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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.38 no.1 Lisboa Feb. 2022  Epub Feb 28, 2022

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v38i1.12952 

Relatos de caso

CADASIL: a propósito de um caso clínico

CADASIL: a case report

Ana Luísa Corte Real1 
http://orcid.org/0000-0003-1345-7213

Sara Zeferino1 

1. USF Joane, ACeS Ave - Famalicão, Portugal.


Resumo

Introdução:

A arteriopatia cerebral autossómica dominante com enfartes subcorticais e leucoencefalopatia (CADASIL) é a doença de pequenos vasos cerebrais hereditária mais comum, causada por mutações no gene NOTCH3. As suas manifestações clínicas iniciam-se tipicamente em adultos jovens e incluem enxaqueca com aura, acidentes isquémicos transitórios (AIT) e acidentes vasculares cerebrais recorrentes, perturbações psiquiátricas e demência. O diagnóstico é estabelecido através de teste genético. Este relato de caso tem como objetivo alertar para esta entidade clínica, destacando a sintomatologia, diagnóstico, orientação e prognóstico.

Descrição do caso:

Mulher de 51 anos, avaliada em 2011 na sua unidade de saúde familiar por hipoestesia da hemiface e membro superior direitos. Ao exame neurológico apresentava diminuição da sensibilidade tátil do hemicorpo direito. Encaminhada para o serviço de urgência efetuou tomografia computorizada crânio-encefálica, que evidenciou leucoencefalopatia isquémica microangiopática, tendo tido alta, após reversão dos défices, com diagnóstico de AIT e medicada com ácido acetilsalicílico. Acompanhada em consulta de neurologia realizou ressonância magnética (RMN) cerebral que revelou leucoencefalopatia isquémica, tendo sido medicada com estatina. Apresentou mais três AIT até 2018, quando efetuou RMN cerebral que evidenciou lesões sugestivas de CADASIL. O estudo genético foi positivo. Atualmente com 60 anos, após múltiplos eventos isquémicos, a doente refere esquecimentos cada vez mais frequentes, dificuldades na nomeação e na fluência verbal, sendo evidente o declínio progressivo da sua cognição e a sua subsequente limitação funcional.

Comentário:

Não existe tratamento eficaz para a CADASIL. A sua abordagem consiste em aconselhamento genético, controlo de fatores de risco vascular e de sintomas. Representando um desafio diagnóstico, o médico de família poderá assumir um papel importante na sua suspeição, considerando o conhecimento privilegiado do indivíduo e sua família. Por último, o médico de família acompanhará o doente em todas as fases da evolução da doença, fornecendo-lhe o suporte necessário a ele e à sua família.

Palavras-chave: CADASIL; Recetor NOTCH3; Demência; Demência vascular; Leucoencefalopatias; Acidente vascular cerebral.

Abstract

Introduction:

Cerebral autosomal dominant arteriopathy with subcortical infarcts and leukoencephalopathy (CADASIL) is the most common inherited cerebral small vessel disease, caused by mutations in the NOTCH3 gene. Its clinical manifestations typically begin in young adults and include migraine with aura, recurrent transient ischemic attacks (TIA) and strokes, psychiatric disorders, and dementia. The diagnosis is established through genetic testing. This case report aims to alert CADASIL, highlighting the symptoms, diagnosis, guidance, and prognosis.

Case description:

A 51-year-old woman, was evaluated in 2011 at her family health unit for hypoesthesia of the right hemiface and upper limb. Neurological examination showed decreased tactile sensitivity in the right hemibody. Referred to the emergency department, she underwent cranioencephalic computed tomography which showed microangiopathic ischemic leukoencephalopathy, having been discharged after reversing the deficits, diagnosed with TIA, and medicated with acetylsalicylic acid. Accompanied by a neurology consultation, she underwent brain magnetic resonance (MR) that revealed ischemic leukoencephalopathy, and she was also medicated with a statin. He had three more TIA until 2018 when he underwent brain MR that showed lesions suggestive of CADASIL. The genetic study was positive. Currently, with 60 years old, and after multiple ischemic events, the patient reports increasingly frequent forgetfulness, difficulties in naming, and verbal fluency, with a progressive decline in her cognition and subsequent functional limitation being evident.

