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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.36 no.4 Lisboa Aug. 2020

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v36i4.12989 

EDITORIAL

Aprendizagens de uma pandemia como oportunidade a não perder e ameaça a evitar

Rui Nogueira*

*USF Norton de Matos, ACeS Baixo Mondego.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Hoje, dia 27 de setembro, foi ultrapassado um milhão de pessoas vítimas de COVID-19 em todo o mundo. Com mais de 33 milhões de casos positivos para o SARS-Cov-2, um novo normal está a ser criado em todas as dimensões que sejam apreciadas nas diferentes comunidades em todo o mundo. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia COVID191 e recomendou “ações urgentes e agressivas” aos governos para mudar o rumo da situação.2 As consequências desta pandemia ainda são inimagináveis e ainda falta saber o que nos vai acontecer nos próximos meses, seja pela COVID-19 seja pelo seu efeito adverso sobre todos os doentes não-COVID-19!

Em Portugal foi declarado o estado de emergência pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, renovado pelos Decretos do Presidente da República n.ºs 17-A/2020, de 2 de abril, e 20-A/2020, de 17 de abril, prolongando-se até às 24 horas do dia 1 de maio. Ao estado de emergência seguiu-se o estado de calamidade até 30 de junho e depois o estado de alerta.

O desconfinamento em Portugal foi realizado em três fases, sucessivamente em 4 e 18 de maio e 1 de junho, sem repercussão epidemiológica apreciável na evolução da pandemia.

Estamos, desde 15 de setembro de 2020, em estado de contingência em todo o país para dar resposta às necessidades especiais das comunidades no início do Outono e perante o agravamento epidemiológico da pandemia na Europa e previsível em Portugal após a reabertura das escolas.

Com base nos dados dos boletins diários da Direção-Geral da Saúde (DGS), desde 3 de abril tivemos diariamente mais de 90% dos casos COVID-19 em isolamento no domicílio e seguidos essencialmente pelos médicos de família de cada unidade de saúde, de acordo com a Norma n.º 04/2020, de 23 de março, da DGS.3

Com base nos boletins diários da DGS, o número máximo de doentes internados em serviços hospitalares de cuidados intensivos foi atingido em 6 de abril, com 271 doentes, correspondendo a 2,3% dos casos ativos nesse dia. O número máximo de internamentos em serviços hospitalares foi atingido em 15 de abril, com 1.073 doentes internados, correspondendo a 6,1% dos casos ativos nesse dia.

As medidas decretadas pelo Governo e adotadas pela sociedade criaram novas dinâmicas nas unidades de saúde. Os centros de saúde desenvolveram planos de ação de modo a dar respostas organizadas, adaptadas e seguras para os seus doentes habituais, principalmente aos portadores de doença crónica e a grupos vulneráveis como crianças e mulheres grávidas.

No início da pandemia, em março de 2020, era já conhecido que a COVID-19 representava um risco para a população idosa e com doenças crónicas.2 Não é, pois, de estranhar que as medidas concretas para responder às exigências desta pandemia tenham que ser concentradas e muito dirigidas às pessoas idosas, aos seus cuidadores e a todos quantos trabalham nesta área.

Num estudo recente sobre mais de 20 mil doentes internados em 208 hospitais do Reino Unido por COVID-19, publicado recentemente no BMJ,4 é referida uma taxa de mortalidade de 26% entre os doentes internados e a admissão de 17% em cuidados intensivos com uma taxa de mortalidade de 32%. O estudo pretendeu estudar os fatores de risco associados à mortalidade e reporta-se ao período de 6 de fevereiro a 19 de abril 2020, com análise em 3 de maio, pelo que 34% dos doentes admitidos nos hospitais ainda estavam internados nesta data. A mortalidade é elevada e a idade do doente, o sexo masculino e as doenças crónicas, incluindo a obesidade, são os fatores de risco mais importantes.

