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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.36 no.5 Lisboa Oct. 2020

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v36i5.13017 

EDITORIAL

 

Telemedicina em medicina geral e familiar

Paulo Santos*
https://orcid.org/0000-0002-2362-5527

*Editor-Adjunto da RPMGF

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

A comunicação faz parte do quotidiano. E não apenas do nosso. A comunicação é um dos elementos fundamentais da vida, como a conhecemos.

Conseguimos encontrar mecanismos de comunicação efetiva em todas as espécies, permitindo a troca de informação nos mais variados contextos e objetivos. É a comunicação que permite o estabelecimento de redes de cooperação e de interação e que leva à sobrevivência e à evolução. Foi na comunicação que o Homo sapiens se diferenciou. O desenvolvimento é visível desde as antigas pinturas das cavernas há mais de 30.000 anos, retratando cenas da vida diária, às gravuras rupestres, mais elaboradas, aos símbolos pictóricos de desenhos alinhados numa história, até aos ideogramas onde os símbolos ultrapassam os objetos para representar ideias enquanto elaboração de inteligência superior. O passo seguinte foi a abstração da utilização do alfabeto e da construção das palavras tradutoras de uma verbalização como forma fundamental de comunicação. Ao mesmo tempo, mantivemos um instinto primitivo de comunicação neuroquímica dependente de cheiros, sensações táteis e perceções visuais e auditivas, que de tão entranhadas se mantêm inalteradas ou, como dizemos, genuínas, dominando inclusivamente sobre a comunicação verbal, como sabemos dos estudos de Mehrabian de 1967.1-2

O século XIX trouxe a possibilidade da comunicação à distância com o telégrafo, a telefonia sem fios e o telefone, e o século XX a televisão, os telefones sem fios e a Internet. No século XXI todo este conjunto tecnológico ocupa um lugar importante no dia-a-dia, operando uma revolução na forma como as pessoas comunicam umas com as outras. Os e-mails substituem as cartas, as mensagens instantâneas fazem parte do quotidiano, a televisão é interativa, as videochamadas vulgarizam-se, as redes sociais parecem impor-se às relações interpessoais.

Na medicina a revolução tecnológica abriu oportunidades muito interessantes nas áreas da telessaúde, como a educação para a saúde, a gestão dos comportamentos, a epidemiologia, a saúde ambiental e industrial e a gestão e política de saúde, da e-saúde, como o processo clínico eletrónico, a informação de saúde, os sistemas de suporte à decisão clínica e a prescrição desmaterializada e da m-saúde nos sistemas de suporte clínico, no apoio aos profissionais de saúde, na colheita remota de dados e nas linhas de ajuda.3 A tecnologia entrou no exercício da medicina de forma progressiva em múltiplos sistemas de apoio à clínica.

Com os constrangimentos motivados pela pandemia do COVID-19 em 2020, a revolução digital passou a um nível nunca visto. Perante a necessidade de evitar a transmissão do vírus nos espaços dos serviços de saúde, uma parte significativa da atividade assistencial foi transferida para sistemas de comunicação à distância. Telefone, e-mail e videochamadas substituíram em grande medida a habitual atividade assistencial. Nos cuidados de saúde primários, segundo os dados oficiais, em abril de 2020 registou-se uma diminuição das consultas presenciais e domicílios de 72% em relação ao período homólogo. No mesmo mês verificou-se um aumento de 103% na atividade não presencial. No total constatou-se uma diminuição de 19% da atividade no mês de abril que, entretanto, evoluiu para um aumento de 3% no mês de julho, apesar da diminuição ainda de 47% na atividade assistencial presencial e da diminuição dos recursos humanos provocada pelas situações de ausência ao serviço dos médicos afetados pela pandemia.

A telemedicina é definida em 1997 pela OMS como “a prestação de serviços de saúde, quando a distância é um fator crítico, por todos os profissionais de saúde usando tecnologias de informação e comunicação para a troca de informações válidas para diagnóstico, tratamento e prevenção de doenças e lesões, pesquisa e avaliação e para a educação contínua dos prestadores, respeitando o interesse de promover a saúde das pessoas e das suas comunidades”.4

Os seus benefícios têm sido largamente difundidos, apesar da heterogeneidade do perfil do doente para telemedicina5 e de a evidência produzida sobre avaliação económica se centrar mais na estimativa de custos e não tanto na análise de custo-efetividade.6

O recurso à comunicação à distância é conhecido nos cuidados de saúde primários, pese embora alguma dificuldade em quantificar a sua utilização. Granja e Ponte mostraram que 10 em cada 29 contactos com o médico de família são não presenciais, ocupando em média 13 minutos cada e incluindo a comunicação à distância com os utentes, com outros especialistas e com outros profissionais de saúde não médicos.7 No mesmo sentido, Gottschalk descreve a alocação média de cerca de uma hora por dia em contactos à distância com doentes e outros profissionais de saúde.8 O estudo de Chen refere que cerca de 20% do tempo dos médicos de família é alocado a atividades não assistenciais e que 67% desse tempo tem a ver com orientação clínica.9 Por seu turno, Baron (2010) refere que num dia típico um médico de família observa 18 doentes, faz 24 chamadas telefónicas, envia 17 e-mails e revê os resultados de 31 relatórios de laboratório ou imagem e 14 relatórios.10

