstica é um crime público e, como tal, qualquer pessoa, enquanto indivíduo pertencente a uma comunidade, pode e deve efetuar a denúncia.

Julgo importante referir que, apesar do apoio por parte da Ordem dos Médicos e do suporte cada vez mais patente dado pelas Equipas de Prevenção da Violência em Adultos na abordagem destas situações, as respostas demoram muitas vezes mais tempo do que o previsto e necessário para uma intervenção eficaz, podendo isso também contribuir para a perpetuação dos maus tratos e concomitantemente menor incentivo ao início de todo o processo de denúncia por parte dos profissionais.

Apesar de considerar que estamos no bom caminho, há que unir forças, otimizar recursos e potenciar cada vez mais o trabalho em rede. Torna-se, por isso, fundamental que nós, médicos dos cuidados de saúde primários, estejamos atentos a esta problemática, salvaguardando sempre os interesses dos nossos utentes, procurando assegurar uma prestação de cuidados o mais segura e completa possível para um objetivo único: a saúde e bem-estar de todo aquele que nos procura.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Prazeres V, editor. Violência interpessoal: abordagem, diagnóstico e intervenção nos serviços de saúde. Lisboa: Direção-Geral da Saúde; 2014.         [ Links ]

2. Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Estatísticas APAV: relatório anual 2016. Lisboa: APAV; 2017.         [ Links ]

3. WONCA Europa. A definição europeia de medicina geral e familiar (clínica geral/medicina familiar). WONCA Europa; 2002.         [ Links ]

4. Juramento de Hipócrates: versão adaptada da Fórmula de Genebra e adotada pela Associação Médica Mundial. Lisboa: Ordem dos Médicos; 2017.         [ Links ]

5. Ordem dos Médicos. Código deontológico da Ordem dos Médicos. Lisboa: Ordem dos Médicos; 2008.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Andreia Rodrigues Silva

E-mail: andreiarodriguescsilva@gmail.com

 

Conflito de interesses

A autora declara não ter conflitos de interesses.

 

Recebido em 15-07-2016

Aceite para publicação em 12-03-2018

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