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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.38 no.1 Lisboa Feb. 2022  Epub Feb 28, 2022

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v38i1.13398 

Opinião e debate

Ética nos cuidados a pessoas idosas

Ethics in the care of the elderly

João Barreto1  , Professor aposentado
http://orcid.org/0000-0001-5892-2874

1. Professor aposentado de Psiquiatria. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Porto, Portugal.


Resumo

As pessoas de idade avançada apresentam na sua maioria múltiplas necessidades de cuidados médicos, de enfermagem e de outra natureza, conjugadas com situações de carência económica e social, a que importa dar resposta. A prestação de cuidados envolve muitas vezes problemas de natureza ética, que constituem desafios tanto para os cuidadores profissionais como para os informais e para a sociedade no seu todo.

O autor passa em revista os grandes princípios da ética biomédica, enfatizando a maneira peculiar como eles se aplicam aos pacientes idosos. Sublinha que esses princípios não são para ter em consideração só em casos excepcionais e complexos, mas também em situações comuns da vida quotidiana. Algumas vezes, tais normas podem estar em conflito como, por exemplo, quando o imperativo de agir sempre no melhor interesse do enfermo choca com o princípio da autonomia. Impõe-se então uma hierarquização de valores. Também as situações de défice cognitivo, dependência e incapacidade criam muitas vezes dilemas de difícil solução.

Por vezes, o profissional questiona-se quanto à qualidade de vida que se pode proporcionar ao idoso, particularmente quando ele sofre de demência e quando está na proximidade do fim da vida. Nem sempre é fácil aplicar as normas deontológicas em vigor a situações complexas e intrincadas. O autor recomenda uma abordagem prudente que tenha em conta as necessidades globais da pessoa, atendendo na medida do possível à vontade expressa ou presumível do paciente, à posição dos familiares próximos e à opinião dos vários membros da equipa.

Palavras-chave: Idosos; Ética; Autonomia; Demência; Qualidade de vida; Assistência terminal

Abstract

Most older people have multiple medical, nursing, and other care needs, combined with situations of economic and social deprivation, which need to be addressed. Care provision often involves ethical issues, which pose challenges not only for professional carers but also for informal carers and for society.

The author reviews the major principles of biomedical ethics, emphasizing the way in which they apply to elderly patients. It is stressed that these principles not only apply in exceptional and complex cases but also in ordinary situations of everyday life. Sometimes these principles may be in conflict, for example when the imperative to always act in the best interest of the patient clashes with the principle of autonomy. A hierarchy of values is then necessary. Situations of cognitive deficit, dependence, and incapacity often create dilemmas difficult to solve.

Professionals sometimes question the quality of life that can be provided to the elderly, particularly when they suffer from dementia and are close to the end of life. It is not always easy to apply the applicable deontological rules to complex and intricate situations. The author recommends a prudent approach that considers the overall needs of the person, paying attention as much as possible to the expressed or presumed wishes of the patient, the position of close family members, and the opinion of the various team members.

Keywords: Elderly; Ethics; Autonomy; Dementia; Quality of life; Terminal care

Cerca de dois milhões de portugueses, um em cada cinco, têm idade igual ou superior a 65 anos. São aqueles que é costume designar por idosos. A partir dessa idade vivem em média vinte anos, um pouco mais as mulheres, um pouco menos os homens. Cerca de metade desse tempo será de relativa saúde e razoável autonomia. Depois, a doença e o declínio funcional afetarão mais ou menos fortemente a sua vida, levando muitos deles, por fim, a uma situação em que não dispensam os cuidados prestados por outras pessoas: a dependência.

Diz-nos a epidemiologia que, em média, as mulheres terão mais tempo de vida que os homens, mas estes comparativamente gozarão de uma vida mais saudável e menos dependente que elas. Eles morrem geralmente mais cedo, porque as doenças que os afetam surgem mais precocemente e têm uma evolução mais rápida. Assim, os sobreviventes serão mais resistentes e mais fortes. Isso explica como em cada cem pessoas idosas os homens são apenas uns quarenta, mas padecendo de menos doenças crónicas e com mais autonomia funcional que as mulheres da mesma idade.

Deve sublinhar-se, entretanto, que as trajetórias ao longo deste período etário são muito diferentes de pessoa para pessoa. Os ritmos de envelhecimento variam consideravelmente, tanto em função de fatores genéticos como da exposição a causas ambientais. Assim, a idade de uma pessoa, só por si, não nos permite deduzir quais são as suas necessidades.

Costuma-se dizer que nesta época da vida uma doença nunca vem só. Isto significa que, além da tendência das enfermidades para se sobreporem, há também a ocorrência de modificações na vida social e familiar, que trazem consigo um peso suplementar de dificuldades. São elas, por exemplo, a viuvez, a reforma, o isolamento, a quebra na receita, a doença de parentes, a deterioração nas condições de habitação e, tantas vezes, a pobreza.

Isto tem por consequência que os idosos vão carecer, cada vez mais, não só do apoio e solidariedade dos seus familiares, como de respostas sociais organizadas e diversificadas, à medida das suas necessidades e sob a responsabilidade de equipas multidisciplinares: por exemplo, apoio domiciliário, centros de dia, lares residenciais. Mas o que sucede muitas vezes é que essas ajudas familiares ou comunitárias, enquanto solucionam muitos problemas, também trazem consigo outras dificuldades, a começar pela perda da independência do idoso e pela sua transformação num mero recetor de auxílio, sem voz e sem querer.

