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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versión impresa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.34 no.2 Lisboa abr. 2018

 

OPINIÃO E DEBATE

Programa Nacional para as Doenças Oncológicas: o despacho n.º 8254/2017, de 21 de setembro, do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, merece mais atenção e representa um primeiro passo para a orientação de soluções

National Programme for Oncological Diseases: the order nº 8254/2017 of September 21st, deserves more attention and presents as the first step towards solution orientation

Rui Artur Nogueira*

*Médico de família, Assistente Graduado. USF Norton de Matos, ACeS Baixo Mondego – Coimbra, Presidente da Direção da APMGF

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

A incidência da doença oncológica no nosso país nos últimos anos tem um aumento regular a uma taxa constante de aproximadamente 3% ao ano, à semelhança do que também se passa no resto da Europa. É fundamental diminuir os cancros evitáveis e os diagnósticos tardios. A prevenção e o diagnóstico precoce são as estratégias possíveis para atenuar o impacto da doença oncológica nas pessoas e nas famílias.

Palavras-chave: Rastreio; Promoção da saúde; Prevenção da doença; Doença oncológica; Carcinoma colorretal.


 

ABSTRACT

In recent years, the incidence of oncological disease in our country has been increasing steadily at an annual rate of 3%, just as in most countries in Europe. It is essential to reduce avoidable cancers and late diagnoses. Prevention and early diagnosis are main possible strategies to mitigate the impact of oncological disease in individuals and families.

Key-Words: Screening; Health promotion, prevention; oncological diseases


 

Introdução

A promoção da saúde tem um lugar de destaque na prática médica e, por maioria de razão, em medicina geral e familiar (MGF). A educação para a saúde, a proteção da saúde e a prevenção da doença são vertentes de ação complementares e interrelacionadas.1 A promoção da saúde deve dirigir-se aos principais problemas de saúde que afetam uma população definida, com base em dados fiáveis de prevalência e incidência na comunidade.

A prevenção da doença, uma das vertentes da promoção da saúde, consiste na “redução do risco da ocorrência da dimensão negativa da saúde e apresenta áreas de sobreposição, confluência e interligação com a educação para a saúde e com a proteção da saúde.”2

Na Carta de Ottawa3 o conceito de promoção da saúde foi definido como “processo que visa criar condições para que as pessoas aumentem a sua capacidade de controlar os fatores determinantes da saúde, no sentido de a melhorar.”

Todavia, as fronteiras do que é considerado prevenção têm vindo a ser sucessivamente alargadas sem que isso se traduza em ganhos em saúde. Alguns autores têm posto em causa o peso relativo das atividades preventivas na consulta do médico de família. A realização de atividades preventivas e o cumprimento de indicadores de desempenho exigem um dispêndio considerável de tempo.4 O tempo disponível para o médico de família cuidar de pessoas doentes poderá ficar limitado se as atividades preventivas ocuparem um espaço indevido e inconsequente. Mas o contrário também é possível.

Para que não surjam surpresas ou inconvenientes no acesso, nem exagero de esforço do próprio médico de família, indiscutivelmente é necessário gerir o tempo e planear as diferentes atividades com lógica e pertinência, com avaliação permanente, transparência e partilha de resultados.

A gestão da prática clínica defendida pela WONCA Europa é uma competência prevista na Definição Europeia de MGF5 e uma área de implementação juntamente com as tarefas clínicas e a comunicação com os utentes. A MGF é a especialidade de primeiro contacto e recurso essencial na organização de um sistema de saúde. O vasto leque de atividades determinadas pelas necessidades e pela procura dos pacientes está na origem das suas múltiplas facetas e na oportunidade de gestão de problemas de saúde individuais e comunitários. A Declaração WONCA Europa5 aprofunda ainda mais esta ideia ao sugerir que o médico de família terá um papel na gestão de recursos dos sistemas de saúde.

