Introdução
As cefaleias primárias constituem uma das patologias mais prevalentes em todo o mundo. (1)- (2 A enxaqueca corresponde a 69% das cefaleias primárias, tendo uma prevalência estimada de cerca de 15% e é uma das principais causas de incapacidade mundial. (1), (3)-(4 Estudos revelam que a perda de qualidade de vida dos doentes com enxaqueca é tão grave quanto a verificada na depressão e ainda mais severa do que a que ocorre em outras doenças crónicas, como a diabetes e a lombalgia. (5)-(6 A enxaqueca não é apenas um problema de saúde com enorme impacto a nível pessoal, mas também a nível socioeconómico, sendo responsável por um elevado absentismo laboral nos países ocidentais, com custos anuais médios na Europa estimados em 27 biliões de euros. (2), (8)-(9
Do ponto de vista terapêutico, a abordagem da enxaqueca divide-se em tratamento agudo e, nos casos em que o mesmo se justifique, tratamento profilático. Para o tratamento agudo utilizam-se geralmente analgésicos como os anti-inflamatórios não esteroides e triptanos. (9)-(10 O tratamento profilático, por sua vez, está recomendado se existirem mais de três episódios mensais de enxaqueca moderada a grave, se os sintomas persistirem mais de oito dias por mês, apesar de tratamento farmacológico otimizado, e se o doente é refratário ou tem contraindicações para realização de tratamento agudo. (11 A necessidade desse tipo de tratamento poderá estar associada a vários riscos, como o dos efeitos adversos e o da sobredosagem. (12 Neste contexto existem estratégias não farmacológicas complementares ou alternativas de tratamento que têm como objetivo melhorar o controlo da enxaqueca e, consequentemente, a capacidade funcional destes indivíduos, minimizando o risco de efeitos adversos do tratamento profilático farmacológico já referidos. (13 Assim, a prática de exercício aeróbico de intensidade moderada é sugerida como possível tratamento profilático, pois parece desempenhar um papel importante na modulação da dor, com possível efeito analgésico a curto e longo prazo, quer a nível central quer periférico. (11), (14)-(15
Nos últimos anos têm sido publicados vários estudos sobre o efeito do exercício físico na dor crónica. (16 Do mesmo modo, a última versão da Classificação Internacional de Cefaleias (ICHD-III) salienta a necessidade de rever os efeitos do exercício aeróbico na profilaxia da enxaqueca. (11), (17
Esta revisão tem como objetivo determinar a evidência do efeito do exercício aeróbico no controlo das crises de enxaqueca, nomeadamente na sua frequência, duração e intensidade da dor durante as crises.
Métodos
Em 2 de fevereiro de 2020 foi realizada uma pesquisa de normas de orientação clínica (NOC), artigos de revisão sistemática (RS), meta-análises (MA) e estudos originais (EO) em websites de medicina baseada na evidência, nomeadamente PubMed, National Institute of Health and Care Excellence (NICE), The Cochrane Library, British Medical Journal (BMJ), Canadian Medical Association Infobase e Centre for Reviews and Dissemination. Os termos MeSH utilizados foram migraine disorders e exercise. A pesquisa não foi limitada pela data de publicação, à exceção dos EO, dos quais apenas foram avaliados os artigos publicados a partir do ano de 2015, inclusive.
Foram incluídos os artigos de língua portuguesa, inglesa e espanhola realizados na população adulta (≥ 18 anos) com diagnóstico de enxaqueca (população). Os estudos incluídos deveriam ter um grupo submetido à prática de exercício físico aeróbico (intervenção), comparativamente a um grupo placebo/ausência de exercício aeróbico (comparação). O resultado medido (outcome) foi o efeito do exercício físico aeróbico na frequência, duração e intensidade das crises de enxaqueca (Tabela 1). Foram excluídos os artigos duplicados, EO incluídos nas RS e MA utilizadas, artigos que não respondiam ao modelo PICO bem como artigos com tipologias não passíveis de inclusão no presente trabalho (Figuras 1 e 2). A seleção dos trabalhos por título e resumo foi efetuada por dois autores de modo independente. Os artigos selecionados para leitura integral foram lidos por pelo menos dois dos autores para decidir a sua inclusão em caso de dúvida. A avaliação final da qualidade e nível de evidência dos artigos incluídos foi discutida e decidida por consenso entre todos os autores. A atribuição do nível de evidência (NE) e força de recomendação (FR) foi realizada com base na escala Strength of Recommendation Taxonomy (SORT), da American Academy of Family Physicians. (18
Resultados
Através da pesquisa realizada obtiveram-se 69 artigos: 16 RS e 53 EO. Após aplicação da metodologia acima descrita resultaram seis artigos, nomeadamente três RS com MA (Tabela 2), uma RS (Tabela 3) e dois EO (Tabela 4).
Revisões sistemáticas com meta-análises
La Touche e colaboradores19 concluíram que o exercício físico aeróbico pode diminuir a intensidade e a frequência das crises de enxaqueca, ainda que com baixa qualidade de evidência, uma vez que os estudos incluídos apresentaram heterogeneidade nas intervenções e nos tempos de follow-up e ainda, em dois deles, ausência de dupla ocultação [Darabaneanu et al., 2011; Lockett et al., 1992].