Comments:

There is no effective treatment for CADASIL. Its approach consists of genetic counselling, control of vascular risk factors and symptoms. Representing a diagnostic challenge, the family doctor may assume an important role in its suspicion, considering the privileged knowledge of the individual and his family. Finally, the family doctor will accompany the patient in all phases of the disease's evolution, providing the necessary support to him and to his family.

Keywords: CADASIL; Receptor, NOTCH3; Dementia; Dementia, Vascular; Leukoencephalopathies; Stroke.

Introdução

O acidente vascular cerebral (AVC) é uma patologia de causa multifatorial, ocorrendo na sua maioria de forma esporádica. Contudo, os fatores de risco de base genética têm-se revelado cada vez mais importantes na compreensão das doenças cerebrovasculares.1

A arteriopatia cerebral autossómica dominante com enfartes subcorticais e leucoencefalopatia (CADASIL, acrónimo para cerebral autosomal dominant arteriopathy with subcortical infarcts and leukoencephalopathy), identificada pela primeira vez na década de 90,2 é a doença de pequenos vasos cerebrais hereditária mais comum2-3 e uma causa importante de AVC em adultos jovens.1 É autossómica dominante e caracterizada por mutações no gene NOTCH3 (cromossoma 19).3 Os seus critérios diagnósticos foram sugeridos por Davous em 1998.4

Foram já identificadas famílias portadoras destas mutações em todo o mundo; apesar disso, faltam estudos que relatem a prevalência desta patologia,3 a qual tem sido estimada entre dois a cinco casos por 100.000 indivíduos,5-7 destacando-se no entanto o seu provável subdiagnóstico.2,5,7

A CADASIL cursa com uma angiopatia de pequenos vasos e capilares, não aterosclerótica e não amiloidótica, decorrente da acumulação de material granular osmeofílico (GOM) na camada média em torno das células de músculo liso. Apesar de ter apenas manifestações clínicas cerebrais, esta angiopatia também está presente noutros órgãos, como o baço, o fígado, os rins, a pele, no músculo e até na artéria aorta.2,8

As manifestações clínicas da CADASIL iniciam-se tipicamente em idade adulta jovem e incluem enxaqueca com aura, acidentes isquémicos transitórios (AIT), AVC recorrentes e perturbações psiquiátricas, conduzindo progressivamente a demência associada a distúrbios do equilíbrio e da marcha.3,8 Contudo, nem sempre é evidente uma história familiar positiva pela grande variedade de apresentações desta doença.3

Este relato de caso tem como objetivo alertar a comunidade médica para a existência desta patologia, destacando a sua sintomatologia, diagnóstico, orientação e prognóstico. Pretende-se com este relato destacar o importante papel do médico de família no diagnóstico precoce deste síndroma, pelo conhecimento privilegiado do utente e seu agregado familiar, proporcionando uma orientação atempada e adequada, bem como aconselhamento genético.

Descrição do caso

Mulher de 51 anos de idade, de raça caucasiana, com o sexto ano de escolaridade e cozinheira de profissão. Elemento de uma família nuclear em fase VII do ciclo de vida de Duvall e, segundo a classificação de Graffar, de classe social média (classe III). Como antecedentes pessoais apresentava hipotiroidismo, medicada com levotiroxina sódica 0,05mg por dia, e dislipidemia, sob medidas de intervenção no estilo de vida. Sem outra medicação habitual, hábitos etílicos ou tabágicos. No que concerne aos antecedentes familiares: o pai havia falecido aos 85 anos, com síndroma demencial desde os 80 anos; a mãe havia falecido aos 65 anos, desconhecendo a causa da sua morte; dos cinco irmãos uma tinha lúpus eritematoso sistémico. Sem antecedentes dignos de registo nos restantes familiares. Única filha, saudável.

A 03/03/2011 a utente recorreu a consulta aberta da sua unidade de saúde familiar por hipoestesia da hemiface e membro superior direitos com cerca de duas horas de evolução. Ao exame neurológico apresentava diminuição ligeira da sensibilidade tátil do hemicorpo direito, sem outras alterações detetadas ao exame objetivo. Foi encaminhada para o serviço de urgência (SU), onde efetuou tomografia computadorizada crânio-encefálica (TC-CE) (Tabela 1), que evidenciou leucoencefalopatia isquémica microangiopática (leuco-araiose). Após reversão dos défices, a doente teve alta com diagnóstico de AIT e medicada com ácido acetilsalicílico 150mg por dia, tendo sido orientada para consulta externa (CE) de neurologia.

