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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.38 no.1 Lisboa Feb. 2022  Epub Feb 28, 2022

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v38i1.13079 

Relatos de caso

Migração de dispositivo intrauterino: relato de caso

Migration of an intrauterine device: a case report

Maria José Correia1  , Médica Especialista
http://orcid.org/0000-0002-0886-5581

Ana Magro Lopes2  , Médica Especialista

1. Médica Especialista de Medicina Geral e Familiar. USF Jardins da Encarnação, ACeS Lisboa Central. Lisboa, Portugal.

2. Médica Especialista de Medicina Geral e Familiar. UCSP Beja, USLBA. Beja, Portugal.


Resumo

Introdução:

Os dispositivos intrauterinos (DIU) são um método contracetivo de longa duração, amplamente colocados por médicos de família e ginecologistas. Apesar de serem seguros e fiáveis existem possíveis complicações, como perfurações e abcessos associados à sua colocação. Na literatura estão descritos mais de mil casos de migração de DIU desde o útero até outras localizações, como o cólon sigmoide ou a cavidade peritoneal.

Descrição do caso:

Descreve-se o caso de uma mulher de 54 anos, natural da Guiné-Bissau, com dor pélvica e dispareunia recorrente desde há dez anos, tendo sido seguida em consulta hospitalar de ginecologia durante quatro anos. Nos últimos anos apresentava queixas irritativas urinárias, como disúria, polaquiúria e urgência miccional, com presença de hematúria, piúria e uroculturas positivas. Apesar do tratamento antibiótico dirigido, com vários ciclos de antibióticos, constatava-se recorrência das queixas, pelo que realizou ecografia ginecológica e vesical, onde se detetou uma formação hiperecogénica linear na bexiga, compatível com DIU. A utente foi encaminhada para o serviço de urgência de urologia, onde foi confirmado o diagnóstico e se procedeu à remoção.

Comentário:

Na literatura, praticamente todos os casos de DIU extrauterinos são descritos como consequência da migração dos mesmos. As utentes utilizadoras de DIU devem efetuar um controlo clínico regular e, ante a suspeita de DIU “desaparecido” numa mulher com dor pélvica, disúria ou infeções urinárias recorrentes, deve proceder-se sempre à realização de exames complementares de diagnóstico para descartar a hipótese rara, mas possível, da sua migração.

Palavras-chave: Dispositivo intrauterino; Migração

Abstract

Introduction:

Intrauterine contraceptive devices are a common method of long reversible contraception in women, widely inserted by general practitioners and gynecologists. Although being safe and reliable, these devices can lead to complications, such as perforation or abscess after insertion. There are over 1,000 cases described in the medical literature of intrauterine devices’ migration from the uterus to other locations, such as sigmoid colon or peritoneal cavity.

Case description:

We present the case of a 54 years old woman, from Guinea-Bissau, who presented with recurrent pelvic pain and dyspareunia, for 10 years. She was followed for four years in Gynecology. In the previous years, the patient had repeated and persistent dysuria and urinary urgency, along with positive urocultures and the presence of blood and leukocytes in urine. Despite the appropriate antibiotic treatment, the symptoms recurred. On further examination, gynecological and bladder ultrasounds were performed and a hyperdense structure compatible with an intrauterine contraceptive device was found inside the bladder. After referral to the Emergency Department of Urology, the diagnosis was confirmed and the intrauterine contraceptive device was then removed.

Comment:

In medical literature, almost all extra-uterine intrauterine devices (IUD) are due to migration. Patients with intrauterine devices ought to have regular follow-ups. If there is a suspicion of a “lost” intrauterine device, especially in a woman with chronic pelvic pain, dysuria, or recurrent urinary tract infections, a further radiologic examination is in order to rule out the rare, but possible, hypothesis of migration.

Keywords: Intrauterine device migration; Intrauterine device

Introdução

Os dispositivos intrauterinos (DIU) são um método contracetivo eficaz,1 de longa duração, amplamente colocados por médicos de família e ginecologistas, e representam o método de eleição de 14% das mulheres a nível mundial.2 Apesar de serem muito seguros, com poucos efeitos secundários, existem algumas possíveis complicações associadas à sua colocação, como perfurações e abcessos.3

Estão descritos na literatura mais de mil casos de DIU que migraram do útero até outras localizações, como o cólon sigmoide ou a cavidade peritoneal,4-5 devido a perfuração uterina aquando da colocação ou por migração espontânea. A migração transuterina transvesical espontânea de um DIU é uma complicação extremamente rara,6-7 estando descrito apenas outro caso em Portugal.8 A remoção endoscópica do corpo estranho é habitualmente a opção terapêutica escolhida.