Na nossa fase mais difícil da primeira vaga - segunda quinzena de março e primeira quinzena de abril - tivemos sempre taxas de internamento em unidades de cuidados intensivos superiores a 20%3 e, no final de março, tivemos vários dias com mais de 25% dos doentes internados em unidades de cuidados intensivos. Em 12 abril, a taxa de internamentos em cuidados intensivos começou a baixar, mantendo-se quase todos os dias entre 15% e 20% até ao início de julho e depois sempre abaixo de 15% dos doentes internados. Desde o início de setembro, em Portugal a taxa de doentes internados em unidades de cuidados intensivos varia entre os 14% e os 16%.

As pessoas residentes em lares correm maior risco de adquirir COVID-195 e, por serem idosos e portadores de doenças crónicas, serão doentes mais graves, com maior risco e maior letalidade.

Em Espanha,6 66% das pessoas que faleceram no início de junho residiam em lares, com 27.940 óbitos referidos nessa altura.

Em 2 de abril de 2020, os geriatras Nathan Stall e Samir Sinha relataram7 o que aconteceu num lar de idosos (Bobcaygeon’s Pinecrest Nursing Home) em Ontário, Canadá, como “um surto catastrófico de coronavírus que matou 14 residentes e um cônjuge visitante”. Com pelo menos 24 funcionários infetados, a tragédia é comparada a uma “zona de guerra”. Infelizmente não é um caso único e os autores referem haver problemas em mais de 600 lares de idosos no Canadá.

Em Ontário residem cerca de 14,6 milhões de pessoas (dados de 2019) e há cerca de 400 mil pessoas (2,7% da população) a residir em lares de idosos para cuidados de longa duração.7 A idade média dos residentes é de 82 anos e 61% destes doentes toma 10 medicamentos por dia. Cerca de 90% têm alguma forma de deficiência cognitiva e 64% têm demência, 80% tem doença neurológica, 40% necessitam de acompanhamento médico por doença aguda e a maioria das pessoas residentes nestes lares requer cuidados 24 horas por dia. No total são 629 residências dedicadas a pessoas dependentes. No entanto, é referido pela Ontario Long Term Care Association que cerca de metade destas residências têm instalações desadequadas e carecem de melhoria. Uma impressionante taxa de letalidade de 33,7% por COVID19 entre os residentes nos lares de Ontário é referida pelos geriatras Nathan Stall e Samir Sinha.7 Os idosos são frágeis e há maior probabilidade de apresentações atípicas, sem referência a tosse ou febre. “Durante um surto num lar de idosos no estado de Washington, quase metade de todos os residentes com teste positivo para COVID-19 não apresentaram sintomas no dia do teste.” Os surtos em residências de idosos podem facilmente tornar-se muito graves e merecem, portanto, uma atenção especial.

Em 1 de janeiro de 2018, a população da UE-28 foi estimada em 512,4 milhões de pessoas e a idade mediana da população era de 43,1 anos (40,4 anos em 2008). As pessoas com 65 anos ou mais representavam uma quota de 19,7% (um aumento de 0,3 pontos percentuais relativamente ao ano anterior e de 2,6 pontos percentuais em comparação com 10 anos antes). A Itália (22,6%) e a Grécia (21,8%) registaram as percentagens mais altas de população idosa, enquanto a Irlanda tinha a percentagem mais baixa (13,8%).8 Nesta referência, Portugal tinha 21,5% da população com 65 ou mais anos, um aumento de 3,8 pontos percentuais em relação a 2008 (17,7%).

Segundo dados do INE publicados na PORDATA9 e atualizados em 15 de junho de 2020, a população residente em Portugal em 2019 era de 10,288 milhões, sendo 2,262 milhões a população residente com 65 ou mais anos, o que representa 22,0% da população. Com 80 ou mais anos, a população residente em Portugal em 2019 era de 668,66 mil (6,5%).

Os doentes com 85 ou mais anos internados em hospitais em Portugal passou de cerca de 31 mil em 2000 para quase 120 mil em 2018,10 isto é, um aumento de cerca de quatro vezes em 18 anos. Em 2018, 43,1% dos utentes com alta de internamento nos hospitais portugueses tinham 65 ou mais anos (29,2% em 2000).10

A esperança de vida à nascença em Portugal foi estimada em 80,8 anos no triénio terminado em 2018, sendo 83,4 anos no sexo feminino e 77,8 anos no sexo masculino. Mas a estimativa de anos de vida saudável à nascença era de 58,6 anos, sendo mais baixa para as mulheres (57,5 anos) do que para os homens (59,8 anos). A expectativa de vida aos 65 anos em Portugal10 foi estimada em 19,49 anos para o total da população no triénio terminado em 2018, sendo respetivamente de 17,58 anos e de 20,88 anos para os homens e para as mulheres com a mesma idade.