Tabela 1 Tomografias computadorizadas cranioencefálicas efetuadas pela doente 

Foi acompanhada em CE de neurologia desde 04/2011. O estudo analítico revelou dislipidemia. Os ecocardiogramas transtorácico e transesofágico, eco-doppler dos vasos do pescoço e holter não mostraram alterações relevantes. Realizou RMN cerebral (Tabela 2), que apresentou leucoencefalopatia isquémica. Teve alta da consulta em 01/2014, medicada com ácido acetilsalicílico 150mg por dia e sinvastatina 20mg por dia.

Tabela 2 Ressonâncias magnéticas cerebrais efetuadas pela doente 

A 09/05/2016, com 56 anos, recorreu ao SU por episódio de parestesias na face, membros superiores e inferiores e disartria, já completamente revertidos aquando da avaliação médica. A doente havia suspendido dois dias antes o ácido acetilsalicílico por intervenção cirúrgica otorrinolaringológica a que iria ser submetida. Teve alta com diagnóstico de AIT, indicação para retomar medicação suspensa e encaminhada para CE de neurologia.

Nesse mês realizou em ambulatório TC-CE (Tabela 1), que revelou enfartes lacunares das regiões das artérias cerebrais médias bilateralmente. Foi também avaliada em CE de neurologia, tendo tido alta com indicação de substituir ácido acetilsalicílico por clopidogrel 75mg por dia.

Em 12/2017, aos 58 anos, recorreu ao SU por episódio de disartria com reversão espontânea, tendo tido alta com diagnóstico de provável AIT. Em ambulatório realizou ecocardiograma transtorácico, que estava normal, eco-doppler dos vasos do pescoço com fenómenos degenerativos ateroscleróticos difusos pelos eixos carotídeos bilateralmente, mas sem estenoses hemodinamicamente significativas, e holter com registo de raras extrassístoles supraventriculares.

A 21/02/2018 teve novo episódio de disartria, com cerca de uma hora de evolução, que foi revertendo durante a avaliação médica no SU. Com estudo analítico e eletrocardiograma normais efetuou TC-CE (Tabela 1), que revelou leucoaraiose moderada, lesão periventricular frontal esquerda provavelmente isquémica antiga e lesão isquémica antiga na substância branca frontal média direita. Com diagnóstico de AIT foi internada para realização de estudo etiológico, tendo tido alta orientada para CE de neurologia e de medicina interna, e com indicação de manter clopidogrel 75mg e sinvastatina 20mg. A RMN cerebral (Tabela 2), realizada a 01/03/2018, mostrou múltiplos focos de hipersinal no tronco cerebral, gânglios da base, tálamo, substância branca periventricular e subcortical bilaterais, tradutores de lesões isquémicas, bem como múltiplas lesões nos lobos temporais e ao longo das cápsulas externas, podendo sugerir CADASIL. Na angio-RMN não foram evidentes estenoses significativas e o eletroencefalograma encontrava-se normal. Em CE de neurologia, perante os achados imagiológicos, foi pedido estudo genético de CADASIL.

Em consulta com a sua médica de família, a 02/04/2018, referiu ter tido na semana anterior episódio de diminuição ligeira da força muscular do membro superior direito com duração de alguns minutos e reversão espontânea. Não procurou assistência médica, referindo encontrar-se assintomática desde então. Ao exame neurológico não apresentava alterações. Por apresentar um valor de colesterol LDL de 144mg/dL foi substituída sinvastatina 20mg por rosuvastatina 5mg e dada indicação para manter restante medicação em curso.

A 20/10/2018 recorreu ao SU por ligeira assimetria facial e diminuição da força do membro superior esquerdo, com um dia de evolução. Ao exame neurológico apresentava força muscular grau 4 no membro superior esquerdo e ligeiro apagamento do sulco nasolabial esquerdo, sem outras alterações. Realizou TC-CE (Tabela 1), que mostrou pequenas lesões vasculares hipodensas supratentoriais bilaterais na dependência dos pequenos vasos perfurantes bem como sinais de leucoaraiose. A doente foi internada, tendo-se verificado que o estudo genético de CADASIL havia revelado mutação no gene NOTCH3. Estava, assim, confirmado o diagnóstico de CADASIL. À data da alta, a doente já tinha recuperado a força do membro superior esquerdo, tendo mantido, no entanto, apagamento ligeiro do sulco nasolabial esquerdo.