Lemmens e colaboradores11 demonstraram que o exercício aeróbico parece diminuir o número de dias das crises bem como a sua intensidade e duração. Estes resultados têm, no entanto, limitações, uma vez que os estudos incluídos eram heterogéneos (por compararem diferentes tipos de exercício), apresentavam follow-up inadequado (com elevadas taxas de abandono) [Darabaneanu et al., 2011 - 50%; Hanssen et al., 2017 - não descrito] e ainda ausência de dupla ocultação.
Luedtke e colaboradores20 concluíram que a prática de exercício aeróbico parece diminuir a frequência das crises, a intensidade da dor e a duração do episódio. Contudo, os estudos incluídos apresentavam amostras pequenas, alguns dos estudos não definiram a duração de cada treino, tendo havido ainda um follow-up inadequado.
Revisões sistemáticas
Gil-Martínez e colaboradores7 concluíram que, apesar de existir evidência limitada de que o exercício físico aeróbico tem efeitos benéficos na enxaqueca, este deve integrar a abordagem biopsicossocial do doente com esta patologia. Este estudo apresenta, porém, uma amostra reduzida, não especifica pormenorizadamente os critérios de seleção dos participantes, quem definiu o programa de exercício nem a percentagem de follow-up, apresentando, assim, fraca qualidade metodológica.
Estudos originais
Oliveira e colaboradores21 demonstraram que o exercício aeróbico reduziu a frequência das crises de enxaqueca no grupo de intervenção, com significância estatística. Este estudo apresentou um curto tempo de seguimento, não tendo sido possível verificar quais os resultados a longo prazo do exercício físico na prevenção da enxaqueca. Apesar de este estudo apresentar uma amostra de conveniência e um número de indivíduos com follow-up completo inferior a 80%, com uma adesão ao programa de exercícios no grupo de intervenção de 67%, revelou qualidade metodológica pelo facto de ser um ensaio aleatorizado, do diagnóstico de enxaqueca ter sido confirmado por um neurologista e da prática de exercício físico ter sido supervisionada por profissionais.
Bond e colaboradores22 descreveram que, contrariamente à hipótese inicial do estudo, não se verificou agravamento das características de enxaqueca quando ocorreu redução da prática de exercício físico. Concluíram, assim, não ter sido encontrada associação entre o tipo e duração do exercício físico praticado e as características da crise de enxaqueca. Contudo, descrevem que os resultados não poderão ser generalizados dadas as limitações da amostra, constituída essencialmente por indivíduos do género feminino, raça branca, com obesidade e que pretendiam perder peso. Defendem, assim, que existe a possibilidade da hipótese inicial se poder verificar, sendo necessário para isso a realização de novos estudos que avaliem a relação entre o exercício e as características da enxaqueca.
Conclusão
A maioria dos estudos selecionados demonstra que existe evidência, ainda que limitada, de efeito benéfico do exercício aeróbico no controlo das crises de enxaqueca. Além disso, não foram reportados efeitos adversos significativos que contraindiquem esta prática nos doentes com enxaqueca.
Os estudos incluídos apresentam, contudo, amostras pequenas e heterogéneas, nomeadamente em relação à data e critérios de diagnóstico da enxaqueca, ao género dos indivíduos e às patologias de base. Bond e colaboradores, por exemplo, incidem o seu estudo sobre a população de mulheres obesas, enquanto Oliveira e colaboradores excluem doentes com patologias cardiovasculares e metabólicas, o que dificulta a comparação dos resultados obtidos nos estudos.
Por outro lado, os artigos analisados não são homogéneos quanto aos critérios de diagnóstico da enxaqueca, tipo e duração do exercício físico aeróbico praticado, escalas para avaliação da intensidade de dor e aos períodos de intervenção e de follow-up. A maioria dos estudos refere ainda que seria necessário um período de seguimento mais prolongado para se avaliar os efeitos a longo prazo do exercício físico aeróbico no controlo das crises de enxaqueca.
Pelos motivos expostos, os artigos incluídos apresentam elevada heterogeneidade, pelo que foram classificados com um nível de evidência moderado a baixo. São, assim, necessários mais estudos, nomeadamente com maior uniformização metodológica, para que seja possível definir concretamente a duração adequada da intervenção (número de horas de exercício aeróbico por dia ou por semana), o tipo de intervenção efetuada (diferentes tipos de exercício aeróbico), os benefícios e os efeitos adversos a curto e longo prazo, e os subgrupos de doentes com enxaqueca que mais beneficiariam com esta intervenção. Seria ainda importante a definição de uma única escala de avaliação da intensidade da dor a ser utilizada em todos os estudos realizados, reduzindo-se provavelmente assim o risco de viés, conduzindo a que os resultados do efeito da intervenção fossem consequentemente mais fidedignos e comparáveis entre si.
Concluindo, apesar de se considerar necessária a realização de mais ensaios clínicos uniformes e com maior rigor metodológico para definir concretamente os efeitos a curto e longo prazo do exercício aeróbico nos doentes com enxaqueca, é possível recomendar a sua inclusão na abordagem profilática dos mesmos (FR B).