Este caso tem como objetivo alertar para a possibilidade de migração do DIU e para a importância do seguimento regular das mulheres que escolhem este método contracetivo.

Descrição do caso

Relata-se o caso de uma utente de 54 anos, sexo feminino, natural da Guiné-Bissau e residente em Lisboa desde há 15 anos, casada, com o 6.o ano de escolaridade, pertencente a uma família nuclear na fase VI do ciclo de Duvall.

É observada pela primeira vez em agosto de 2010, na sua unidade de saúde familiar (USF), por algias pélvicas com dois meses de evolução, acompanhadas por dispareunia, irregularidades menstruais e corrimento vaginal acinzentado, homogéneo e com odor, compatível com vaginose bacteriana. Não tinha antecedentes pessoais de relevo, não fazia habitualmente medicação nem utilizava qualquer método contracetivo. Nos antecedentes obstétricos constavam dois partos eutócicos aos 20 e 22 anos e uma interrupção voluntária da gravidez com necessidade de curetagem uterina aos 24 anos.

Nesta primeira consulta é medicada empiricamente com óvulos vaginais de metronidazol 500mg durante cinco dias, assumindo-se o diagnóstico de vaginose e é solicitada uma ecografia ginecológica, que não apresentou alterações à excepção de uma formação anecogénica de contornos definidos, em relação com mioma de 6mm, não havendo menção a DIU.

Em fevereiro de 2011 volta à consulta por persistência das queixas e por apresentar disúria com alguns dias de evolução. A utente, na altura com 44 anos, estava a tentar engravidar há oito meses e trazia consigo análises pré-concecionais, que revelaram uma anemia normocítica e normocrómica (com uma hemoglobina de 10,9g/dL), hematúria microscópica, urocultura negativa e exsudado positivo para Gardnerela vaginallis. Ao exame objetivo apresentava-se com bom estado geral, abdómen sem alterações cutâneas, depressível, sem massas ou organomegalias, com dor à palpação profunda do hipogastro, sem defesa ou reação peritoneal, com Murphy renal negativo bilateralmente. Fez tratamento dirigido à presumível vaginose e repetiu a análise de urina, sendo esta negativa.

Durante o ano de 2012 recorreu em duas ocasiões à USF por dispareunia e, por manter queixas, foi referenciada ao serviço de ginecologia do hospital de referência, onde manteve seguimento durante dois anos e realizou ecografias ginecológicas que não revelaram alterações. Com o diagnóstico presuntivo de síndroma de dor pélvica teve alta hospitalar em fevereiro de 2015.

Em setembro de 2015, após três anos sem consultas na USF, é observada novamente pelo seu médico de família, no seguimento de alta do serviço de urgência por disúria e dispareunia. No serviço de urgência realizou urocultura, com resultado negativo, e urina II com vestígios de sangue. Por manter dispareunia repetiu ecografia ginecológica, que documentou apenas um pequeno mioma de 6mm no fundo uterino.

Entre 2015 e 2019 é consultada em consulta de dia em quatro ocasiões diferentes, sempre por infeções urinárias, com uroculturas positivas que foram medicadas com antibiótico.

Em novembro de 2019 recorre a consulta de planeamento familiar com hematúria, dispareunia, disúria e desconforto pélvico. Nessa consulta reitera as queixas e manifesta o seu desconforto com os sintomas de dispareunia e desconforto pélvico, que interferiam significativamente com a sua qualidade de vida. São solicitados exames complementares de diagnóstico, que traz à consulta em janeiro de 2020. A ecografia renal não revela alterações, mas na ecografia vesical é descrita a presença de formação hiperecogénica linear, compatível com um DIU. Ao questionar a utente descobre-se que tinha colocado um DIU de cobre há mais de 20 anos, na Guiné-Bissau, que nunca tinha sido retirado ou expulso e que a utente acreditava já não ter, devido à realização seriada de ecografias ginecológicas onde não se descrevia o dito dispositivo.

É encaminhada para o serviço de urgência de urologia, onde se confirma a presença do DIU alojado na parede da bexiga, que foi posteriormente retirado por cistoscopia.