Em muitos deles, o declínio nas capacidades cognitivas vai impedi-los de tomarem iniciativas adequadas e de desempenharem um papel ativo na sua reabilitação. Estamos então perante situações em que a necessidade de receber ajuda social pode comprometer a liberdade do sujeito. Este corre o risco de se tornar um objeto passivo, o que parece atentar contra a sua dignidade de ser humano. Surgem, assim, frequentemente problemas de natureza ética que é preciso identificar e resolver.

Quando se fala em dilemas éticos pensa-se geralmente em situações limite, que só acontecem de longe a longe, causando compreensível perturbação. Mas na verdade, como vamos tentar mostrar, a ética e a moral estão também implicadas em coisas bem triviais, que fazem parte da vida quotidiana da pessoa idosa e que, se não forem resolvidas, são fonte de imerecido sofrimento.

A ética, a vida e a saúde

A Medicina tem uma base científica, mas é muito mais do que isso. Tal como a Enfermagem, a Psicologia e em geral todas as profissões que se dedicam a prestar cuidados a pessoas, ela abrange uma extensa área de técnicas específicas e atua num contexto interpessoal e relacional. Por essa razão, possui uma dimensão ético-moral. Na prática clínica é muitas vezes necessário tomar decisões que não são automáticas nem objetivas, muito menos consensuais. Implicam escolhas, que têm de ser feitas com referência a padrões morais, a escalas de valores.

Por isso, é indispensável a reflexão ética. Esta é uma constante da história humana, que com o decurso do tempo se veio a tornar mais complexa e mais profunda. Nos últimos tempos, Ética e Moral têm sido tomadas praticamente como sinónimos, embora para muitos a primeira tenha mais a ver com a filosofia dos valores e dos fundamentos do agir. A Moral estaria mais ligada aos comportamentos humanos efetivos, às situações concretas em que se torna necessário escolher e decidir. Mas vamos considerar que na prática elas se equivalem.

As normas morais distinguem-se das jurídicas porque estas últimas não são apenas imperativos de consciência - são explícitas, organizadas, têm uma história e admitem medidas coercivas para as pôr em prática. Outra diferença importante está em que a moral ou ética não se limita a proibir ou sancionar certos comportamentos, como sucede com o direito penal, mas aponta também para objetivos obrigatórios, para direções de ação, o que o direito raramente faz.

Os grandes valores éticos são reconhecidos como universais, isto é, próprios de todos os seres humanos em qualquer tempo e lugar. No entanto, foi a nossa civilização, que costumamos designar como ocidental, que mais explicitamente os formulou e teorizou. Derivam de uma vasta herança, que vem da filosofia grega e do direito romano, recebeu o impulso fundamental do Cristianismo e atravessou o Renascimento, o Iluminismo e o movimento pelos direitos do Homem. Essa conquista cultural está centrada num valor primordial - o respeito pela dignidade de todo o ser humano, sem discriminações. É sabido que tal objetivo só gradualmente foi sendo reconhecido como absoluto, como o demonstra a longa persistência histórica da escravatura, que só tardiamente acabou por ser abolida.

No que se refere à vida e à saúde, exige-se que a toda a pessoa sejam dados meios e oportunidades para se realizar e viver com o mínimo de sofrimento. Daí a obrigação de respeitar a vida humana em qualquer época do seu ciclo. Claro que também aqui a tomada de consciência tem sido gradual e está ainda incompleta, como se depreende da existência da pena de morte em vários países. É certo que se admitem exceções a essa regra básica, em consequência de outros valores, tolerando-se, assim, a legítima defesa e a guerra defensiva, como situações em que pode ser legítimo tirar a vida. Também no campo da Medicina podem determinadas intervenções resultar na morte do doente; mas esse desfecho não é procurado em si mesmo, surge por acidente ou ocorre como mero resultado simultâneo e paralelo, o chamado “duplo efeito”.

O dever de respeitar a vida tem sido a base dos códigos de conduta dos médicos e de outras profissões ligadas à saúde na maioria dos países ocidentais. A ele se associa o dever de respeitar a personalidade dos enfermos, mantendo íntegras a sua intimidade e privacidade. Como se torna evidente, trata-se de obrigações de todos os profissionais, em todo o tipo de situações. Mas não devem ser reconhecidas só pela negativa, isto é, estabelecendo sanções para quem não as cumpre. Devem ser também encaradas pelo lado positivo, enquanto obrigações e deveres de agir. Face a alguém que sofre, fisicamente ou de outra maneira, ninguém se pode colocar de lado, como se não lhe dissesse respeito.

Nessa perspetiva, os cuidados a proporcionar às pessoas de idade avançada, com o seu crescente peso demográfico e as suas múltiplas necessidades, são um imperativo ético para toda a sociedade e para cada cidadão. Mas cada vez mais se reconhece que tais cuidados implicam aspetos bastante específicos e dilemas por vezes difíceis de resolver. Por isso começaram a aparecer, desde o início deste século, reflexões e formulações sobre tal problemática. Um dos artigos com mais repercussão foi o de P. Muller, em 2004, sobre Ethical issues in geriatrics: a guide for clinicians.1 Muitos outros textos merecem especial referência. Alguns deles foram elaborados na perspetiva psicogeriátrica.2,3 Entre nós, deve mencionar-se o parecer que o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida emitiu em 2014, sobre as vulnerabilidades das pessoas de idade avançada, em especial das que residem em instituições.4 O Conselho da Europa publicou, no mesmo ano, um importante Guia sobre o processo de decisão relativo a tratamentos médicos que, embora tenha mais em vista os tempos do fim da vida, é largamente aplicável aos problemas comuns em toda a idade avançada.5 Estes textos vêm proclamar que as necessidades dos idosos criam muitas vezes desafios éticos de natureza especial, que é preciso reconhecer e tentar resolver. Vamos ver como os grandes princípios da Bioética se aplicam a estas situações.

