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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.37 no.1 Lisboa fev. 2021  Epub 01-Jan-2021

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v37i1.12660 

Opinião e debate

Visita aos sem-abrigo

Visiting the homeless people

Inês Carvalho Gonçalves1 
http://orcid.org/0000-0001-9100-9497

António Freitas Silva2 

1. Centro de Saúde Zona Leste - Centro de Saúde Santo António da Serra, SESARAM E.P.E., RA Madeira. Portugal.

2. Centro de Saúde Funchal Zona 1 - Centro de Saúde de Santa Isabel, SESARAM E.P.E., RA Madeira. Portugal.


Resumo

A rua ainda é morada de muita gente. A questão esquecida e poucas vezes colocada é o porquê. Concluímos prontamente que são pessoas em condições precárias e associamos a rua à pobreza. Mas esquecemo-nos frequentemente de uma questão fundamental: a saúde mental. Enquanto internos de medicina geral e familiar, a estagiar na Clínica 3 - Serviço de Psiquiatria Geral e Transcultural do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), tivemos oportunidade de contactar com esta realidade, acompanhando a equipa liderada pelo Dr. António Bento. Com esta experiência concluímos que este é um problema que também está nas nossas mãos. No entanto, para prevenir e atuar é necessário conhecer a realidade e, acima de tudo, perceber que a questão dos sem-abrigo é muitas vezes mais que uma problemática social, sendo também uma questão de patologia psiquiátrica.

Palavras-chave: Sem-abrigo; Saúde mental.

Abstract

The street is still home to many people. The forgotten and rarely asked question is why. We readily conclude that they are people in precarious conditions, and we associate the street with poverty. But we often forget a fundamental issue, mental health. As residents of general and family medicine, during our internship at Clínica 3 - Serviço de Psiquiatria Geral e Transcultural of the Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), we had the opportunity to observe this reality more closely, accompanying the team led by Dr. António Bento. With this experience we conclude that this is a problem that is also in our hands. However, to prevent and act it is necessary to know the reality and, above all, to realize that the issue of homelessness is often more than a social problem, being also a matter of psychiatric pathology.

Keywords: Homeless; Mental health.

A definição de «sem-abrigo» não está bem estabelecida, sendo ainda alvo de controvérsia. Contudo, segundo a Estratégia Nacional Para a Integração de Pessoas em Situação Sem-Abrigo (ENIPSSA), define-se pessoa sem-abrigo como “aquela que, independentemente da sua nacionalidade, origem racial ou étnica, religião, idade, sexo, orientação sexual, condição socioeconómica e condição de saúde física e mental, se encontre: sem teto, a viver no espaço público, alojada em abrigo de emergência ou em local precário; ou sem casa, encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito”.1

Após a introdução ao conceito há uma série de temáticas sobre as quais devemos refletir. A primeira de todas, o porquê de se ser «sem-abrigo». E se, tão depressa o conceito é associado à pobreza extrema de quem tudo perde e de quem nunca teve, a questão da patologia psiquiátrica como pilar do problema é, na maioria das vezes, esquecida. A patologia mental é um enorme fator de risco para a condição de sem-abrigo. Acredita-se que, a nível mundial, 25% da população sem-abrigo apresenta patologia mental grave. No Reino Unido, de acordo com um estudo realizado em 2014, 80% dos sem-abrigo reportou ter problemas do foro mental, sendo 45% diagnosticados com patologia psiquiátrica.2 Em Portugal, de acordo com dados estatísticos da Segurança Social, em 2013 estavam registados como em situação ativa de sem-abrigo 4.420 pessoas.3 Segundo o Plano Nacional de Saúde 2004-2010, mais de 90% dos sem-abrigo apresentavam patologia psiquiátrica. Com base num estudo feito por Bento e Marmeleiro em 1989, num albergue para sem-abrigo em Lisboa, 83% dos indivíduos apresentavam um diagnóstico psiquiátrico, sendo 34% psicoses (destas, 24% esquizofrenia), 24% alcoolismo, 20% perturbações de personalidade, 12% perturbação depressiva e 10% toxicodependência.

Como internos de medicina geral e familiar a estagiar na Clínica 3 - Serviço de Psiquiatria Geral e Transcultural do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), tivemos oportunidade de acompanhar a equipa médica desta clínica, liderada pelo Dr. António Bento, em duas visitas de rua noturna aos sem-abrigo. Grande parte da atividade deste serviço concentra esforços numa psiquiatria de inclusão, nomeadamente com o Grupo Psicoterapêutico Aberto, que conta já com uma representação nos mesmos moldes em Roma e com a Consulta Aberta ao Mundo, que funciona como uma porta-aberta a estes utentes, podendo usufruir de consulta de psiquiatria mesmo sem marcação prévia.

Nas saídas de rua contactámos com uma realidade tantas vezes esquecida e até escondida, entrevistámos várias pessoas em situação de sem-abrigo e ficámos a conhecer parte das suas histórias e problemas. Percebemos que os conceitos que trazemos, pré-concebidos, muitas vezes não são reais e concluímos que, de facto, não sabíamos muito do assunto ou mesmo nada.