Dois dias depois, em CE de neurologia mantinha, ao exame neurológico, discreto apagamento do sulco nasolabial esquerdo, discreta pronação à esquerda na prova braços estendidos, bem como reflexo cutâneo-plantar extensor à esquerda. Foram-lhe dadas explicações sobre a CADASIL, indicada manutenção da medicação em curso (clopidogrel 75mg e rosuvastatina 5mg), tendo sido também solicitada avaliação neuropsicológica.

A filha da doente, de 31 anos, assintomática e sem antecedentes pessoais de relevo, foi avaliada em consulta de neurologia com posterior encaminhamento para CE de genética para aconselhamento genético. Efetuou RMN cerebral, que revelou lesões da substância branca subcorticais frontais inespecíficas. Realizou teste genético, que revelou diagnóstico de CADASIL.

A doente foi avaliada em consulta de neuropsicologia, tendo referido alterações da memória, no entanto total autonomia para as suas atividades de vida diárias, não tendo sido identificadas perturbações do humor.

Em 03/2019 recorreu ao SU por episódio de parestesias do membro inferior direito e mão direita, que teria iniciado quatro horas antes e revertido enquanto aguardava na sala de espera, referindo ter tido na semana anterior episódios de parestesias das mãos e afasia motora que reverteram espontaneamente. À avaliação não apresentava défices neurológicos, tendo tido alta com diagnóstico de AIT e indicação de vigilância de sintomas.

A 05/01/2020 foi avaliada no SU por afasia motora com menos de uma hora de evolução. Ao exame neurológico não apresentava défices. Realizou TC-CE (Tabela 1), que revelou leucoencefalopatia periventricular e subcortical, bi-hemisférica, de natureza vascular, lacunas vasculares lenticulo-radiárias e talâmicas bilaterais. Efetuou também angiotomografia dos vasos do pescoço e do crânio que não mostraram alterações valorizáveis. Teve alta com indicação de manter medicação habitual.

Atualmente a doente tem 60 anos. É acompanhada em consultas de medicina geral e familiar, neurologia e medicina interna. Tem como medicação habitual clopidogrel 75mg, rosuvastatina 5mg e levotiroxina sódica 0,075mg. Desde 2018 que a doente tem vindo a referir esquecimentos cada vez mais frequentes, constantes dificuldades na nomeação e na fluência verbal. Tem sido evidente o declínio progressivo da sua capacidade cognitiva e a sua subsequente limitação funcional, aspetos que são totalmente compreendidos pela doente, que se tem vindo a mostrar algo deprimida com a situação. Encontra-se reformada desde 10/2019, após inúmeros certificados de incapacidade temporária para o trabalho, devido às alterações cognitivas e incapacidade funcional. Não obstante, tem-se mantido totalmente autónoma para as suas atividades de vida diária. Reside com o marido. A filha mantém-se assintomática até à data e ainda não planeou engravidar.

Comentário

A apresentação típica da CADASIL corresponde a um adulto jovem ou de meia-idade que apresenta AVC isquémico ou AIT de pequenos vasos e/ou demência precoce com leucoencefalopatia subcortical significativa.3

Em cerca de 40% dos doentes o sintoma inaugural é a enxaqueca com aura, habitualmente sensitiva ou visual e, em casos mais graves, podem ocorrer sintomas basilares ou hemiplégicos. Se, por um lado, a enxaqueca com aura pode ser o sintoma mais proeminente em algumas famílias, por outro, existe uma grande variabilidade individual na sua frequência, a qual pode variar desde um episódio durante toda a vida a vários episódios por mês.1-3,8-9

Os eventos vasculares cerebrais isquémicos, permanentes ou transitórios, são a manifestação inaugural na maioria dos doentes, bem como a característica mais comum da CADASIL, tendo sido reportados em cerca de 85% dos indivíduos sintomáticos. A idade média de aparecimento é entre os 45 e os 50 anos, na maioria das situações sem a associação de fatores de risco vasculares.2,8-9 Habitualmente os doentes experienciam múltiplos eventos isquémicos subcorticais, propiciando uma deterioração cognitiva progressiva que culmina num síndroma demencial, habitualmente dominado por sintomas frontais e alterações da memória.9 Os défices cognitivos correspondem à segunda manifestação clínica mais frequente da CADASIL e caracterizam-se pela diminuição das funções executivas, diminuição da agilidade mental, perda de memória e diminuição da atenção.2,10 A carga total dos eventos isquémicos, sintomáticos ou assintomáticos, está associada também com o desenvolvimento de incapacidade grave, distúrbios da marcha, incontinência urinária e paralisia pseudobulbar.2,8