Falta, no entanto, definir quem são os doentes que realmente poderão beneficiar desta abordagem e os que definitivamente não vão ter benefício. Como qualquer tecnologia de saúde, a avaliação depende das características da intervenção ao nível técnico e de segurança, da eficácia que demonstra, da efetividade que atinge, da razão de custo incremental que gera e do impacto ético, social, legal e político que provoca nas pessoas. E muito deste trabalho ainda não está feito para a especificidade da medicina geral e familiar, onde a comunicação e a proximidade são ferramentas basilares no ato médico, muitas vezes com caráter terapêutico intrínseco e onde a interação se prolonga no contacto do toque no exame objetivo e no cumprimento social.11 O desafio de conseguir distanciar a localização, mas manter a proximidade da relação, ainda não está consolidado e afasta-se das expectativas do doente em relação ao encontro clínico,12 com impacto no seu resultado. Há um tempo para cada decisão e um percurso para a alcançar. Respeitar esse tempo é defender a personalização de cuidados, com respeito pela autonomia e livre arbítrio. O percurso faz-se de pequenos passos sequenciais passíveis de serem integrados sem instabilizar a homeostasia da relação.

A crise do COVID-19 impôs um salto significativo sem tempo de preparação. Apesar da falta generalizada de recursos foi possível em poucos dias operacionalizar um conjunto de respostas, recorrendo a meios pessoais colocados ao serviço das unidades e dos doentes. Esta resposta rápida alcançou bons resultados na comparação com outros países parceiros da União Europeia com uma taxa de letalidade controlada, serviços de saúde funcionantes sem saturação e manutenção da continuidade da assistência aos doentes em ambulatório. A sustentabilidade a longo prazo implica o investimento na criação de condições tecnológicas, organizativas, legislativas e políticas, a par de recursos humanos suficientes e com formação adequada.

A revolução digital instalou-se definitivamente na medicina, somando às numerosas soluções já existentes a comunicação digital numa nova forma de contacto entre o médico e o doente. Como qualquer evolução, a comunicação digital passa por sucessivas fases de difusão, desde o desenho do conceito à experimentação e à investigação até à fase de estabelecimento. Neste tempo de emergência passou-se muito rapidamente à fase de utilização, mas é fundamental refazer os passos perdidos para poder consolidar a tecnologia, ponderando o benefício e o custo, os ganhos e as perdas e definindo as suas indicações, as suas não-indicações e as suas contraindicações, de forma a otimizar a sua aplicação como instrumento de apoio à consulta, local único da interação complexa verbal e não verbal entre médico e doente, cada um com o seu papel e ambos com o mesmo objetivo ancestral de curar algumas vezes, aliviar quase sempre e consolar sempre.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Mehrabian A, Ferris SR. Inference of attitudes from nonverbal communication in two channels. J Consult Psychol. 1967;31(3):248-52.         [ Links ]

2. Mehrabian A, Wiener M. Decoding of inconsistent communications. J Pers Soc Psychol. 1967;6(1):109-14.         [ Links ]

3. Bashshur R, Shannon G, Krupinski E, Grigsby J. The taxonomy of telemedicine. Telemed J E Health. 2011;17(6):484-94.         [ Links ]

4. World Health Organization. A health telematics policy in support of WHO’s Health-for-all strategy for global health development: report of the WHO Group Consultation on Health Telematics, 11-16 December, Geneva, 1997 [Internet]. Geneva: WHO; 1998. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/63857        [ Links ]

5. Rajan B, Tezcan T, Seidmann A. Service systems with heterogeneous customers: investigating the effect of telemedicine on chronic care. Manag Sci. 2019;65(3):1236-67.         [ Links ]

6. Dávalos ME, French MT, Burdick AE, Simmons SC. Economic evaluation of telemedicine: review of the literature and research guidelines for benefit-cost analysis. Telemed J E Health. 2009;15(10):933-48.         [ Links ]

7. Granja M, Ponte C. O que ocupa os médicos de família? Caracterização do trabalho médico para além da consulta [What keeps family doctors busy? A description of medical work beyond patient encounters]. Rev Port Med Geral Familiar. 2011;27(4):388-96. Portuguese

8. Gottschalk A, Flocke SA. Time spent in face-to-face patient care and work outside the examination room. Ann Fam Med. 2005;3(6):488-93.         [ Links ]

9. Chen MA, Hollenberg JP, Michelen W, Peterson JC, Casalino LP. Patient care outside of office visits: a primary care physician time study. J Gen Intern Med. 2011;26(1):58-63.         [ Links ]

10. Baron RJ. What’s keeping us so busy in primary care? A snapshot from one practice. N Engl J Med. 2010;362(17):1632-6.         [ Links ]

11. Allen J, Gay B, Crebolder H, Heyrman J, Svab I, Ram P. The European definition of general practice/family medicine [Internet]. In: SemFYC, EURACT. Barcelona: WONCA; 2011. Available from: https://www.woncaeurope.org/file/520e8ed3-30b4-4a74-bc35-87286d3de5c7/Definition%203rd%20ed%202011%20with%20revised%20wonca%20tree.pdf

12. Sobczak K, Leoniuk K, Janaszczyk A, Pietrzykowska M. Patients’ expectations as to doctors’ behaviors during appointed visits. Health Commun. 2017;32(4):517-9.         [ Links ]

 

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