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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.35 no.6 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v35i6.12237 

RELATOS DE CASO

Relação médico-doente e raciocínio clínico na consulta com acompanhante: reflexão a propósito dum relato de caso

The doctor-patient relationship and medical reasoning and when consulting with a companion: a case report

Nuno Florêncio,1
https://orcid.org/0000-0001-6110-8566

Catarina Trindade,2
https://orcid.org/0000-0001-9762-9443

Tatiana Santiago2
https://orcid.org/0000-0003-2241-3087

1 Médico de Família e Grupanalista em treino. USF Gerações, ACeS Lisboa Norte.

2 Médica do Internato de Medicina Geral e Familiar. USF Gerações, ACeS Lisboa Norte.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

Introdução: A presença de acompanhantes nas consultas de medicina geral e familiar (MGF) é frequente; no entanto, as suas implicações não estão bem estudadas. A discussão deste caso clínico tem como objetivo refletir como a presença de acompanhantes na consulta pode interferir na relação médico-doente e no raciocínio clínico.

Descrição do caso: Doente de 33 anos, estrangeiro, apresenta-se com um quadro de agravamento da enxaqueca e crises suspeitas de epilepsia, com cerca de dois anos de evolução. Foi estudado em internamento de neurologia, sem diagnóstico estabelecido. Na consulta de MGF, devido à barreira linguística, a companheira por vezes falava pelo doente e descrevia episódios compatíveis com crises epiléticas. No entanto, aprofundando as queixas do doente, foram diagnosticadas perturbação depressiva major e perturbação de pânico. O doente respondeu favoravelmente à abordagem e ao tratamento, permitindo-lhe retomar a sua atividade profissional.

Comentário: A perspetiva generalista, biopsicossocial e centrada na pessoa permite ao médico de família identificar as queixas e o conjunto das queixas dos doentes, físicas e mentais, e interpretá-las no seu conjunto. No entanto, as implicações da presença de acompanhantes no raciocínio clínico deverão ser melhor estudadas.

Palavras-chave: Consulta com acompanhante; Relação médico-doente; Raciocínio médico.


 

ABSTRACT

Background: The presence of companions during general practice visits is frequent, although its impact is not completely established. The aim of this case report is to think over how the presence of companions may interfere in the doctor-patient relation and clinical reasoning.

Results: A foreign 33-year-old patient, presented with worsening migraine and seizure-like episodes, for about two years. He was extensively studied in Neurology without a clear diagnosis. In the general practitioner (GP) visit, due to the language barrier, his girlfriend frequently spoke for him and described the seizure-like episodes. Clarifying the patient’s complaints, he was diagnosed with major depressive disorder and panic disorder. The patient responded completely to our approach and to the prescribed medication. He returned to work.

Conclusion: The general practice, biopsychosocial and patient-centered perspective allow GPs to know all patients’ complaints and to interpret them accurately. However, the presence of companions and their impact on clinical reasoning and doctor-patient relation demand further researched.

Keywords: Consultation with a companion; Physician-patient relationship; Medical reasoning.


 

Introdução

A presença de acompanhantes na consulta de medicina geral e familiar (MGF) tem sido pouco estudada. A literatura internacional aponta que entre 16-39% das consultas de adulto incluem pelo menos um acompanhante e que cerca de 86% são familiares.1-2 Não existem estudos portugueses sobre o tema, mas tem sido frequente na consulta que familiares peçam para acompanhar utentes adultos.

A apresentação e discussão deste caso clínico tem como objetivo pensar como a presença de acompanhantes na consulta pode interferir na relação médico-doente e no raciocínio clínico.

Descrição do caso

Doente de 33 anos, sexo masculino, natural da Holanda, residente em Lisboa desde 2013, licenciado, em união de facto com companheira portuguesa. Dos antecedentes pessoais havia a destacar enxaqueca típica sem aura desde a infância, episódio depressivo major aos 25 anos de idade (desconhecendo-se o contexto e a terapêutica instituída) e gastrite crónica. Negou medicação habitual, hábitos de consumo de tabaco, álcool e drogas.

Recorreu pela primeira vez à consulta do médico de família (MF) em conjunto com a companheira, por agravamento progressivo dos episódios de enxaqueca, que se tornaram incapacitantes para a sua atividade profissional.