Em outubro de 2020, em consulta presencial na USF, refere a resolução completa das queixas urinárias. A remoção do DIU migrado levou à resolução da dispareunia e das algias pélvicas, com melhoria franca da qualidade de vida e da vida sexual da utente.

Comentário

Na literatura praticamente todos os casos de DIU extrauterinos são descritos como consequência da migração dos mesmos e este caso pode enquadrar-se nessa situação. Como resultado da migração, o DIU pode alcançar a cavidade peritoneal e perfurar órgãos, causar aderências ou inflamação crónica.9

O mecanismo por detrás da migração é desconhecido, mas associa-se, em alguns casos, à presença de fatores de risco para a diminuição da espessura da parede uterina, como anomalias congénitas, infeções ou o pós-parto.10 Em 1973, Esposito e colaboradores11 postularam dois possíveis mecanismos de perfuração uterina. Segundo estes autores, a perfuração pode ser traumática e imediata no momento da colocação ou acontecer por erosão gradual do miométrio. A taxa de perfuração uterina secundária a DIU é de 1/1.000 DIU colocados, mas dado que a perfuração pode permanecer assintomática, a frequência real poderá ser superior à reportada.12

Nos casos dos DIU intravesicais podem encontrar-se livres ou na parede vesical. As mulheres podem apresentar-se com síndroma de dor pélvica, disúria, hematúria, corrimento vaginal ou infeções urinárias de repetição.9,13 Está descrita a formação de cálculos vesicais8 e todos os DIU devem ser removidos no momento do diagnóstico para diminuir as possíveis complicações.8,10,14

Antes de proceder à remoção de um DIU extrauterino, é necessário excluir a possibilidade de gravidez. A radiografia simples do abdómen permite localizar grosseiramente o DIU. Seguidamente, outros exames complementares deverão ser realizados, como TC abdomino-pélvica, para definir de forma precisa a localização e avaliar a presença de possíveis complicações.10,12,14 Os DIU intravesicais podem ser retirados por cistoscopia ou procedimentos suprapúbicos, devendo ser avaliada a necessidade de terapia antibiótica.14

No caso descrito não se conhece a causa da migração ou se houve perfuração no momento da colocação do DIU e não existe referência a sintomas até 10 anos após a colocação. Destaca-se o não pedido de ecografia renal e vesical para o estudo da hematúria, o que teria ajudado a obter um diagnóstico mais precoce, evitando a perda de qualidade de vida da utente e o consumo excessivo de consultas.

O médico de família é treinado para lidar com a incerteza diagnóstica.16 No processo diagnóstico baseia-se na anamnese e na prevalência da entidade na comunidade. Porém, este caso recorda que deve ter-se em atenção causas mais raras de uma situação comum, particularmente perante a persistência das queixas.

A pressão do tempo e da agenda, o contexto da consulta de dia, o desconhecimento da totalidade do processo médico do utente presencial, aliados a possíveis falhas na comunicação médico-utente, coloca os profissionais em risco de erro e de situações como a descrita. Neste caso, o diagnóstico tardio da situação pode dever-se ao facto de a utente ter sido maioritariamente observada em consulta de dia, por diferentes médicos que não o seu médico de família, o que pode ter dificultado a integração dos dados clínicos. Para evitá-lo deve-se recordar o essencial: a realização minuciosa da anamnese e o exame objetivo, a codificação adequada dos problemas abordados em consulta, a atualização constante da lista de problemas do utente e a revisão prévia do processo antes de cada consulta.

Como descrito no Modelo do Queijo Suíço, de Reason (2000),15 num modelo complexo como o Sistema de Saúde existem erros que podem ser prevenidos através da implementação de barreiras ou processos. Porém, cada processo tem falhas e, quando elas coincidem, ocorre o imprevisto ou, neste caso, prejuízo para o utente.

Em resumo, as doentes portadoras de DIU devem ser submetidas a acompanhamento clínico regular.10,14 Ante suspeita de DIU “desaparecido” numa mulher com dor pélvica, disúria, hematúria, corrimento vaginal ou infeções urinárias de repetição deve proceder-se sempre à realização de exames complementares12 para descartar a hipótese rara, mas possível, da sua migração.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Referências bibliográficas

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Recebido: 17 de Dezembro de 2020; Aceito: 06 de Outubro de 2021

Endereço para correspondência Maria José Correia E-mail: maria_jcorreia@hotmail.com

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