A ética biomédica nos cuidados à pessoa idosa

A preocupação crescente com as questões éticas relacionadas com a prática clínica, numa época em que as condições de exercício da medicina entraram em rápida transformação, levou ao nascimento do que se veio a designar por pensamento biomédico. Este veio a centrar-se na análise e na tentativa de resolução dos dilemas de natureza moral que nascem na prestação de cuidados ao doente. Ao longo das últimas décadas foi sendo feito um esforço para sistematizar normas de atuação, de modo a permitir o reconhecimento dos problemas e a fundamentar as decisões. Assim se foram formulando vários princípios, nem sempre com consenso geral, pois por vezes eles parecem entrar em conflito, mas que ajudam a tornar as situações mais claras e a estabelecer prioridades nas respostas. Uma das contribuições mais importantes foi aquela que deram Beauchamp e Childress, em 1994, com a célebre formulação dos grandes princípios biomédicos.6 Foram apresentados como normas “à primeira vista” (prima facies), que não são sempre fáceis de conjugar entre si, mas que devem de uma maneira ou de outra ser respeitados na atuação junto de doentes ou pessoas carenciadas.

Esses princípios mostram-se particularmente úteis na sua aplicação ao cuidado das pessoas idosas, como agora tentaremos especificar.

1. Princípio da não maleficência. Forma atualizada da norma hipocrática primum non nocere, estipula que não deve ser ocasionado sofrimento desnecessário ao paciente. Só se pode admitir causar o sofrimento que for inevitável ou em proporção com o ganho esperado.

Muitas vezes pensa-se que este princípio se aplica apenas a efeitos indesejados de intervenções médicas, toxicidade medicamentosa ou situações similares. Mas não é unicamente disso que se trata. Devem considerar-se outras fontes de sofrimento, como a mudança de residência, o internamento, a separação de objetos pessoais, o convívio forçado com pessoas que causam transtorno ou desagrado, a privação de distrações habituais, as proibições desnecessárias e o tratamento rude ou humilhante. Tudo isso não é infelizmente raro em instituições onde o idoso se pode vir a encontrar, por pouco ou por muito tempo.

2. Princípio da beneficência. Deve-se agir exclusivamente no interesse do doente. Não se deverão empreender medidas que, mesmo não causando mal-estar ao paciente, não tenham possibilidade de se traduzir em benefício efetivo da sua situação, quer controlando a doença em si mesma quer atenuando as suas manifestações sintomáticas ou melhorando o estado geral. Deste modo, não deverão ser postas em prática atuações que visem unicamente satisfazer a curiosidade científica ou para benefício exclusivo de terceiros, sejam eles familiares, terapeutas, instituições ou o próprio Estado. Evidentemente que não é ético realizar atos fúteis, sem vantagem definida, só para agradar aos parentes ou - pior ainda - para obter proveito económico.

Sublinhe-se que este princípio deve também ser entendido no sentido positivo, chamando a atenção para o dever de agir sempre que o doente sofre, justamente para aliviar esse sofrimento. Muitas vezes o idoso tem queixas que não são suficientemente valorizadas, como, por exemplo, dor crónica. Vários estudos mostram que essa dor crónica é sistematicamente ignorada ou menosprezada pelos médicos e enfermeiros. O mesmo se passa com outras condições, como a depressão ou a astenia. Há o imperativo ético de identificar e estudar tais situações e tratá-las sempre que possível, sem cair na desculpa de que o doente está apenas a querer chamar a atenção.

3. Princípio da autonomia. Obriga ao respeito pela vontade e pelos valores do doente, que deve ter alguma participação no plano de tratamento e na escolha das suas condições de realização. Trata-se de um imperativo que só veio a ser claramente reconhecido tardiamente, pelos anos setenta do século passado, no contexto da defesa dos direitos humanos. Nasceu da cultura liberal anglo-saxónica e, de certo modo, opõe-se ao paternalismo clínico tão comum na Europa, atitude tradicional que permitia ao médico ou enfermeiro praticar tudo quanto entendesse ser para bem do enfermo, sem o consultar nem sequer o informar a posteriori do que foi feito. Atualmente não é admissível atuar dessa forma paternalista, exceto em situações de grande urgência em que o doente esteja impedido de expressar a sua vontade e, mesmo assim, na presunção de que o doente concordaria se estivesse capaz.

Para que o doente possa formular uma escolha, e expressar um consentimento válido, seja ele explícito e formal seja sob a forma de mero assentimento, deve ser-lhe prestada informação verdadeira e adequada ao seu estado e capacidades, relativa à sua doença, à evolução esperada e às alternativas possíveis. Em caso de medidas de particular gravidade, algumas das quais previstas na lei, deve ser obtido um consentimento informado por escrito, segundo modalidades ou padrões estabelecidos. Mas é indispensável que esse consentimento seja fruto de uma real compreensão da situação e não se resuma a assinatura feita maquinalmente num formulário. É necessário explicar ao doente do que se trata, mesmo que seja em termos simplificados, apropriados à sua cultura. Se, por outro lado, o doente quiser renunciar a esse direito e não ter de escolher, depositando toda a confiança na equipa que o trata, essa opção merece igualmente respeito, embora deva ser confirmada de tempos a tempos.