Havia a referir que, cinco meses antes, fora internado em neurologia para estudo de possíveis crises epiléticas focais. A nota de alta descrevia: “episódios de paragem de atividade acompanhada de palidez e sudorese e perturbação da consciência com duração de segundos (…), precedidos de sensação de aperto faríngeo, desconforto epigástrico e fenómenos visuais que caracteriza como ‘passagem de flashes coloridos e luminosos’ (sic) na periferia dos campos visuais bilateralmente. Após recuperar a consciência (…) [refere] aparecimento de cefaleia com características semelhantes às cefaleias habituais. Durante estes episódios, a companheira referia ausência de interação com o exterior, sem movimentos involuntários e recuperação do estado de consciência com lentificação psicomotora, recuperando totalmente ao fim de 15 minutos. Recorreu às urgências por aumento da frequência dos episódios de 2x/mês para 2-3 episódios por dia (…) [e] perda de peso de cerca de 10kg durante o ultimo ano”. O exame neurológico não revelou alterações, sendo colocada como hipótese diagnóstica crises epiléticas focais com alteração da consciência e foco provavelmente insular ou límbico. A ressonância magnética crânio-encefálica, punção lombar, EEG de vigília e sono com provas de startle, ecocardiograma, prova de esforço e avaliação analítica com serologias VIH e VDRL não revelaram alterações. Foi excluída a hipótese de epilepsia e encaminhado para a consulta externa de neurologia para controlo da enxaqueca. Foi medicado com amitriptilina 25mg/dia durante alguns meses, mas abandonou o seguimento por não haver melhoria dos sintomas.

Na consulta com o MF apresentou-se com aspeto pouco cuidado e expressão facial de tristeza. Pela dificuldade em falar português fluente pedia à companheira que explicasse as queixas. Apurou-se que as crises tinham surgido há cerca de dois anos, que a companheira descrevia como “paragens, ficava de pé, curvado, com a mão no peito ou no pescoço, não respondia a perguntas, nem se mexia” (sic) e os episódios duravam cerca de 15 minutos.

Face às dificuldades do doente em verbalizar as suas queixas, o MF pediu à companheira para dar apenas apoio como tradutora e fez perguntas dirigidas ao doente para aprofundar a anamnese e clarificar o quadro clínico:

1. “Lembra-se das perguntas da sua companheira durante as crises?” O doente recordava-se, pelo que a consciência estava preservada durante as crises, o que exclui o diagnóstico de crises epiléticas.

2. “Porque é que não respondia? O que é que sentia durante as crises?” O doente não conseguia falar porque apresentava queixas incapacitantes de aperto faríngeo, tremor distal, sudação, lentificação do pensamento. Integrando esta descrição com a comunicação não-verbal (aspeto pouco cuidado e expressão facial de tristeza), estas queixas eram compatíveis com sintomas físicos de ansiedade, colocando-se a hipótese de se tratar de crises de pânico num contexto de depressão. Uma vez que o doente não conseguia verbalizar as emoções que vivenciava durante os episódios, o MF colocou hipóteses com perguntas fechadas:

3. “Sentia-se muito mal nesses episódios? Tinha medo de morrer?” O doente concordou, o que aumentou a probabilidade de se tratar de crises de pânico.

Quanto ao contexto social apurou-se que em 2013 imigrou para Portugal, onde passou a ocupar um cargo profissional mais exigente, o que coincidiu com o agravamento inicial das enxaquecas e aparecimento das crises. No último ano deixou de praticar desporto e perdeu cerca de 10kg de peso. Descreveu os portugueses como “um povo triste, que convive pouco” (sic). Atendendo ao seu contexto de vida, o doente pontuou 233 na escala de Holmes e Rahe para avaliação de stress, pelo que apresentava um risco superior a 50% de adoecer.

Não apresentou outras alterações ao exame objetivo além das descritas.

Assim, a partir do quadro clínico da nota de alta (Figura 1) excluíram-se as interpretações da companheira (Figura 2) e repetiu-se a anamnese com o doente, clarificando as queixas, o contexto e a vivência da doença, o que modificou a compreensão do quadro clínico (Figura 3).

 

 

 

 

Foram colocadas como hipóteses diagnósticas mais prováveis: enxaqueca crónica diária, perturbação de pânico e perturbação depressiva major (seis critérios, segundo DSM-V). Os doentes com dificuldade em expressar as emoções (alexitímia) não referem queixas de humor depressivo, mas focam-se mais em queixas somáticas como agravamento de dores crónicas. Esta hipótese era congruente com a comunicação não-verbal como, por exemplo, o aspeto pouco cuidado, expressão facial de tristeza, irritabilidade e lentificação psicomotora. A anedonia pode surgir, nestes doentes, apenas como desinteresse em atividades de tempos livres e isolamento social. A lentificação psicomotora indicava tratar-se de um episódio depressivo major com critérios de gravidade.