Em 2018 e em comparação com os restantes países da UE-28, Portugal posicionava-se em 10.º lugar, com 7,3 anos de vida saudável aos 65 anos, um valor inferior em 2,7 anos em relação à média europeia que era de 10,0 anos. Por outro lado, Portugal era em 2018 um dos países da União Europeia com maior diferença entre a expectativa de anos de vida saudável aos 65 anos para homens e para mulheres (mais 0,9 anos a favor dos homens).10

O Grupo de Estudos de Saúde do Idoso (GESI) da APMGF, com base na informação disponível a 29 de março de 2020, elaborou um conjunto de recomendações,11 entendidas como medidas excecionais para rápida aplicação e dirigidas a residências de idosos. Estas recomendações refletem a preocupação do GESI perante a pandemia do COVID-19 e o seu impacto particular na população idosa residente em lares.

O Fórum Económico Mundial está a promover uma iniciativa de resposta à crise COVID-19 - The Great Reset12 -, salientando as inconsistências, inadequações e contradições de múltiplos sistemas (de saúde, financeiro, energia e educação). A iniciativa tem um conjunto de dimensões para construir um novo contrato social que honre a dignidade humana.

Estamos provavelmente perante uma oportunidade de desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde e de toda a arquitetura do nosso sistema de saúde. Parece necessário refletir e pensar num novo modelo residencial para idosos, tendo em conta a evolução demográfica dos últimos anos e a projeção já conhecida de envelhecimento populacional no futuro próximo. Conhecendo a necessidade de aumentar a lotação de residências de idosos, já elevada em muitos países europeus e ainda em crescimento em Portugal, tendo em conta o «novo normal», é inevitável iniciar o projeto de um novo modelo de residência, assistência e apoio aos idosos. O foco deverá ser a pessoa, numa abordagem humanista e digna, competente, adequada às necessidades e garantindo segurança.

As transformações vividas pelas comunidades em todo o mundo, com implicações evidentes em todos os setores de atividade, induziram e vão continuar a induzir profundas alterações na vida e nos projetos das pessoas e das organizações. Os hábitos de vida, os ritmos de trabalho, as relações sociais, as tradições culturais, as atividades desportivas, ou as simples opções de turismo e de lazer, em todos os setores de atividade, sem exceções, tiveram alterações profundas nos últimos seis meses. Mas nas áreas financeira, económica, laboral e política haverá muitas outras alterações. O problema de saúde conhecido hoje no início do Outono de 2020 vai muito para além da pandemia COVID-19. O Inverno demográfico que se vive há anos trará consequências em toda a organização social, com implicações muito para além da saúde e da atual pandemia.

Provavelmente será necessário repensar o ordenamento do território, estudar a demografia humana, desenvolver a política social e cultural, melhorar os transportes públicos, adaptar os aeroportos e programar as viagens e o turismo. Com profundas alterações previsíveis, em setores tão importantes e diversificados, como serão as alterações na área da saúde? O que é que vai mudar no setor da saúde? Nada vai ficar como antes!

O Serviço Nacional de Saúde adquire uma importância especial neste contexto de projeto de evolução e de investimento e é obrigatório reforçar a sua disponibilidade financeira e valorizar os recursos humanos, o seu principal património.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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10. Instituto Nacional de Estatística. Estatísticas da saúde 2018. Lisboa: INE; 2020.         [ Links ]

11. Grupo de Estudos de Saúde do Idoso. Recomendações para IPSS, lares e ERPI durante a fase de mitigação e resolução da pandemia COVID-19 [Internet]. Lisboa: Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar; 2020. Available from: https://apmgf.pt/wp-content/uploads/2020/06/vs87tnsm1585777276259.pdf        [ Links ]

12. World Economic Forum. The great reset [homepage]. World Economic Forum; 2020. Available from: https://www.weforum.org/great-reset/        [ Links ]

 

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