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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versión impresa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.37 no.3 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Oct-2021

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v37i3.13261 

Editorial

Base social da saúde e ponderação de contexto na contratualização

Paula Broeiro-Gonçalves1 
http://orcid.org/0000-0002-5013-6171

1 Médica de Família. UCSP dos Olivais, ACeS Lisboa Central. Lisboa, Portugal.


A dissonância entre a contratualização nos cuidados de saúde primários (CSP), o desempenho das unidades de saúde e os resultados conduz a esta reflexão sobre a base social da saúde.1

No Relatório de Primavera de 2019 foram identificados alguns dos riscos da contratualização nos CSP: serem focados na doença e não na pessoa; excluírem a complexidade psicossocial; potenciarem a concentração desproporcionada de atenção e esforço dos profissionais em objetivos de curto prazo e/ou nos indicadores incentivados.2 As alterações à contratualização introduzidas em 2017 atenderam a algumas destas preocupações, das quais se realça a avaliação operacionalizada através de uma matriz multidimensional, o Índice de Desempenho Global (IDG), que conferiu sentido de flexibilidade. Apesar do empenho na definição da matriz de indicadores subsiste a utilização de instrumentos «imperfeitos», incapazes de avaliar hoIisticamente o desempenho numa atividade complexa, altamente dependente do contexto.2 Importa, assim, atender à base social da saúde global e integrá-la em todas as etapas da contratualização nos CSP.

A Organização Mundial da Saúde define como determinantes sociais de saúde (DSS) as “condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem [que] as quais são moldadas pela distribuição de rendimento, poder e recursos em níveis global, nacional e local”.3 Essas condições influenciam a oportunidade de uma pessoa ser saudável, o risco de adoecer e a expectativa de vida. A Healthy People 2030, ao definir DSS, dá-lhes uma perspetiva longitudinal e ambiental, como “condições nos ambientes em que as pessoas nascem, vivem, aprendem, trabalham, brincam e envelhecem que afetam uma ampla gama de saúde e qualidade de vida”.4 Habitualmente as iniquidades sociais em saúde - as diferenças injustas e evitáveis no estado de saúde entre os grupos da sociedade - são aquelas que resultam da distribuição desigual dos determinantes sociais.5-6

A base social da saúde refere-se ao peso dos fatores sociais e ambientais na saúde global do indivíduo, sabendo-se que na diversidade de fatores envolvidos o impacto dos fatores sociais e ambientais é muito superior (cerca de 80%) ao dos cuidados de saúde (cerca de 20%).1 Oferecer acesso universal7 a bons cuidados de saúde é, portanto, necessário, mas insuficiente para otimizar a saúde das populações e reduzir as iniquidades em saúde.8 Para melhorar a saúde, reduzir as desigualdades e reduzir os custos é preciso melhorar as condições em que as pessoas nascem, vivem, trabalham e envelhecem.8 Diderichsen explicita como a diferença na posição social é responsável pela iniquidade em saúde e se confunde com os determinantes sociais da saúde e com os processos sociais que moldam a distribuição desigual desses determinantes.9 Em síntese, mecanismos sociais, económicos e políticos dão origem a um conjunto de posições socioeconómicas, designado de gradiente social, em que a doença retroalimenta a posição social (e.g., doença mental, multimorbilidade). Existe maior probabilidade de ocorrerem mais doenças e mais graves em pessoas socialmente desfavorecidas.10

O gradiente social conhecido como o conjunto de posições que os indivíduos tomam na sociedade resulta do património transmitido no seio da família (disciplina, autocontrolo, pensamento prospetivo, respeito pelo espaço alheio).11 A pobreza, por exemplo, é um determinante da posição no gradiente social. A Associação Quarto Mundo, conjuntamente com a Universidade de Oxford, amplificou e expandiu a compreensão real do que significa a pobreza aos olhos de quem nunca a viveu. Uma das curiosidades que surgiu desta pesquisa sobre as dimensões ocultas da pobreza foi a transversalidade dessas dimensões entre culturas e países.12 Das nove dimensões da pobreza identificadas por este consórcio, a par das mais documentadas privações, como a falta de trabalho digno, rendimento insuficiente e inseguro, privação material e social, surgem seis outras dimensões ocultas:

As que constituem a experiência central de pobreza, como o sofrimento no corpo/mente/coração; o desempoderamento e a luta e resistência. As relacionais, que refletem o modo como as pessoas que não estão em situação de pobreza afetam a vida daqueles que estão: maus-tratos sociais, maus-tratos institucionais e não reconhecimento de contribuições sociais.12

Destacam-se as dimensões centrais da pobreza que se refletem no processo de saúde e doença, como o desempoderamento ou falta de controlo nas escolhas. Viver na pobreza significa vivenciar uma intensa experiência de sofrimento físico, mental e emocional acompanhado por uma sensação de impotência. As vidas são, ainda, encurtadas, porque a saúde física e mental é prejudicada por habitação precária de baixa qualidade, dieta inadequada e lutas diárias pela sobrevivência. Muitas pessoas na pobreza não podem praticar cuidados preventivos porque não têm acesso a alimentos saudáveis, sendo a desnutrição e a obesidade prevalentes. Problemas de saúde causados por múltiplas privações levam a sequelas físicas e emocionais, que conduzem à autonegligência ou ao comportamento adito como alívio do sofrimento. As experiências diárias de injustiça e desumanização afetam a autoestima e a capacidade de mudar.12

Os determinantes sociais muitas vezes confundem o esforço dos CSP para melhorar a saúde dos seus doentes. Apesar da evidência disponível em torno da medicina e da prevenção, ambientes insalubres e desigualdades sociais resultam em estilos de vida não saudáveis, deficiente utilização de serviços de saúde e autocuidados, acentuando desigualdades em saúde.1

O sistema de saúde torna-se particularmente relevante através da questão do acesso e do seu poder de mediação das consequências da doença na vida das pessoas. Não se pode, no entanto, ignorar que os sistemas de saúde podem também contribuir para o agravamento da desigualdade, quando pessoas com as mesmas necessidades não têm acesso aos mesmos recursos, o que se designa por desigualdade horizontal.10 Em contraponto, a desigualdade vertical significa que pessoas com maiores necessidades não dispõem de maiores recursos. Consequentemente, o que se considera equidade (uso igual em todos os subgrupos da população) é, na verdade, iniquidade.10 É, pois, necessária uma mudança de paradigma de cuidados de saúde, de centrados na doença para cuidados centrados na pessoa.10 De acordo com Barbara Starfield, a desigualdade está embutida nos sistemas de saúde - especialmente nos ocidentais, que subestimam os CSP ao basearem-se numa visão de necessidades de saúde centrada na doença e não na pessoa. Desperdiçam, por isso, a eficiência, o designado paradoxo dos CSP. Os CSP, quando comparados com os diferenciados, revelaram resultados semelhantes, com maior equidade e menor custo para «pessoas inteiras» e populações.13

O que terá que mudar? Terá que mudar a lente com que se observa a saúde global e, consequentemente, a organização dos cuidados e a contratualização.

Os determinantes sociais muitas vezes confundem o esforço dos CSP para melhorar a saúde da população que servem, sendo o investimento com maior retorno em saúde o efetuado nas condições de vida das pessoas. Operar uma mudança significativa na saúde da população pressupõe o desenvolvimento de trabalho colaborativo entre setores da sociedade para abordar os determinantes sociais e ambientais.1

Quanto à contratualização, por um lado, os reguladores deverão diminuir a sobrestimação do desempenho, dos serviços de saúde e dos seus profissionais nos resultados em saúde. Por outro lado, os próprios profissionais deverão aceitar o limite da sua intervenção e recentrar o modelo de contratualização em indicadores centrados na pessoa, com impacto na saúde, como o acesso e a qualidade de cuidados. A contratualização deverá, ainda, refletir o modelo biopsicossocial próprio dos CSP e espelhar a complexidade da realidade, sendo necessário que o IDG seja adequadamente ponderado/corrigido de acordo com o contexto. O grande salto qualitativo do IDG está, portanto, na capacidade de aumentar a sua «tolerabilidade» aos momentos do ciclo de vida da organização (e.g., ausência de profissionais) e adequar à especificidade da população, incluindo dimensões socioeconómicas (e.g., multiculturalidade, insuficiência económica).2

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Endereço para correspondência E-mail: paulabroeiro@gmail.com

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