Quanto a exames complementares de diagnóstico, era necessário esclarecer o agravamento das enxaquecas e as crises adrenérgicas. No internamento foram excluídas causas secundárias de enxaqueca, que é prevalente na população e o agravamento das crises pode surgir no contexto de episódios depressivos major e perturbação de pânico. Quanto às crises adrenérgicas (mal-estar, sudorese, tremor, aperto faríngeo, desconforto epigástrico), o diagnóstico diferencial inclui, por ordem de prevalência, a patologia cardíaca, pulmonar e a perturbação de pânico, seguidas de causas raras como o hiperparatiroidismo, hipertiroidismo, epilepsia do lobo temporal e feocromocitoma. No hospital foram excluídas causas neurológicas e cardíacas. O doente não apresentava queixas pulmonares, pelo que foi pedida apenas avaliação analítica que excluiu causas endócrino-metabólicas.

Prescreveu-se escitalopram 10mg, diazepam 5mg, celecoxib 100mg/dia e passou-se o certificado de incapacidade para o trabalho, com a perspetiva de retomar a sua atividade assim que melhorasse. Na reavaliação, passadas três semanas, tolerou bem a medicação, as crises de pânico remitiram completamente, mas a enxaqueca crónica manteve-se. O caso clínico foi discutido em reunião de consultadoria de psiquiatria e prescreveu-se topiramato 25mg/dia com titulação gradual até aos 100mg/dia, com diminuição da intensidade e do número dos episódios de enxaqueca, permitindo ao utente retomar o trabalho.

Comentário

Como pontos fortes do relato de caso há a destacar tratar-se duma descrição paradigmática das mudanças introduzidas na consulta pela presença de um acompanhante, ter-se realizado uma abordagem centrada no doente e no seu contexto biopsicossocial, com estudo exaustivo da pessoa como um todo e o efeito terapêutico da compreensão empática do caso. As principais limitações incluem tratar-se da descrição dum único caso clínico, com um curto período de follow-up.

A relação médico-doente tem sido estudada em consultas com o médico e o seu doente. Neste caso clínico procurou-se refletir sobre as particularidades da consulta quando o doente vem acompanhado. Em MGF não existem estudos nem orientações claras e fundamentadas sobre este tema. Quais são as vantagens e desvantagens? Que metodologia dever-se-á seguir? Devem ser a regra ou a exceção? Serão precisos mais estudos?

Consultas com acompanhante

Vários artigos da literatura defendem o envolvimento de familiares próximos nas consultas, especialmente se for da preferência do doente.1-2 Na formação dos médicos de família, este pressuposto tem também sido transmitido e sucede com frequência na prática clínica. Os motivos apresentados para a presença do acompanhante são: a ajuda com o transporte, fazer companhia, dar apoio emocional, ajudar a fornecer e pedir informação, participar na tomada de decisões e prestar cuidados.2 No entanto, estes artigos descrevem também sentimentos ambivalentes dos doentes quanto à presença de acompanhantes, referindo que por vezes existe uma comunicação excessiva entre o acompanhante e o médico. Os médicos descrevem também dificuldades, nomeadamente na seleção da informação clínica a discutir abertamente com acompanhantes e o receio de que os doentes se inibam de falar sobre assuntos mais íntimos.2-3 Uma revisão sistemática sobre comunicação e tomada de decisão nas consultas com acompanhantes aponta que os doentes se envolvem menos no seu tratamento, discutem menos assuntos e estão mais inibidos na comunicação.2 Em consultas de oncologia, os doentes acompanhados expressavam menos os sentimentos negativos e compreendiam menos os problemas de saúde.1

Do ponto de vista legal e clínico, devem estar presentes acompanhantes nas consultas de saúde infantil ou quando existe doença mental grave ou défice cognitivo.2 Nos restantes casos, a presença de um acompanhante pode comprometer pressupostos básicos da relação médico-doente, nomeadamente da liberdade de o doente falar de assuntos que deseja manter privados. O direito à privacidade está consagrado na Constituição da República Portuguesa, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A Lei n.º 15/2014, de 21 de março, que consolida os direitos e deveres do utente dos serviços de saúde, define como direitos fundamentais o direito à reserva da vida privada, com exceção do dos menores e incapazes.