Sintomas psiquiátricos podem estar presentes em 20 a 40% dos casos, sendo a sua frequência variável consoante as famílias.8 Geralmente correspondem a episódios de depressão grave, que ocasionalmente podem alternar com episódios maníacos. A apatia é outro sintoma comum na CADASIL e ocorre de forma independente da depressão.2 Mais raramente podem surgir outras manifestações psiquiátricas.8 Convulsões podem ocorrer em 5 a 10% dos doentes. As hemorragias intracerebrais têm sido raramente reportadas e estão maioritariamente associadas a hipertensão arterial.2,10

As manifestações clínicas da CADASIL podem surgir de forma isolada ou, mais comummente, de forma sucessiva, sendo possível traçar um perfil temporal típico. Assim, a enxaqueca com aura inicia-se pelos 30 anos, os eventos isquémicos e as alterações psiquiátricas entre os 40 e os 60 anos, a demência por volta dos 50 a 60 anos, dificuldades na marcha pelos 60 anos, ficando o indivíduo acamado, em média, aos 65 anos. A expectativa média de vida no sexo masculino é os 65 anos e no sexo feminino os 71 anos.2,8 Não obstante, alguns casos podem diferir significativamente deste padrão e a identificação e o tratamento dos fatores de risco modificáveis pode atrasar a idade de apresentação do primeiro AVC.7

A ressonância magnética (RMN) cerebral é essencial ao seu diagnóstico, evidenciando pequenos enfartes subcorticais e focos difusos de hipersinal na substância branca, inicialmente periventriculares e que posteriormente se vão tornando simétricos, maioritariamente na cápsula externa e na região anterior dos lobos temporais - localização altamente sugestiva de CADASIL. Estas alterações estão presentes em indivíduos sintomáticos e assintomáticos com a alteração genética.2-3,9

Apesar destas lesões neuroimagiológicas típicas, o diagnóstico apenas é estabelecido através da documentação de mutação no gene NOTCH3 ou da evidência de alterações ultra-estruturais características na biópsia de pele.2,8-9,11 O gold standard é o teste genético, com uma especificidade de 100% e uma sensibilidade de quase 100%. Contudo, até 5% dos doentes podem ter um teste genético negativo, pelo que, neste caso e perante alto nível de suspeição, deve ser feita biópsia de pele.12 A biópsia de pele pode revelar a presença de GOM nos pequenos vasos sanguíneos, com uma especificidade diagnóstica de 100% e uma sensibilidade variável entre operadores. Através de técnicas de imunocoloração pode ainda ser detetada a acumulação da proteína NOTCH3 nas paredes arteriais, com alta sensibilidade (85-95%) e especificidade (95-100%).11

Diversas patologias partilham com a CADASIL características clínicas, devendo-se atentar aos seus possíveis diagnósticos diferenciais. Ao contrário da esclerose múltipla, a CADASIL frequentemente apresenta na RMN lesões temporo-polares, geralmente poupa o nervo ótico e a medula espinhal, e o líquido cefalorraquidiano não possui bandas oligoclonais.8 Na arteriopatia cerebral autossómica recessiva com enfartes subcorticais e leucoencefalopatia (CARASIL) estão presentes sintomas extra-neurológicos, como espondilose e alopecia de início precoce, bem como lesões precoces na substância branca e na cápsula externa, caracterizando-se por mutações no gene HTRA1 (cromossoma 10q).8,13 Importa ainda diferenciar de outras leucoencefalopatias hereditárias, como a doença de Fabry, arteriopatia catepsina A-relacionada-AVC-leucoencefalopatia (CARASAL), doença de Krabbe, encefalomiopatia mitocondrial acidose láctica e episódios tipo AVC (MELAS), entre outros.8

No que respeita ao tratamento da CADASIL não existe nenhuma terapêutica efetiva ou modificadora de prognóstico.8,11 O desenvolvimento de um tratamento eficaz tem sido atrasado por várias incertezas quanto à sua patogénese, apesar de a sua etiologia ser bem conhecida. Não obstante, várias abordagens experimentais promissoras têm sido realizadas desde a descoberta de que a doença é causada por mutações que alteram a cisteína NOTCH3.11