Evidentemente que numa pessoa com declínio da capacidade cognitiva, como sucede em muitos idosos, já não se encontra uma plena capacidade de elaborar e expressar o seu consentimento. Mesmo nesses casos, uma explicação simples deve ser tentada, enquanto for possível, e as preferências devem ser tidas em conta, se se justificarem. No entanto, com o avançar da incapacidade, caberá a outras pessoas, familiares ou não, o papel de prestar consentimento, como veremos adiante.

4. Princípio da justiça. Impõe equidade na distribuição de bens e serviços por todas as partes interessadas. Hoje sabemos que “não se pode dar tudo a todos”, como se costuma dizer, e que se devem poupar recursos para os utilizar com quem mais tem necessidade deles. Assim, exames supérfluos devem ser proscritos, mesmo que o doente peça para eles se realizarem. Medicamentos inúteis devem ser eliminados. O mesmo se diga de intervenções de interesse duvidoso, mas que utilizem aparelhagem médica ou camas de hospital que seriam necessários para outros doentes. Ou que ocupem desnecessariamente os técnicos de saúde, impedindo-os de acudir a casos prementes.

É bem sabido que não são aceitáveis, no estabelecimento de prioridades, discriminações que a própria lei proíbe, como aquelas que se baseiam na raça, sexo, opção política ou religião. Mas se essas são hoje em dia raras, felizmente, outras há que se praticam com alguma frequência. Não é conforme ao princípio da justiça estabelecer distinções em favor de doentes com alta posição social ou mediática, ou em prejuízo dos de condição social inferior. Também uma abstenção motivada pelo passado criminal do doente é de rejeitar. Já se o doente tem comportamentos de risco a que não quer pôr termo, como o abuso de álcool ou tabaco, ou se sistematicamente recusa colaborar com as medidas de tratamento que lhe são propostas, deve ser-lhe explicado que tal conduta tem consequências no seu estado e pode obrigar a alterações no plano de intervenção médica.

A discriminação pela idade, conhecida por “idadismo” (do inglês ageism) é frequente e até faz parte de usos estabelecidos em determinados serviços. É mais uma manifestação do estigma que recai sobre os idosos. É este um tema difícil, pois admite-se que possa haver doenças em que esteja medicamente indicada a abstenção de certas intervenções a partir de determinada idade. É o caso de certos atos cirúrgicos, como transplantes, que por vezes estão condicionados a um teto etário. Há alguns anos houve entre nós um justo escândalo quando alguém propôs que a hemodiálise fosse proibida a partir dos setenta anos. Ora é um facto que a proliferação de limitações de idade pode conduzir a enormes injustiças e a puras arbitrariedades, se não se entrar em linha de conta com o estado funcional dos doentes. O que parece ético é que a decisão de praticar ou não uma dada intervenção seja estabelecida após a avaliação global do estado físico e psíquico do candidato e com referência a um conjunto de parâmetros clínicos e indicadores vitais, e não se fundamente exclusivamente na idade.7

5. O princípio da fidelidade, que também foi enunciado por Beauchamp e Childress6 juntamente com os atrás mencionados, assume particular relevo no campo dos cuidados à pessoa idosa. Estabelece que os cuidadores devem manter-se disponíveis para prestar ajuda aos doentes e pessoas carecidas ao longo das várias contingências que possam ocorrer, nunca os deixando entregues à sua sorte. Sabemos quanto é frequente o abandono dos idosos por familiares e vizinhança, principalmente nas cidades. O cuidar da pessoa dependente revela-se muitas vezes uma sobrecarga de que inicialmente não se suspeitava. Mesmo para os técnicos de saúde torna-se pesado assegurar continuidade de cuidados nestas condições difíceis. Mas trata-se de uma obrigação ética, que deve ser cumprida sem falsas desculpas, seja o doente simpático e agradecido ou não seja.

6. Princípio do respeito pela personalidade. Incluímos aqui esta noção básica, já referida como sendo primordial para toda a relação humana e, em particular, quando se estabelece com alguém em posição de fraqueza. Obriga a preservar a intimidade e privacidade do idoso, respeitando o seu pudor físico e emocional, tanto quanto possível, e não o sujeitando a críticas que o apouquem ou comentários que o possam humilhar. Não é infelizmente raro que quem lida com idosos, mesmo em instituições, divulgue junto de terceiros factos de que teve conhecimento ou, pior ainda, as suas confidências. Isso só contribui para aumentar o seu sentimento de solidão. Por outro lado, a identidade da pessoa deve ser defendida e reforçada, com tudo o que a suporta. O seu nome deve ser sempre usado no trato diário, em lugar de alcunhas. Os acontecimentos da sua vida passada devem ser mencionados com apreço. Devem ser tidos em conta os seus interesses, as suas propostas e, sobretudo, a sua hierarquia de valores.