A questão de preservar a relação médico-doente como um espaço em que a privacidade de cada doente é sempre garantida, é particularmente relevante quando estão presentes situações de dependência emocional e relações perturbadas. Certas situações apenas se clarificam em consultas individuais, em que o doente se pode queixar de ser vítima de violência (controlo, abuso, violência, tanto física como emocional) ou um padrão relacional patológico se torna manifesto pela reação do acompanhante ao pedido de o médico observar o doente em consulta individual.

No caso descrito, a dependência do doente para com a companheira, decorrente da dificuldade em expressar-se, não permitiu que o sofrimento mental se manifestasse claramente, o que induziu o raciocínio médico hospitalar no sentido da doença física. O doente nunca foi referenciado à consulta do MF ou psiquiatra. Apenas na consulta com o MF e com questões dirigidas ao doente, que o incentivaram a expressar-se, é que o sofrimento mental se tornou aparente.

A relação médico-doente e o raciocínio clínico em MGF

Sobre as consultas em MGF, McWhinney descreveu o efeito terapêutico da relação médico-doente, da pessoa se sentir escutada, compreendida, em que o médico está atento à comunicação não-verbal e se interessa pelas suas queixas.3 O método centrado no paciente começou a ser desenvolvido na década de 1950 por Carl Rogers, focando-se na importância da empatia, escuta ativa, congruência da comunicação verbal e não-verbal e uso de técnicas que facilitem ao doente explicar-se.4 Em 1964, Michael Balint reconheceu a importância da relação médico-doente no diagnóstico em clínica geral.5

Neste caso clínico procurou-se aplicar esta metodologia que é especialmente desafiante em doentes somatizadores. Concretamente, este doente apresentava dificuldade em expressar as suas emoções e o seu sofrimento psíquico. Procurou-se criar uma relação em que o doente sentisse que se podia queixar dos seus sintomas físicos, mentais e fragilidades relacionais e procurar ajuda. Nos primeiros momentos da consulta foi claro que a presença do acompanhante modificou a comunicação e a relação médico-doente tradicionais, com maior ênfase na perspetiva do acompanhante e nas queixas físicas mais facilmente expressas pelo doente, enviesando o raciocínio clínico. Trata-se de um processo complexo de observação, investigação, comunicação e interpretação.3

O processo de adoecer psíquico

Para compreender o processo de adoecer psicossomático, em 1977, Engel reconheceu a importância de identificar o contexto biológico, psíquico e social do doente.8 Neste caso clínico, a doença manifestou-se no contexto da emigração, dificuldade na adaptação às exigências de trabalho e isolamento social, que constituem fatores de risco para doença mental. Neste contexto foi fundamental questionar diretamente o doente acerca dos seus sentimentos e pensamentos relativos ao seu dia-a-dia para ponderar hipóteses diagnósticas prováveis, nomeadamente perturbações de ansiedade e depressão. Trata-se, no fundo, de perceber o impacto das mudanças de vida no doente e como a doença mental se desenvolveu.

Por outro lado, as doenças tanto físicas como psíquicas perturbam a pessoa, modificam a vivência do seu dia-a-dia e diminuem a disponibilidade para se relacionar. Neste caso clínico, os sintomas tornaram-se incapacitantes e impediram o doente de desempenhar as suas atividades profissionais e de relacionar-se.6-7 Foi neste contexto que procurou ajuda junto do MF. Neste sentido, tornou-se claro neste caso que, na abordagem destes doentes, é fundamental o clínico ter formação na abordagem em consulta dos aspetos psicológicos e sociais do adoecer, não desvalorizando as queixas, o contexto e o seu tratamento.5

Formulação e teste de hipóteses

Sobre o raciocínio médico, McWhinney descreve que, ao longo da consulta, o médico vai formulando e testando hipóteses com base nas queixas e sinais do doente (raciocínio hipotético-dedutivo).3 São formuladas habitualmente duas a cinco hipóteses, hierarquizadas segundo os critérios de maior probabilidade e gravidade. As hipóteses vão sendo testadas e reformuladas ao longo da anamnese, exame objetivo, exames complementares e resposta à terapêutica. No contexto da MGF, em que a prevalência de doença é baixa, também são baixos a sensibilidade, especificidade e valor preditivo da anamnese, exame objetivo e exames complementares. Como nem sempre é possível fazer um diagnóstico definitivo, a decisão médica poderá ser esperar, continuar a investigar, referenciar ou tratar empiricamente.