Um dos papéis principais da MGF é a prevenção da doença beneficiando da proximidade dos utentes de uma lista definida e personalizada numa unidade de saúde inserida na rede de Cuidados de Saúde Primários (CSP). Os médicos de família estão em posição privilegiada para permitirem e facilitarem o acesso dos seus utentes a programas de prevenção secundária, como é o caso de rastreios adequados.6

O carcinoma colorretal (CCR) é um grande problema de saúde nos países industrializados e cumpre as condições exigidas para o rastreio de base populacional. A pesquisa de sangue oculto nas fezes (PSOF) é o teste mais usado e indicado para populações de risco médio. O principal objetivo do rastreio é reduzir a mortalidade por CCR detetando a doença em fase curável.7

Um estudo recente mostrou que o rastreio com PSOF imunoquímico resultou numa redução na mortalidade por CCR de 41% e de 22% na incidência após um seguimento médio de onze anos.8

Ao longo dos últimos anos temos assistido a um aumento regular da incidência da doença oncológica no nosso país a uma taxa constante de aproximadamente 3% ao ano, à semelhança do que também se passa no resto da Europa. Este aumento resulta do envelhecimento da população que, por sua vez, resulta do aumento da taxa de sucesso no tratamento tanto do cancro como de outras patologias, aumentando assim a probabilidade do aparecimento de novas neoplasias. Aliados a estes factos, estão também presentes as modificações dos estilos de vida com impacto significativo na incidência de cancro.

Além do aumento de incidência de cancro existem alterações na idade média dos doentes, no padrão de neoplasias e nas necessidades dos nossos doentes, com uma complexidade crescente, no contexto de multimorbilidade que nos preocupa e ocupará cada vez mais.

As causas evitáveis de cancro são de grande importância. O tabaco é a causa evitável mais importante. Outros fatores de risco conhecidos são áreas de intervenção importante no âmbito da educação em saúde dos cidadãos, entre os quais a exposição solar, opções alimentares, a obesidade, o consumo excessivo de álcool e algumas infeções, sobretudo víricas.

As intervenções que ajudem a reduzir a incidência de cancro em Portugal são a aposta de futuro. Tomar medidas, quer de prevenção primária de modo a promover comportamentos saudáveis com modificação de estilos de vida e concretização de programas de vacinação, quer de prevenção secundária com a implementação universal de programas de rastreio e diagnóstico precoce, são a única forma de mitigar a atual epidemia do cancro. Estes desafios pertinentes estão publicados no Programa Nacional para as Doenças Oncológicas,9 publicado pela Direção-Geral da Saúde em setembro de 2017. “O cancro tem uma importância cada vez maior em Portugal, mas o Serviço Nacional de Saúde tem sido capaz de responder ao aumento de necessidades dos nossos doentes”,9:4 pode ler-se nas conclusões do Programa.

As doenças oncológicas são a segunda causa de morte em Portugal, logo a seguir às doenças do aparelho circulatório. Mas o cancro é a causa de morte que mais subiu nos últimos anos.9 Não conheço nenhuma projeção das causas de mortalidade mas, na minha opinião, muito em breve teremos as doenças oncológicas como primeira causa de morte em Portugal, destronando as doenças do aparelho circulatório (Figura 1).

 

 

Os doentes oncológicos têm necessidades particulares quer clínicas, quer familiares, quer sociais e laborais. Importa enquadrar esta realidade e encontrar respostas para as necessidades das pessoas doentes e das suas famílias.

A variação do número de novos casos e dos óbitos por cancro ao longo das últimas décadas mostra uma linha ascendente em ambos os parâmetros. Todavia, a incidência tem crescido muito mais a do que a mortalidade.

Embora tenhamos cada vez mais casos de doentes com cancro, fruto do envelhecimento da população e da mudança de estilos de vida, há cada vez mais sucesso no tratamento deste grupo de doenças.

A incidência e a mortalidade relacionadas com cancro continuarão a aumentar. No quadro de conhecimento atual, a incidência de cancro aumentará para o dobro em menos de 50 anos. Espera-se, no entanto, que a mortalidade padronizada por idade não acompanhe o aumento de incidência e permita projeções menos assustadoras.

Os rastreios de base populacional dos cancros da mama feminina, do colo do útero e do cólon e reto são reconhecidos como úteis, à luz do conhecimento atual. É também consensual a importância de programas de controlo do tabagismo e da promoção de estilos de vida saudáveis, apesar de se saber que estes programas apenas têm efeitos a longo prazo.