As perdas cognitivas e a limitação da capacidade

É normal que certas funções cognitivas sofram perda com a idade. O idoso é por regra mais lento, mais hesitante; e a memória de evocação diminui, especialmente para nomes e para factos recentes. Estas perdas, a que podemos chamar fisiológicas e universais, não comprometem a sua autonomia e só muito tardiamente poderão impor restrições em atividades mais complexas, como operações financeiras, gestão de património ou condução de veículos. Entretanto, uma proporção crescente de pessoas na idade avançada sofrerá de uma doença cerebral (seja ela degenerativa, vascular ou de outra natureza) que acarretará perdas cognitivas substanciais. Quase 5% da população com mais de 65 anos padece de qualquer tipo de demência. Com 80 anos e acima, essa prevalência atinge os 20%. São pessoas que apresentam já défices cognitivos severos, principalmente da memória, das funções executivas, da atenção, da linguagem e da comunicação, os quais afetam gravemente a sua capacidade de tomar decisões e de se adaptar às exigências da vida corrente. Ficará, assim, comprometida a sua capacidade de cuidar de si próprios e de realizar até os atos mais simples de higiene e alimentação.

É verdade que, bastante tempo antes de se reconhecer que eles estão globalmente incapazes, já esses idosos cometiam erros na vida quotidiana que impunham que alguém se substituísse a eles na tomada de decisões e nas iniciativas. Mesmo no envelhecimento normal essa troca de liderança costuma processar-se gradativamente, sem grandes problemas, é consensual. No entanto, pode ocorrer que o idoso não queira abdicar da sua autodeterminação e surgem então conflitos de resolução mais difícil. A lei prevê maneiras de suprir tais dificuldades. Até há pouco existia uma figura legal para responder ao problema da perda da capacidade de cuidar de si mesmo e do seu património: a interdição. Esta era decretada pelo tribunal, após um processo quase sempre desencadeado por familiares. Mas tanto este instituto jurídico como outro de mais reduzido alcance, a inabilitação, se mostravam pouco adequados para responder às situações mais comuns e cada vez mais prevalentes. Com efeito, com a interdição o poder passava praticamente todo para a mão de um representante legal, o tutor, e o idoso sentia que perdia de uma vez toda a sua autonomia jurídica e quase a sua personalidade social. Por essa razão, em 2018 foi extinta a interdição e criada uma nova fórmula legal, a do idoso acompanhado. Este regime traz a novidade de ser gradual e flexível. O próprio idoso pode desencadear o processo, se assim o entender. O tribunal aprecia o caso nas suas várias dimensões e estabelece quais as tarefas que ele pode realizar autonomamente e quais as que caberão a uma figura nova, o acompanhante, bem como as formas de cooperação que passam a existir entre os dois. Assim, o idoso pode continuar a ter possibilidade de conduzir a sua vida privada numa esfera mais limitada e até tomar a iniciativa, enquanto lhe for possível, de alguns atos de gestão. É uma solução menos traumática para o idoso e que o protege efetivamente, pois o acompanhante tem a obrigação legal de assegurar o seu bem-estar.

A avaliação das capacidades do idoso pode ser feita mediante simples observação médica, como é tradicional, apoiada caso necessário por exame neuropsicológico. Aplicam-se aqui todas as regras éticas de respeito pela pessoa, independência, integridade e confidencialidade, já mencionadas, e que são descritas pormenorizadamente em documentos deontológicos como o Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses, que foi atualizado em 2021.8

Pode ainda acontecer que essa avaliação seja realizada por ordem judicial, por peritos indicados pelo tribunal. Em qualquer dos casos convém lembrar que a história clínica repousa muitas vezes no relato de familiares, que podem ser tendenciosos e interessados, e que os exames têm a sua falibilidade e a sua margem de erro. Por isso, a ética aconselha extremo cuidado e prudência nas conclusões.

Decisões tomadas por substituto

Quando existe redução grave das funções cognitivas, seja ela transitória ou permanente, deve reconhecer-se que o doente já não tem capacidade para decidir, não somente na esfera da gestão patrimonial, como também no que concerne à sua saúde e condições de vida. Os médicos costumam então escutar as opiniões ou vontades dos parentes mais próximos quanto a realizar ou não determinado tipo de intervenção. No entanto, essa opinião informal não obriga completamente, e não anula a opinião dos técnicos de saúde, que pode eventualmente ser outra. Convém ter em conta que os parentes com que a equipa de saúde contacta mais de perto podem ter uma perspetiva diferente da de outros familiares, momentaneamente ausentes. Quer isto dizer que o princípio da autonomia continua em vigor, só que agora é mais complicado de pôr em prática, como refere o excelente livro de Belina Nunes, recentemente publicado, sobre a ética na doença de Alzheimer.9

Tudo é mais simples quando existe uma pessoa que foi incumbida, em devido tempo, de tomar decisões em substituição do doente.2,5,10 Pode tratar-se do representante legal, investido pelo tribunal nessa função, dentro do regime de idoso acompanhado. Mas mesmo fora desse contexto pode haver um procurador de cuidados de saúde, designado pelo doente através de uma declaração escrita válida e explícita, feita quando gozava de suficiente capacidade. As suas decisões são, em princípio, para cumprir, como se fossem do próprio enfermo. Essas preferências podem mesmo estender-se a domínios conexos com a saúde, por exemplo no que se refere à transferência para um lar residencial. Muitas vezes o procurador tem alguma dificuldade em formular uma decisão, porque ela não deve ser arbitrária nem resultar das preferências pessoais do substituto, como se estivesse a escolher para si próprio. Pode, assim, surgir um dilema ético. Em princípio, o procurador deveria atuar no sentido do melhor interesse do paciente, garantindo-lhe o possível bem-estar e a melhor proteção. Mas isso pode não coincidir com a preferência expressada pelo doente em tempos passados. Este tipo de problemas surge também quando se considera o internamento do doente num lar. Tal solução pode ser a que melhor garante o seu bem-estar físico e a sua segurança, mas o doente pode ter mostrado no passado aversão a tal eventualidade.