Em MGF procura-se observar o doente como um todo, desde o início da consulta. É possível que nos doentes somatizadores se possa cair em erros de raciocínio clínico que estão descritos na literatura, nomeadamente valorizar apenas as queixas físicas (valorizar excessivamente sinais ou sintomas particulares), não colocar como hipóteses a patologia mental (convergir prematuramente para uma outra hipótese) e não a tratar desde o início, com risco de pedido excessivo de exames além do recomendado (excesso de investigação, não pedir exames úteis). Será que se o doente tivesse recorrido numa primeira instância ao MF teria sido referenciado ao SU, internado e submetido aos exames que fez?

Fundamentação do diagnóstico diferencial do caso clínico

A enxaqueca é frequente (prevalência de 12%). Nos doentes com aumento do número de crises, nomeadamente enxaqueca crónica diária, a depressão major está presente em 24% dos casos [odds ratio (OR) de 19,3 sexo masculino] e a perturbação de pânico em 25-30% dos casos [risco relativo (RR) de 2,08-8,7].9-13 Sacks descreveu que, nas enxaquecas, um dos mecanismos psicossomáticos envolvidos é a manifestação da tensão emocional através de sintomas vegetativos e dores crónicas.10,14

A perturbação de pânico tem uma incidência em Portugal de 0,9%. Surge habitualmente entre os 20-30 anos de idade e na sequência de um ou de vários acontecimentos stressores. Caracteriza-se por crises paroxísticas de ansiedade, onde predominam sintomas adrenérgicos, com intensidade máxima aos 10 minutos, sem alteração da consciência.10,15-16

A prevalência do hiperparatiroidismo clínico foi estimada em 0,3%17 e do hipertiroidismo em 0,2%.18 Na epilepsia do lobo temporal, as crises parciais complexas cursam com sintomas adrenérgicos, mas existe sempre alteração da consciência e duram apenas um a dois minutos. A prevalência foi estimada em 0,07-0,1%, sendo superior nos doentes com enxaqueca (RR=1,79), mas neste caso clínico o doente estava consciente durante as crises, excluindo-se o diagnóstico de epilepsia do lobo temporal. O feocromocitoma é muito raro (incidência 0,8 por 100.000 pessoas-ano).19

Conforme descrito no caso e fundamentado nos parágrafos anteriores, como primeiras hipóteses na consulta com o MF foram colocadas a enxaqueca, a perturbação de pânico e a depressão major, que se tratam de patologias frequentes. Algumas hipóteses de doença física já tinham sido investigadas e excluídas no internamento, mas mesmo assim optou-se por excluir outras causas menos frequentes através de pedido de análises dirigidas ao hiperparatiroidismo, hipertiroidismo e feocromocitoma, que foram depois excluídas. A resposta favorável à abordagem em consulta e à terapêutica instituída em baixas dosagens veio também reforçar que as hipóteses colocadas estavam corretas.

Conclusão

Em MGF procura-se compreender os doentes numa perspetiva global, biopsicossocial e centrada na pessoa. No entanto, como este caso demonstra, a presença de acompanhantes pode modificar a relação médico-doente e o raciocínio clínico. Faltam diretrizes que orientem tecnicamente estas consultas e a relação que se deverá ter com os acompanhantes.

Neste caso procurou-se que o doente expressasse as suas queixas físicas e mentais; procurou-se clarificar o quadro clínico, distinguir as perspetivas individuais do doente e da companheira, colocar as hipóteses mais prováveis do ponto de vista clínico e epidemiológico, excluir outras causas menos frequentes e iniciar precocemente o tratamento da doença mental, que tende a tornar-se crónica e incapacitante.

Permanecem questões em aberto. Em que situações é benéfica a presença de um acompanhante? Como deve o médico relacionar-se com terceiros? Como salvaguardar os assuntos que o doente quer manter privados e podem ser fundamentais para o diagnóstico? Como tirar o melhor partido de outras perspetivas, além da do doente? Que aspetos podem ser prejudiciais nestas consultas e como os identificar? É fundamental que estas questões continuem a ser investigadas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Nuno Florêncio

E-mail: dr.nunoflorencio@gmail.com

 

Agradecimentos

À Dra. Luísa Carvalho (médica de família) e ao Dr. João Lorenzo (psicólogo clínico), pela revisão do artigo.

À equipa da USF Gerações, pela discussão do artigo em reunião multidisciplinar.

À Dra. Maria da Luz Antunes (documentalista da Biblioteca da ESTeSL), pelo acesso ao texto integral da maioria dos artigos citados.

Ao doente que deu o seu consentimento informado para a elaboração deste relato.

 

Conflito de interesses

Os autores declaração não possuir quaisquer conflitos de interesse.

 

Recebido em 14-10-2017

Aceite para publicação em 11-07-2019

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