A sua abordagem consiste em aconselhamento genético, prevenção secundária de eventos e controlo de sintomas. Os cuidados da medicina física e reabilitação e da psicologia poderão ter um papel importante.2,8 As estratégias de prevenção secundária englobam o controlo de fatores de risco vasculares, como a dislipidemia, controlo de peso, limitação de consumo etílico, uma dieta alimentar equilibrada e exercício físico regular.11 O tabagismo foi associado ao início mais precoce e maior de risco de eventos isquémicos e enxaquecas, pelo que a cessação tabágica é essencial. A hipertensão arterial predispõe a eventos hemorrágicos e acelera a progressão da doença.8,11 Contudo, a pressão arterial não deve ser excessivamente baixa, já que valores baixos foram associados ao aumento da incidência de demência nestes doentes. Também a diabetes deve ser adequadamente controlada, uma vez que se correlaciona com micro-hemorragias cerebrais.11 Para prevenção secundária de eventos isquémicos é geralmente recomendada a terapêutica antiagregante, apesar de ainda não ter sido provada a eficácia desta na CADASIL.2,8,11 Relativamente à prevenção primária, a terapêutica antiagregante tem sido debatida, ainda sem benefícios provados.8,14 Os anticoagulantes não são recomendados dado o risco de hemorragia cerebral.15 Relativamente às enxaquecas devem ser evitadas terapêuticas vasoconstritoras, como os triptanos e os derivados da ergotamina, considerando o seu potencial isquémico e o seu efeito deletério no endotélio capilar.11,15 O seu tratamento deve consistir em analgésicos, como paracetamol ou combinações fixas de paracetamol-aspirina-cafeína e antieméticos. Para a profilaxia da enxaqueca, para além de um estilo de vida saudável, podem ser utilizados os fármacos habitualmente utilizados neste âmbito, com precauções relativas aos betabloqueadores, amitriptilina, topiramato e flunarizina, uma vez que podem agravar os sintomas cognitivos e de humor.11 Verificaram-se efeitos benéficos em termos de profilaxia da enxaqueca com a acetazolamida16 e com a suplementação de vitamina B. Verificou-se que esta última, ao diminuir os níveis de homocisteína habitualmente elevados nos doentes com CADASIL, permite diminuir a gravidade e frequência das enxaquecas.17

As alterações decorrentes da CADASIL resultam numa significativa perda de capacidade funcional e qualidade de vida, com uma carga importante para o principal cuidador do doente e para a toda a família. Sendo uma doença devastadora, é importante o diagnóstico desta patologia e o aconselhamento genético tanto dos doentes como dos seus familiares. No estudo dos familiares deve ser incluída a realização de RMN, que pode revelar lesões extensas da substância branca, mesmo em assintomáticos.15

O diagnóstico de CADASIL deve ser considerado quando existe uma clínica típica (como AIT, AVC, défices cognitivos, enxaqueca, sintomas psiquiátricos, convulsões), principalmente se existir história familiar de AVC ou demência, ou quando presentes alterações típicas na RMN cerebral. Assim, perante esta possibilidade diagnóstica, o médico de família deverá referenciar o doente para neurologia e, eventualmente, para genética médica.

A CADASIL representa um desafio diagnóstico pelo seu espectro clínico, denotando-se a importância de uma boa anamnese e investigação familiar de demência e/ou AVC precoces. O médico de família assume, deste modo, um importante papel na sua suspeição clínica, pela posição privilegiada de conhecimento holístico, relação de continuidade com o seu utente e agregado familiar. Perante a irreversibilidade da patologia e dos défices, o médico de família terá de gerir as incapacidades tanto físicas como funcionais, bem como as alterações psiquiátricas subsequentes, apoiando também a adaptação necessária da dinâmica familiar.

Contributo dos autores

Ana Luísa Corte Real: estruturação do manuscrito, metodologia, redação do manuscrito original, revisão e edição do manuscrito. Sara Zeferino: estruturação do manuscrito, revisão do manuscrito.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

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Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 09 de Fevereiro de 2022

Endereço para correspondência Ana Luísa Corte Real E-mail: anabcortereal@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons