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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.36 no.1 Lisboa fev. 2020

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v36i1.12705 

CARTA AO DIRETOR

Da transexualidade à disforia de género: protocolo de abordagem e orientação nos cuidados de saúde primários

From transsexuality to gender dysphoria: how to approach and to guide in primary health care

Tiago de Lima e Sara Antunes*

*Médicos Internos em Formação Específica de Medicina Geral e Familiar


 

Prezado Editor,

A identidade de género é um tema atualmente muito debatido em todo o mundo e, nos últimos anos, muitos avanços têm sido feitos no que diz respeito à defesa dos direitos e da promoção de saúde da comunidade LGBTQI+, nomeadamente em Portugal. Nesta carta gostaríamos de clarificar alguns conceitos e atualizar algumas informações redigidas no artigo Da transexualidade à disforia de género: protocolo de abordagem e orientação nos cuidados de saúde primários [Rev Port Med Geral Fam. 2019;35(3):210-22].

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem definido vários conceitos relativos à identidade de género, tendo um papel fundamental na sua despatologização (especialmente, a da transexualidade). Em junho de 2018, a Classificação Internacional de Doenças (ICD-11) reviu as questões de saúde associadas à sexualidade e retirou a entidade «transexual e identidades de género diversas» da categoria de doença mental e de comportamento. As novas categorias associadas à transexualidade podem ser encontradas no capítulo «Condições Relacionadas com a Saúde Sexual» e são: «Incongruência de género na adolescência e na idade adulta» e «Incongruência de género na infância». Esta despatologização feita pela OMS vem de encontro à necessidade de melhorar a acessibilidade dos utentes com disforia de género aos cuidados de saúde e à adoção de políticas e ambientes não discriminatórios.1

O conceito «transgénero» refere-se a pessoas ou comportamentos que desafiam as expectativas sociais em relação ao género (inclui pessoas transsexuais, intersexo e não-binárias e também comportamentos como crossdressing ou drag queens, entre outros). Por outro lado, uma pessoa «transsexual» é identificada como “pessoa que tem uma identidade de género incongruente com o sexo atribuído ao nascimento, e geralmente vive ou pretende viver socialmente de acordo com o sexo contrário ao atribuído ao nascimento - independentemente das intervenções médicas a que se tenha submetido ou que pretenda submeter-se”.2

Em Portugal, também em 2018, foi aprovada a Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, sobre o Direito à autodeterminação da identidade de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa. No capítulo II, artigo 6º, está descrita a simplificação do procedimento de alteração de nome e de mudança de sexo, apenas sendo necessário fazer um requerimento numa conservatória do registo civil. O requerente deverá ter mais de 18 anos de idade e ter uma identidade de género que não corresponda ao sexo atribuído à nascença. As pessoas com idades compreendidas entre os 16 e 18 anos poderão pedir a mesma alteração através dos seus representantes legais, apresentando uma declaração médica que ateste a vontade informada da pessoa para a mudança, sem referência a diagnósticos de identidade de género.3

Relativamente à referenciação dos utentes para consulta de sexologia hospitalar, de referir ainda que, em Lisboa, o encaminhamento poderá ser efetuado para a Consulta de Psiquiatria - Sexologia do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa e para o Hospital de Santa Maria. Esta consulta é realizada em equipa multidisciplinar entre psicologia, psiquiatria e endocrinologia. Apesar de não se realizarem cirurgias de reconfiguração genital nestes centros, estes possuem consultas especializadas que fazem acompanhamento e seguimento das diversas situações relacionadas com a identidade de género, disforia de género e a transexualidade.

Na sociedade portuguesa ainda existem marcadas dificuldades de acesso a cuidados de saúde para a comunidade LGBTQI+, demonstrado pelo estudo realizado pela Associação ILGA Portugal no projeto Saúde em Igualdade. Neste estudo é salientada a discriminação praticada pelos profissionais de saúde que se traduz na perpetuação de medo entre pessoas LGBTQI+ no momento de recorrerem a cuidados de saúde. Cerca de 39% dos utentes sentem necessidade de escolher o/a profissional ou serviço de saúde com o intuito de minimizar o risco de discriminação ou o tratamento desadequado e 31% prefere procurar serviços de saúde privados para que possa escolher o/a profissional que o/a atende, diminuindo o risco de ser discriminado/a.4 O Despacho n.º 7247/2019, publicado em agosto de 2019,5 estabelece as medidas administrativas que os estabelecimentos educativos devem adoptar, no sentido de prevenir e promover a não discriminação. Algumas destas medidas poderiam ser implementadas a nível dos cuidados de saúde (tanto a nível primário como a nível hospitalar), no sentido de promover melhor acessibilidade destes utentes. Uma das ações a levar a cabo poderia passar por formação sobre temáticas de género para profissionais de saúde, de forma a aumentar o número de pessoas LGBTQI+ que recorrem aos serviços de saúde, atualmente estimado em apenas 31%.4

Neste contexto, torna-se evidente que a liberdade para a expressão da identidade de género de cada indivíduo ainda é pautada por vários constrangimentos socioculturais. Estes constrangimentos deverão ser trabalhados num futuro próximo para que possa ser permitido o exercício efetivo do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais de cada pessoa, bem explícitos na Lei n.º 38/2018.3

Com os melhores cumprimentos,

Data: 20 de setembro de 2019

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. World Health Organization. WHO releases new International Classification of Diseases (ICD 11) [Internet]. WHO; 2018 [updated 2018 Jun 18]. Available from: https://www.who.int/news-room/detail/18-06-2018-who-releases-new-international-classification-of-diseases-(icd-11)         [ Links ]

2. ILGA Portugal. A lei da identidade de género [Internet]. Lisboa: ILGA Portugal; 2016. Available from: https://ilga-portugal.pt/ficheiros/pdfs/Folheto_Lei_Identidade_Gen.pdf         [ Links ]

3. Lei n.º 38/2018, de 7 de Agosto. Diário da República. 1ª Série;(151):3922-4.         [ Links ]

4. Pinto N, Côrte-Real P, Ramos M, Torres R. Saúde em igualdade: pelo acesso a cuidados de saúde adequados e competentes para pessoas lésbicas, gays, bissexuais e trans [Internet]. Lisboa: ILGA Portugal; 2018. ISBN 9789899559479. Available from: https://ilga-portugal.pt/ficheiros/pdfs/igualdadenasaude.pdf         [ Links ]

5. Despacho n.º 7247/2019, de 16 de agosto. Diário da República. 2ª Série(156):21-3.         [ Links ]

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