Nos casos em que não há um procurador credenciado, que ainda são a maioria, existem quase sempre pessoas de confiança e parentes próximos do enfermo que podem testemunhar sobre quais seriam as suas preferências caso estivesse em condições de as poder exprimir. Certamente que o peso destas pessoas na tomada de decisões será um tanto menor do que o do titular de uma procuração formal, mas deve sempre ser tomado em consideração, mesmo não sendo vinculativo.5

O consentimento informado quando há défice cognitivo

O processo de declínio cognitivo é geralmente gradual. Não é comum que a incapacidade se declare de um dia para o outro. Consequentemente, nas doenças progressivas deve ser reconhecida ao idoso durante algum tempo uma autonomia parcial para a tomada de decisões, principalmente aquelas que diretamente afetam a sua pessoa e condições de vida. Mesmo que juridicamente não esteja prevista essa obrigação, a ética impõe que o idoso, com declínio cognitivo ou mesmo com demência ligeira, seja de alguma maneira informado das situações que lhe dizem respeito, incluindo o diagnóstico das doenças de que sofre, o respetivo prognóstico e as medidas terapêuticas que podem estar indicadas. Evidentemente que essa informação terá de ser feita em termos gerais, em linguagem compatível com a sua capacidade de entender e de modo a não causar desnecessário alarme. É necessário que os técnicos de saúde estabeleçam com o doente esse diálogo, não só para o esclarecer como também para lhe indicar quais as medidas que consideram mais convenientes. É sabido que a pessoa idosa, para mais com defeito cognitivo, tem geralmente dificuldade em escolher entre alternativas. Por isso, convém não pedir diretamente que exprima uma decisão, antes se deve comunicar-lhe que se vai empreender esta ou aquela medida, e porquê, e atender com delicadeza às suas objeções, se as houver.

A conduta a seguir pela equipa de saúde, e pelos cuidadores em geral, tem de ser a que melhor se adequa, tanto às necessidades objetivas como à margem de autonomia que se possa reconhecer no doente. Ora pode suceder que se mostre impossível respeitar simultaneamente ambas as coisas: o melhor interesse do doente e a preferência que ele expressa. A solução deste dilema é difícil e depende do grau de capacidade que o enfermo ainda possua, e também da prudência e sensibilidade do médico e seus colaboradores. Deve sempre ser auscultada a opinião de cada membro da equipa. Evidentemente que tudo será mais fácil se existir declaração antecipada de vontade, redigida pelo doente em tempo útil e conforme aos requisitos legais. Ou, melhor ainda, se tiver sido indicado o procurador de cuidados de saúde. Este estará em melhores condições para defender, com a flexibilidade imposta pelas circunstâncias, o que lhe pareça ser do interesse do doente; e, além do mais, as suas escolhas terão a proteção da lei.

Nestas situações é geralmente necessário instruir as pessoas de família, como lembra Marcel Arcand, um autor de referência nos cuidados a este tipo de enfermos. Refere que os familiares ignoram muitas vezes a natureza da doença e a sua evolução. Por isso, o médico e seus colaboradores devem elucidá-los quanto ao prognóstico e aos objetivos do tratamento.11-12 Essa comunicação deve deixar claro o que se vai fazer com expetativa de cura e o que visará unicamente alívio dos sintomas e a manutenção da qualidade de vida.

Qualidade de vida

Quando se fala em agir no melhor interesse do doente não se deve entender tal objetivo como sinónimo de prolongar indefinidamente o seu tempo de sobrevivência. Essa poderia ser a preocupação de uma medicina desumanizada, que passasse por cima da subjetividade do paciente, ignorando o que vai na sua intimidade. Pelo contrário, todo o sentido do movimento em defesa do doente, nas últimas décadas, consiste em preservar a sua satisfação de viver e centra-se na noção recente de qualidade de vida.

Esta discussão remete para a problemática hoje tão atual da ética em situação de fim de vida, que não vamos abordar aqui extensivamente. A questão coloca-se, muitas vezes, em situações em que é preciso decidir sobre a continuação de uma terapêutica destinada a assegurar a sobrevivência numa demência avançada: vale a pena fazer tratamentos extraordinários para prolongar uma vida de cuja “qualidade” se tem dúvidas?

O conceito de qualidade de vida, como se entende agora, é relativamente recente.13 A aplicação de novas terapêuticas fez refletir os médicos sobre os seus resultados. Será que as consequências são mais lesivas do que proveitosas na apreciação do próprio enfermo? Haverá efeitos secundários desproporcionados, limitações de vida sem justificação? Por outro lado, será que esses tratamentos, em doenças para as quais já não há possibilidade de cura, reduzem efetivamente os sintomas? Será que melhoram a funcionalidade de doente, permitindo-lhe realizar tarefas com um mínimo de autonomia, conviver e fruir de alguns prazeres?

