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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.38 no.1 Lisboa Feb. 2022  Epub Feb 28, 2022

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v38i1.13008 

Prática

COVID-19: adaptação de uma unidade de saúde familiar a novos desafios de acessibilidade aos cuidados de saúde

COVID-19: adaptation of a primary health care facility to the new accessibility challenges to health care

Luís Paulo Costa1 
http://orcid.org/0000-0002-1698-7503

Luís Terroso Lira1 

Alice Magalhães1 

Ina Garuta1 

Nuno Esperanço1 

Valeryia Real1 

Hugo Silva1 

Sérgio Barros Cardoso1 

Ana Vicente1 

1. USF Terras de Cira. Vila Franca de Xira, Portugal.


Resumo

A pandemia COVID-19 obrigou a uma rápida adaptação dos serviços de saúde para que se pudesse manter a resposta e qualidade dos cuidados. De forma a garantir a acessibilidade dos utentes aos cuidados de saúde primários e minimizar as consequências do distanciamento social, oferecendo alternativas à consulta presencial, a nossa Unidade de Saúde Familiar (USF) criou a linha de apoio ao utente. Os profissionais da USF adquiriram de forma autónoma seis telemóveis e criaram seis linhas diferentes: duas linhas para apoio médico geral, duas linhas para assuntos relacionados com a COVID-19, uma linha de apoio de enfermagem e uma linha de apoio do secretariado clínico. Foi criada uma base de dados para registo de contactos médicos e de enfermagem. Esta base de dados permitiu ainda a referenciação direta a apoio de psicologia.

Avaliou-se um período de seis meses (entre 16 de março e 16 de setembro de 2020). Foram registadas 7.535 chamadas: 5.281 nas linhas de apoio médico geral e 230 nas linhas médicas relacionadas com a COVID-19. Foram feitas 51 referenciações para apoio psicológico.

As restrições que obrigaram a medidas extraordinárias serão levantadas e esta experiência pode fornecer bases para o futuro, nomeadamente como diversificar a acessibilidade de uma unidade de saúde familiar, salientando a necessidade de investimento nessa área. No contexto atual, a telemedicina tem-se revelado uma alternativa adequada para o atendimento e orientação dos utentes.

Palavras-chave: COVID-19; Telemedicina; Acessibilidade; Cuidados de saúde primários

Abstract

The COVID-19 pandemic forced a quick adaptation of the health services so that the response and quality of care could be maintained. In order to guarantee the accessibility of users to primary health care and minimize the consequences of social distancing, offering alternatives to face-to-face consultation, our family health unit created a support line for the patients. The health professionals of this primary health care facility purchased six mobile phones and created six different helplines: two lines for general medical support, two lines for matters related to COVID-19, a nursing support line, and a support line for clinical secretaries. A database was created to record all telephone contacts. This database also allowed direct referral to psychological support. The record of the clinical secretaries’ line was discontinued.

A six-month period was evaluated (between March 16 and September 16, 2020). 7,535 calls were registered: 5,281 to the general medical support lines, 230 to the medical lines related to COVID-19, and 2,024 to the nursing support lines. Fifty-one referrals were made for psychological support.

The restrictions that forced extraordinary measures will be lifted one day and this experience may provide some knowledge for the future, regarding how to diversify the accessibility of a primary health care facility and highlight the need for investment in this area. In the current pandemic situation, telemedicine has proven to be an adequate alternative for the care and guidance of users.

Keywords: COVID-19; Telemedicine; Accessibility; Primary health care

Introdução

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o estado de pandemia associada à infeção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). O agravamento da situação epidemiológica obrigou a uma adaptação dos cuidados de saúde em resposta à progressão da infeção, com base no distanciamento social.

A 18 de março do mesmo ano foi decretado o estado de emergência em Portugal, tendo sido suspensa a maior parte da atividade clínica presencial, à exceção do atendimento a grupos vulneráveis (crianças, grávidas e situações particulares). Foi necessário reorganizar toda a dinâmica dos serviços, bem como o circuito do utente no interior da instituição. Os profissionais de saúde depararam-se com a necessidade de executar a quase totalidade dos contactos com os utentes de forma não presencial.

No que concerne à oferta assistencial de consulta não programada (consulta do próprio dia, por iniciativa do utente), surgiu a necessidade de criar uma alternativa para o atendimento aos utentes da Unidade de Saúde Familiar (USF). Assim, foi criada a linha de apoio ao utente da USF, segundo um protocolo de organização interna.

A consulta telefónica pode ser redutora em termos de comunicação e observação do utente, mas poderá trazer vantagens, não só pelo contexto epidemiológico, mas também pela simplificação do circuito do utente.

Objetivos

O projeto da USF teve como objetivos: responder às necessidades do contexto pandémico; prevenir o contágio pela COVID-19, minimizando a exposição entre utentes e profissionais; prestar informação relativa às vias de transmissão do vírus na comunidade; garantir a acessibilidade dos utentes aos cuidados de saúde primários; minimizar as consequências do distanciamento social, oferecendo alternativas à consulta presencial; e medir e avaliar a resposta da estratégia de adaptação da USF ao contexto pandémico.