  • J.P. é sem-abrigo há 20 anos, a sucata é a sua fonte de rendimento, trocando ferro por alimento. Não está muito disposto a ser incomodado, mas partilha o seu conceito de liberdade. Vive na rua e dela não quer sair, apesar de oferecida a possibilidade de um alojamento, que não aceita. Não quer regras, apenas as suas, tem o seu canto e diz-se feliz.

  • A.F. vive na rua há dois anos, deitada e enrolada até ao nariz mal nos levanta o olhar. Tem uma filha, mas não sabe dela; contudo, não parece dar muita importância. Trabalha como empregada, mas os patrões não lhe sabem a condição. Gostava de sair da rua, mas diz que ninguém ali lhe faz mal, recusando alojamento.

  • M.S. acampa no cimo de umas escadas, com o «estaminé» montado, isolado do mundo com os seus auriculares, a nada ligados, e uma garrafa de vinho debaixo do cobertor. Senta-se e dá-nos a palavra à vez, para nos contar a sua história. Diz não ser sem-abrigo, é turista em Lisboa e na rua tem liberdade.

Neste primeiro contacto, com estas três pessoas, enquadrámos o conceito de desafiliação - “libertação das constrições dos laços afiliativos estáveis”, sendo que o a condição de sem-abrigo também se define por desligamento da sociedade caracterizada pela ausência ou atenuação dos laços afiliativos que normalmente unem as pessoas a uma rede de estruturas sociais. Esta desafiliação é uma característica proeminente de inúmeros diagnósticos psiquiátricos e perturbações da personalidade.

Há quem já leva a rua em si, de forma tão intrínseca que se torna difícil perceber se não querem sair da rua ou se a rua não quer sair deles.

Visitámos instituições, como a Unidade Integrativa/Associação de S. Paulo, que apoiam estas pessoas num momento após alta hospitalar/saída da rua, fornecendo alojamento, alimentação e cuidados médicos em parceria com vários hospitais, permitindo uma reestruturação supervisionada de rotinas e organização do indivíduo. Outras instituições integram a estratégia Housing First,4 implementada em vários países da Europa, nomeadamente Portugal, com 80% de alojamento em um ano. Esta estratégia define-se como sendo uma estratégia de suporte intensivo que apoia pessoas sem-abrigo com necessidades complexas (doença mental severa e dependência de álcool ou drogas) nos seus alojamentos independentes. Muitos utentes tomam medicação psiquiátrica.

Até onde nos leva a patologia psiquiátrica? Nos cuidados de saúde primários temos à nossa responsabilidade famílias, com os seus problemas individuais, sociais, físicos, psicológicos e familiares. Na base da desafiliação há muitas vezes uma desestruturação familiar e uma dessocialização. É na fase da prevenção que reside o papel do médico de família, nomeadamente para reconhecer os sinais e referenciar os indivíduos de risco para uma rede de suporte multidisciplinar. Ainda, é também fundamental que identifiquemos a patologia psiquiátrica na nossa prática clínica, de forma a poder medicar, controlar e, quando necessário, referenciar à psiquiatria. A Clínica 3 do CHPL tem para oferecer: Psiquiatria de Rua; consultas de psiquiatria e de psicologia; Consultas Abertas ao Mundo; Grupo Psicoterapêutico Aberto, o qual integra já 1.427 doentes, sendo 725 sem-abrigo; e Internamento.

O médico de família encontra-se numa situação privilegiada e, sendo o gestor de cuidados de uma população, compete-lhe perceber que este problema não é um problema exclusivamente da Clínica 3, não é um problema exclusivamente da psiquiatria. É um problema também nosso, sendo exigido um olhar mais atento sobre esta situação.

Agradecimento

Gostaríamos de agradecer ao Dr. António Bento, na figura de diretor de serviço, pela possibilidade que nos proporcionou de integrar a equipa de rua, bem como aos restantes elementos da equipa, por nos terem possibilitado esta experiência.

Gostaríamos de agradecer à Dra. Filomena Mina pelo apoio na elaboração deste trabalho.

Conflito de interesses

Os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.

Referências bibliográficas

1. ENIPSSA. Estratégia Nacional Para a Integração de Pessoas em Situação Sem-Abrigo [homepage]; 2020. Available from: http://www.enipssa.pt/conceito-de-pessoa-em-situacao-de-sem-abrigoLinks ]

2. Mental Health Foundation. Mental health statistics: homelessness [homepage]. London: MH Foundation; 2019 [cited 2019 Jul 30]. Available from: https://www.mentalhealth.org.uk/statistics/mental-health-statistics-homelessnessLinks ]

3. Homeless World Cup Foundation. Global homelessness statistics [homepage]. HWC Foundation; 2019. Available from: https://homelessworldcup.org/homelessness-statisticsLinks ]

4. Housing First Europe Hub 2019 [homepage]. Available from: https://housingfirsteurope.eu/Links ]

Recebido: 02 de Agosto de 2019; Aceito: 03 de Janeiro de 2020

Endereço para correspondência Inês Carvalho Gonçalves E-mail: icgoncalves9195@gmail.com

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