É evidente que não são somente a doença e a sua gravidade, bem como o tipo de cuidados proporcionados ao enfermo, que determinam a sua qualidade de vida. Esta é também condicionada pelo ambiente físico e humano que o rodeia. A tranquilidade do local, a segurança, o conforto físico, a ocupação e o sentimento de ser acompanhado contam muito para o bem-estar do doente. Tudo isso afeta o seu bem-estar e a representação que ele faz de si mesmo e do seu mundo, da vida que leva e da que tem à sua frente.

Alguns autores tentaram “medir” a qualidade de vida, recorrendo a escalas. A própria Organização Mundial da Saúde patrocinou a criação de um instrumento, o WHOQOL, de que existem várias versões, incluindo uma para pessoas idosas, com tradução em português.14 Mas não deve esquecer-se que essas escalas servem principalmente para ser usadas na investigação, onde se lida com grupos, e não são muito adequadas para diagnóstico e orientação no caso individual. Além disso, como medir rigorosamente o que por natureza é qualitativo? Não há indicadores objetivos que nos permitam saber com precisão o que se passa no íntimo de cada pessoa. Assim, para podermos ter uma ideia aproximada acerca da qualidade de vida de um doente teremos de nos socorrer de dados indiretos. Estes são, por um lado, os de natureza mais objetiva, relativos às condições reais - de saúde, nutrição, capacidade funcional, mobilidade e segurança - em que o doente vive, apreciadas por uma terceira pessoa. E, por outro lado, os elementos subjetivos: como é que o enfermo a sua realidade e como é que ele a sente. É, aliás, esta perspetiva subjetiva que está mais próxima do conceito teórico de qualidade de vida, tal como foi formulado nos anos oitenta. Nesta ótica, o que mais importa saber é até que ponto o doente se representa seguro física e socialmente, autónomo, não pesado para os outros, útil e com a estima dos seus acompanhantes.

A qualidade de vida na demência

Se é sempre difícil averiguar o que se passa na intimidade das pessoas, mais ainda o será quando elas têm problemas de cognição e de comunicação. Podemos, é claro, recorrer a indicadores indiretos, como são os dados objetivos acima referidos. A este propósito, é interessante averiguar até que ponto existe ou não sintonia entre esses indicadores objetivos, aferidos pelos cuidadores, e as expressões subjetivas de bem-estar. Ora o que algumas investigações mostram é que nem sempre existe concordância entre eles. Tem-se constatado que, quase sempre, os doentes consideram ter uma qualidade de vida superior àquela que lhes é atribuida pelos prestadores de cuidados.15 Eles mostram-se mais afetados, nas suas próprias avaliações, pela existência de dor ou depressão, pelo grau de conforto e agrado estético e pelo sentimento de liberdade de ausência de coações.16 Já os cuidadores parecem atender mais à existência ou não de sobrecarga de trabalho, ao grau de dependência do enfermo e, sobretudo, à existência de alterações comportamentais, particularmente a agitação.

No decurso do processo demencial, muitos doentes passam por uma fase de inquietação em que se mostram agitados, deambulam, remexem em tudo e reagem com agressividade quando contrariados. Isso causa grave distúrbio na vida familiar e institucional. Antes de se instituir uma sedação deve-se tentar sempre identificar as causas dessa inquietação. Se estas se puderem resolver quase sempre o enfermo ficará mais tranquilo. Só depois se recorrerá, se necessário, a sedação farmacológica. Esta é geralmente eficaz, mas só deve ser realizada durante o tempo indispensável. No entanto, observa-se que há tendência para a prolongar indefinidamente, com benzodiazepinas ou antipsicóticos. Tal prática, que parece ser a regra hoje em muitas instituições de idosos, vai colocar os doentes num estado de apatia e entorpecimento permanente, acentuando as suas perdas cognitivas. Deve, portanto, essa sedação ser revista com frequência. Por outro lado, usam-se frequentemente meios de contenção, como faixas e cintos, para os prender ou segurar quando estão muito inquietos e não é possível o cuidador permanecer a seu lado. Mas, mais uma vez, esta contenção deve ser encarada como medida temporária e de exceção e não como prática corrente. O abuso da contenção costuma até aumentar a agitação do doente.

Na demência avançada, que se pode entender por qualidade de vida quando os enfermos já não comunicam verbalmente, não reconhecem as pessoas com quem lidam e parecem não ter noção da sua própria identidade? Nada sabemos do que se passa na sua consciência, nem sequer que tipo de consciência têm. No entanto, apercebemo-nos de que quase todos mantém alguma sensibilidade, que reagem à dor, que se incomodam com a imobilização forçada. Por outro lado, constata-se que muitos deles apreciam a presença de certas pessoas, mesmo que não deem mostras de as reconhecer, e parecem ficar mais tranquilos com o contacto físico. Não devem, pois, ser tratados como simples seres vegetativos, despojados de toda a humanidade, meros organismos que vão resistindo ligados a tubos e sondas.

Cuidados em fim de vida

Mesmo que a qualidade de vida possa parecer escassa ou nula, isso não significa que a vida, em si mesma, não seja digna de existir. Ela, como tal, deve ser respeitada. Mas, dito isto, não podemos, por outro lado, deixar de ponderar, caso a caso, se é legítimo do ponto de vista ético tentar prolongar a qualquer custo, por meios excessivos ou desproporcionados, uma vida que não mostre ter qualquer atributo de qualidade. É o chamado encarniçamento terapêutico, ou distanásia, que consiste em querer manter tratamentos fúteis apenas para prolongar a vida por mais umas semanas ou uns meses, geralmente à custa de mais sofrimento. Esta prática é absolutamente condenável à luz da ética e dos códigos deontológicos. Mesmo assim, será conveniente que todas as pessoas deixem claro, em declaração escrita ou pelo menos em instruções à família e se possível ao procurador de cuidados de saúde, que não desejam ser submetidas a tal regime.