Implementação do projeto

A pandemia COVID-19 trouxe desafios a todos os profissionais de saúde e obrigou a uma rápida adaptação dos serviços para que se pudesse manter a resposta e qualidade dos cuidados.

Na fase inicial da pandemia, toda a atividade clínica que, até à altura, era feita de forma presencial foi perturbada pela restrição da entrada dos utentes na unidade de saúde. Perante a imposição do distanciamento social, a resposta foi estruturada essencialmente em duas vertentes:

  • • Criação de circuitos internos para atendimento presencial, com fluxograma distinto para grupos vulneráveis e restantes utentes, com triagem de casos suspeitos (através de medição de temperatura e questionário);

  • • Otimização da rede telefónica para garantir o atendimento das solicitações de consulta não programada, nomeadamente para utentes com necessidades de cuidados médicos urgentes.

Foi necessário reunir esforços e procurar novas ferramentas e estratégias que permitissem manter a ponte com os utentes e garantir a sua acessibilidade. Além disso, sentiu-se a necessidade de assegurar a disponibilidade para o esclarecimento de dúvidas dos utentes sobre um vírus até então desconhecido, prevenir uma potencial exposição da população ao mesmo, mantendo a resposta à restante atividade clínica inerente aos cuidados de saúde primários.

Vários estudos sugerem que, em cenários com exigências semelhantes ao atual, as consultas telefónicas são uma opção custo-efetiva alternativa às consultas presenciais.1 O contacto telefónico demonstrou ser equiparável ao contacto presencial no que se refere à promoção da saúde, triagem e gestão da doença crónica.2

Apesar de contemplado nos procedimentos pré-pandemia, as vantagens de um atendimento telefónico de qualidade e fiável sempre foram limitadas pela inexistência de uma central, de equipamentos profissionais individuais e pela manutenção deficitária dos que existem. Esta limitação de longa data associada à conveniência e preferência pelo contacto presencial, reduziram, até à data, o acesso telefónico a uma via complementar e de uso esporádico. Face à mudança de paradigma, os profissionais da unidade criaram uma alternativa eficaz, segura e fundamental para garantir a resposta aos utentes numa altura tão desafiante.

Neste contexto, a equipa da USF adquiriu, cumulativamente, de forma autónoma e sem qualquer apoio, seis telemóveis com seis linhas diferentes. Inicialmente, foram destinadas três linhas para apoio médico geral, duas das quais para apoio com questões exclusivamente relacionadas com a COVID-19, estabelecendo uma linha direta médico-utente. Os telemóveis eram distribuídos de forma rotativa por todos os médicos do serviço, segundo uma escala, estando operacionais durante o horário de funcionamento da unidade. Os números de telefone foram amplamente difundidos para toda a comunidade através das redes sociais da USF, divulgados pela Junta de Freguesia, pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e pelas farmácias locais.

De forma a registar os contactos telefónicos médicos foi criada uma base de dados, atualizada diariamente, onde constavam os seguintes dados: data, identificação do utente, profissional responsável pelo utente e pelo seu atendimento, motivo de chamada, estado de resolução e orientação. O objetivo seria avaliar o número e a frequência de chamadas, os profissionais envolvidos e a sua rotatividade, as principais motivações do contacto e a sua evolução e orientação ao longo do tempo. Este processo permitiu partilhar os resultados com a equipa e ajustar periodicamente as linhas de apoio de acordo com as necessidades percebidas. Desde cedo que se subentendeu também que seria uma oportunidade e uma mais-valia partilhar a experiência da unidade.

Após a análise inicial dos motivos de contacto, que não eram apenas do foro clínico, mas também organizacional e relacionados com outros grupos profissionais, foi necessário expandir e reestruturar a resposta. Assim, mantiveram-se quatro linhas médicas - duas linhas para apoio médico geral e duas linhas para assuntos relacionados com a COVID-19 -, criou-se uma linha de apoio de enfermagem e uma linha de apoio do secretariado clínico (que manteve também o atendimento prévio pela única linha geral da USF). Esta redistribuição permitiu orientar os doentes de forma mais direta para as diversas dúvidas e problemas de saúde, levando a uma resposta e resolução mais rápida e eficaz.

Além da resolução da maioria dos problemas e questões apresentados pelos utentes, merece também destaque o protocolo de referenciação à consulta de psicologia do ACeS diretamente através da base de dados criada.

Resultados

Avaliou-se um período de seis meses (entre 16 de março e 16 de setembro de 2020). Foram registadas 7.535 chamadas nas linhas de apoio ao utente: 5.281 nas linhas de apoio médico geral, 230 nas linhas médicas relacionadas com a COVID-19 e 2.024 nas linhas de apoio de enfermagem. Foram feitas 51 referenciações para apoio psicológico.