Os rastreios de base populacional para doenças oncológicas têm vindo a consolidar o seu papel e a aumentar a área geográfica coberta, particularmente os rastreios dirigidos ao cancro da mama e ao cancro do colo do útero.9

Os rastreios oncológicos carecem, no entanto, de uma intervenção regional e local. As assimetrias são ainda notórias apesar do desenvolvimento e implementação nos últimos anos.

O número de mulheres convidadas e rastreadas para o cancro da mama tem vindo a aumentar sustentadamente, estando atualmente em 83% a taxa de mulheres convidadas.10

No caso do rastreio do cancro do colo do útero houve também um aumento significativo da cobertura do rastreio, estando atualmente em 76% a taxa de mulheres convidadas.10

O rastreio para o cancro colorretal é ainda incipiente, muito abaixo das necessidades, estando atualmente em 19% a taxa de utentes convidados.10

A cobertura dos rastreios de cancro tem assimetrias regionais, apesar de se atenuarem progressivamente as diferenças nos últimos anos. A correção destas assimetrias deve ser uma prioridade política para garantir equidade do rastreio oncológico e por isso se justifica e compreende a publicação do Programa Oncológico no recente Despacho do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde.11 É fundamental diminuir os cancros evitáveis e os diagnósticos tardios. A prevenção e o diagnóstico precoce são as estratégias possíveis para atenuar o impacto da doença oncológica nas pessoas e nas famílias.

Mas concentrar a atenção apenas nestes três programas é muito pouco para a dimensão do problema da doença oncológica. Apesar de todo o percurso já realizado e dos resultados alcançados, principalmente no cancro da mama e do colo do útero, parece óbvio que é necessário ir mais além no desenvolvimento de ações dirigidas à doença oncológica e ao doente com cancro.

A legislação nesta área teve algumas evoluções importantes nos últimos meses que importa rever. A publicação do Despacho n.º 8.254/2017, de 21 de setembro, do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde11 merece mais atenção e representa um primeiro passo para a orientação de soluções.

O Programa Nacional para as Doenças Oncológicas10 estabelece metas para 2020 muito claras, nomeadamente 100% de cobertura nacional para os cancros da mama, colo do útero e cólon e reto, definindo três áreas de intervenção pertinentes e óbvias (Figuras 2A e 2B).

 

 

Rastreios oncológicos

Alguns aspetos fundamentais do despacho n.º 8.254/2017, de 21 de setembro:

“[...] Importa assegurar a sua homogeneidade a nível nacional, procedendo-se à uniformização dos critérios de cada um dos programas de rastreio oncológico, garantindo-se assim um acesso equitativo.

[...] É necessário investir nos sistemas de informação [...] indicadores bem definidos e critérios de cálculo preestabelecidos e idênticos para todas as regiões [...] a melhoria na monitorização e a avaliação periódica...

[...] Determina-se:

5 — [...] Rastreio do cancro do colo do útero destina-se à população do sexo feminino com idade igual ou superior a 25 anos e igual ou inferior a 60 anos...

c) O teste primário é a pesquisa de ácidos nucleicos, dos serotipos oncogénicos, do vírus do papiloma humano (HPV), em citologia vaginal, a realizar de 5 em 5 anos;

f) As utentes que tiverem citologia negativa, com teste prévio positivo para o HPV, devem repetir a colheita no prazo de um ano.

6 — [...] Rastreio do cancro do cólon e reto destina-se à população de ambos os sexos com idade igual ou superior a 50 anos e igual ou inferior a 74 anos...

c) O teste primário é a pesquisa de sangue oculto nas fezes, pelo método imunoquímico, a realizar de 2 em 2 anos;

d) Aos casos positivos deve ser proposta a realização de colonoscopia total...

9 — [...] Garantido o acesso em tempo adequado às consultas hospitalares [...] de acordo com os Tempos Máximos de Resposta Garantidos (TMRG) no SNS.

10 — [...] Aplicação informática dedicada aos rastreios, de âmbito nacional, os convites para o programa, as exclusões ao programa, as adesões ao programa, os resultados dos testes primários, o encaminhamento subsequente do utente e os tempos em que as intervenções foram realizadas.