Estas considerações, que são válidas para qualquer enfermo em fase terminal, aplicam-se particularmente aos doentes demenciados. Toda a estratégia curativa deve dar lugar à prática dos cuidados paliativos, que têm como finalidade reduzir o sofrimento do paciente. Vamos exemplificar, mencionando dois problemas comuns: o tratamento de incidentes infeciosos recorrentes e o dilema da alimentação artificial.

Em muitos casos coloca-se o dilema de tratar, ou não, situações agudas como, por exemplo, uma pneumonia, com complexa terapia antibiótica.17 Aqui, o objetivo deve ser o alívio do sofrimento, particularmente o devido à dispneia, que numa situação dessas pode ser considerável. A antibioterapia pode, por um lado, aliviar temporariamente, mas pode também, por outro, prolongar a fase terminal por mais alguns dias ou semanas. O clínico deverá avaliar qual é a melhor solução paliativa que poupe o enfermo a sofrimento inútil ou injustificado. Pode ser legítimo recorrer apenas a medicação para alívio da dispneia, incluindo oxigénio e opioides em dose moderada.12,18

Outro problema comum nestas situações terminais e irreversíveis, particularmente nas demências, é a que se refere à nutrição e hidratação artificiais. Quando o doente passa a ter grande dificuldade em deglutir pode pôr-se o dilema de instituir ou não a nutrição e a hidratação, quer por sonda nasogástrica quer mesmo, para evitar as pneumonias por aspiração, pela introdução de um tubo direto ao estômago através da parede abdominal, a conhecida PEG. Alguns familiares parecem ficar mais satisfeitos quando o enfermo recebe nutrição por sonda, talvez por lhes parecer que é seu dever prolongar-lhe a vida o mais possível. No entanto, o que os estudos parecem mostrar é que essa medida traz geralmente enorme sofrimento ao paciente, por ser muitas vezes necessário amarrá-lo para evitar que ele retire a sonda, prática que, por seu lado, pode promover o aparecimento de escaras. A maioria dos autores, e muitas associações médicas como a American Academy of Neurology10 e a American Geriatrics Society,19 não recomendam tal prática por não trazer qualquer benefício real para o paciente. A hidratação pode ajudar a evitar a sede, mas ela deverá ser tentada, preferencialmente, por via oral, se necessário com a ajuda de seringas apropriadas. Se é certo que isso pode exigir algum esforço adicional por parte dos cuidadores, tem a vantagem de permitir um contacto físico que o doente parece apreciar, como sublinham autores portugueses em artigo recente.20

É verdade que alguns códigos deontológicos consideram ainda a nutrição e a hidratação artificiais como medidas ordinárias de suporte de vida, que assim, em princípio, poderão ser mantidas, mesmo em situação de demência terminal. O novo Código Deontológico da Ordem dos Médicos,21 de 2016, recomenda nos estados terminais o recurso aos cuidados paliativos, com abstenção de “meios fúteis de tratamento que podem por si próprios induzir mais sofrimento, sem que daí advenha mais benefício” (art.o 66). Este código considera a hidratação e nutrição artificiais como medidas não extraordinárias de suporte de vida e, portanto, não impõe à sua interrupção na fase terminal. Mas saliente-se que também não obriga à sua manutenção nessa situação (art.o 67.5).

Os médicos poderão ter dificuldade em decidir. Deve ser auscultada a opinião de todos os que cuidam do enfermo, bem como a dos familiares próximos e do procurador de cuidados, se o houver. A eles deve ser explicado que um certo grau de desidratação na fase final não acarreta sofrimento, antes pelo contrário, e pode até ajudar a uma morte mais suave, desde que estejam assegurados os cuidados usuais de limpeza das vias respiratórias e a higiene e humidificação da zona bucal.12,20

Muito útil será a existência de uma declaração antecipada da vontade, onde conste que o doente, embora deseje receber os cuidados paliativos usuais (como a hidratação oral), está em clara oposição às referidas práticas fúteis. O mesmo se pode afirmar relativamente a manobras de ressuscitação ou ao tratamento intensivo das mencionadas infeções repetidas, frequentes nos últimos tempos de vida, particularmente nos demenciados, e que costumam ser a causa próxima e natural da sua morte.

Em conclusão

A Ética diz-nos que ao prestar cuidados a um doente, e para mais idoso ou eventualmente dependente, não se pretende apenas eliminar sintomas ou modificar comportamentos. Tratar ou cuidar é atender às necessidades totais da pessoa - de cada uma, na sua especificidade -, assegurando-lhe a melhor qualidade de vida possível. Não é fácil agir no seu superior interesse e simultaneamente respeitar a sua autonomia. Mas deve sempre ser tentado.

Conflito de interesses

O autor declara não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento

O autor declara não ter existido qualquer financiamento.

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Recebido: 26 de Novembro de 2021; Aceito: 23 de Fevereiro de 2022

Endereço para correspondência João Barreto E-mail: natural@mail.tmn.pt

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