Através das linhas telefónicas foi possível:

  • • Esclarecer a população sobre sintomas, contexto epidemiológico, medidas de proteção individual, ausências laborais ou questões burocráticas relacionadas com a pandemia pela COVID-19, com base em fontes de informação atualizada;

  • • Prestar cuidados a utentes com suspeita ou infeção COVID-19 confirmada, mantendo uma «via verde» para estes casos através da manutenção das linhas de apoio exclusivas para estes doentes;

  • • Triar os motivos de consulta, selecionando aqueles que justificassem uma observação presencial, de forma a proteger utentes e profissionais de eventuais casos suspeitos;

  • • Garantir a acessibilidade no que diz respeito ao aconselhamento clínico e orientação nas situações de doença aguda ou exacerbação de doenças crónicas, minimizando as deslocações desnecessárias dos utentes ao centro de saúde;

  • • Referenciar, quando indicado, utentes para consulta presencial na unidade ou serviços de continuidade (ADC/ADR, AC ou SU), consulta hospitalar e consulta de psicologia, com resposta a curto prazo.

Este projeto apenas foi possível graças ao esforço e adaptação dos profissionais da USF, que se submeteram a várias mudanças de horário. Apesar da inevitável sobreposição de tarefas, conseguiram manter toda a restante atividade clínica redistribuída em teleconsulta e consulta presencial de acordo com as determinações do plano de contingência. A adesão crescente da população às linhas de apoio é uma manifestação de reconhecimento da importância do projeto e tem sido um dos seus grandes motores.

Discussão

O desafio de gerir a acessibilidade a uma unidade de saúde é também o desafio de gerir as expectativas dos utentes e dos profissionais, mas também acompanhar a sua evolução, sendo fundamental a atenção às necessidades de ambos.

As restrições que obrigaram a medidas extraordinárias no contexto da pandemia COVID-19 serão levantadas e a presente experiência pode fornecer bases para o futuro, nomeadamente ao nível da diversificação da acessibilidade a uma unidade de saúde familiar, salientando a necessidade de investimento nesta área.

Existem limitações inerentes à consulta não presencial, nomeadamente os aspetos não verbais da comunicação e a observação física do utente. Esta análise e este relato de prática poderão contribuir para a expansão do conhecimento relativamente aos contactos em que esta tipologia de consulta seria mais pertinente. Poderão também ajudar a compreender em que medida e proporção deverá o horário do médico de família adaptar-se de forma a incluir esta tipologia de consulta na sua atividade, permitindo uma maior eficiência sem prejuízo da qualidade e da satisfação. Por fim, poderão impulsionar a discussão acerca de formas e modelos complementares de consulta que contribuam para a diminuição de limitações percebidas, como a vídeoconsulta, a expansão da utilização do correio electrónico e o uso de serviços de mensagem instantânea.

No contexto atual e como se verificou na prática, a telemedicina tem-se revelado uma alternativa adequada para o atendimento e orientação dos utentes.3 Vários autores consideram haver uma relação custo-benefício favorável à telemedicina, nomeadamente pela diminuição das deslocações desnecessárias aos centros de saúde e pelo aumento da eficiência das consultas, incluindo uma redução do tempo de consulta e uma maior satisfação do utente.4

Contributo dos autores

Luís Paulo Costa: conceptualização, metodologia, redação do manuscrito original, administração do projecto; Luís Terroso Lira: conceptualização, metodologia, redação do manuscrito original; Alice Magalhães: conceptualização, metodologia, redação do manuscrito original; Ina Garuta: conceptualização, metodologia, redação do manuscrito original; Nuno Esperanço: conceptualização, metodologia, redação do manuscrito original; Valeryia Real: conceptualização, metodologia, redação do manuscrito original; Hugo Silva: conceptualização, metodologia, redação, revisão e validação; Sérgio Barros Cardoso: conceptualização, metodologia, redação, revisão e validação; Ana Vicente: conceptualização, metodologia, redação, revisão e validação.

Conflito de interesses

Os autores declaram que não existem quaisquer conflitos de interesse ou financiamentos associados à realização deste projeto.

Referências bibliográficas

1. Downes MJ, Mervin MC, Byrnes JM, Scuffham PA. Telephone consultations for general practice: a systematic review. Syst Rev. 2017;6(1):128. [ Links ]

2. Campbell JL, Fletcher E, Britten N, Green C, Holt TA, Lattimer V, et al. Telephone triage for management of same-day consultation requests in general practice (the ESTEEM trial): a cluster-randomised controlled trial and cost-consequence analysis. Lancet. 2014;384(9957):1859-68. [ Links ]

3. Mills EC, Savage E, Lieder J, Chiu ES. Telemedicine and the COVID-19 pandemic: are we ready to go live? Adv Skin Wound Care. 2020;33(8):410-7. [ Links ]

4. Lake R, Georgiou A, Li J, Li L, Byrne M, Robinson M, et al. The quality, safety and governance of telephone triage and advice services: an overview of evidence from systematic reviews. BMC Health Serv Res. 2017;17(1):614. [ Links ]

Recebido: 20 de Outubro de 2020; Aceito: 27 de Setembro de 2021

Endereço para correspondência Luís Paulo Costa E-mail: luis.costa@campus.ul.pt

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