11 — [...] Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E. (SPMS, E.P.E.), proceder às adaptações necessárias nas aplicações informáticas que possibilite esse registo...

12 — [...] Direção-Geral da Saúde (DGS) deve assegurar a qualidade [...] realizar auditorias...

15 — [...] DGS, conjuntamente com as Administrações Regionais de Saúde, deve produzir um relatório anual de avaliação e monitorização dos rastreios oncológicos de base populacional com as atividades e resultados dos programas de rastreio, o qual é divulgado no sítio da Internet das instituições referidas, até 30 de abril do ano seguinte a que se reporta.

17 — [...] Adaptações necessárias aos novos programas de rastreio [...] implementadas até 31 de dezembro de 2018.”11

Conclusão

Promover a prevenção e o diagnóstico e tratamento das doenças oncológicas garantindo a equidade e a acessibilidade dos cidadãos é um desígnio do Serviço Nacional de Saúde e um imperativo ético dos médicos. Os CSP e as unidades de saúde de proximidade deverão encontrar espaço de intervenção ativa e efetiva, contribuindo de forma decisiva para minimizar a morbimortalidade da doença oncológica. Os médicos de família, inseridos em equipas multiprofissionais, podem e devem desenvolver programas de intervenção dirigidos às necessidades das pessoas e das famílias e devidamente orientados para os principais tipos de cancro.

É necessário apoiar o desenvolvimento de programas de intervenção em cada local. Apostando na proximidade e na rede de CSP que temos instalada e contando com as 1.127 unidades de saúde, onde se incluem as 249 Unidades de Cuidados na Comunidade, as USF e as UCSP, poderemos atingir as metas do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas10 previstas para 2020.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2. Downie RS, Fyfe C, Tannahill A. Health promotion, models and values. Oxford: Oxford University Press; 1990. ISBN 0192617397        [ Links ]

3. World Health Organization. Ottawa Charter for health promotion: an international conference on health promotion – The move towards a new public health, November 17-21, 1986. Ottawa: WHO; 1987.         [ Links ]

4. Pinto D, Corte-Real S, Nunes JM. Actividades preventivas e indicadores: quanto tempo sobra? [Prevention and performance indicators: how much time is left?] Rev Port Clin Geral. 2010;26(5):455-64. Portuguese

5. WONCA Europa, Pombal R, trad. A definição europeia de medicina geral e familiar (clínica geral / medicina familiar) [Internet]. WONCA Europa; 2002. Available from: http://www.woncaeurope.org/sites/default/files/documents/European%20Definition%20in%20Portuguese.pdf        [ Links ]

6. Hespanhol AP, Couto L, Martins C. A medicina preventiva [Preventive medicine]. Rev Port Clin Geral. 2008;24(1):49-64. Portuguese

7. Hamza S, Cottet V, Touillon N, Dancourt V, Bonithon-Kopp C, Lepage C, et al. Long-term effect of faecal occult blood screening on incidence and mortality from colorectal cancer. Dig Liver Dis. 2014;46(12):1121-5.         [ Links ]

8. Ventura L, Mantellini P, Grazzini G, Castiglione G, Buzzoni C, Rubeca T, et al. The impact of immunochemical faecaloccult blood testing on colorectal cancer incidence. Dig Liver Dis. 2014;46(1):82-6.         [ Links ]

9. Miranda N, Portugal C, Nogueira PJ, Farinha CS, Oliveira AL, Soares AP, et al. Portugal – Doenças oncológicas em números, 2015: Programa nacional para as doenças oncológicas. Lisboa: Direção-Geral da Saúde; 2016.         [ Links ]

10. Direção-Geral da Saúde. Programa nacional para as doenças oncológicas 2017. Lisboa: DGS; 2017.         [ Links ]

11. Despacho n.º 8.254/2017, de 21 de setembro. Diário da República. 2ª Série(183).

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Rui Artur Nogueira

E-mail: apmgf@apmgf.pt

 

Conflito de interesses

O autor declara ausência de conflitos de interesses.

Fontes de financiamento

O manuscrito não obteve nenhuma fonte de financiamento.

 

Recebido em 21-02-2018

Aceite para publicação em 01-04-2018

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