Introdução
Estima-se que mundialmente 41% de todas as gravidezes sejam indesejadas e que, destas, aproximadamente metade termine em IVG. 1 Sabe-se que a melhoria da acessibilidade ao planeamento familiar e à contraceção se associam a uma diminuição destas gravidezes e, consequentemente, dos abortos voluntários, 2-7 observando-se este fenómeno um pouco por todo o mundo mas, em especial, nos países desenvolvidos. 1,8-9 Portugal encontra-se acima da média europeia em políticas de planeamento familiar, o que pode ter contribuído para que, desde 2011, o número total de abortos voluntários por ano tenha vindo a diminuir. 10-12 Ainda assim, este número têm-se mantido sempre acima das 14.500 IVG/ano. 10,12 Apesar da segurança dos métodos disponíveis para a interrupção da gravidez, estes procedimentos não são isentos de risco de complicações, nem se pode desprezar o impacto que representam na saúde mental das mulheres que a eles recorrem. 13-18 Importa, pois, analisar os cuidados de planeamento familiar que têm sido prestados e identificar áreas de melhoria da qualidade e da acessibilidade.
Em Portugal, a maioria dos cuidados de planeamento familiar são prestados nos cuidados de saúde primários (CSP). A reforma destes, que se iniciou em 2005, originou tipologias de unidades de saúde organizacionalmente diferentes - as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) e as Unidades de Saúde Familiares (USF), que se dividem em dois níveis, as USF modelo A e as USF modelo B. Todas elas têm a responsabilidade de oferecer cuidados em planeamento familiar, mas distinguem-se por níveis crescentes de amadurecimento organizacional, autonomia, incentivos financeiros e desempenhos mais exigentes. 19-21 Estudos indicam que as USF modelo B exibem maior taxa de utilização de consultas de planeamento familiar. 22 No entanto, não existem ainda estudos que correlacionem os níveis organizacionais dos CSP com uma efetiva melhoria de resultados na área do planeamento familiar.
O objetivo deste trabalho foi verificar a existência de associação entre características organizacionais dos CSP, nomeadamente a tipologia de unidade de saúde, ter médico de família atribuído e ter contactos recentes com a unidade de saúde, bem como a realização de contraceção nos doze meses que antecederam o aborto voluntário e o recurso à IVG.
Métodos
Foi realizado um estudo observacional, analítico e transversal.
Através da base de dados da consulta de IVG do Hospital Beatriz Ângelo foram selecionadas todas as utentes que realizaram um aborto voluntário por opção da mulher, nesse hospital, durante o ano civil de 2018. Com base no Registo de Saúde Eletrónico foram analisadas as variáveis: tipologia de CSP (UCSP, USF modelo A ou USF modelo B), existência de médico de família atribuído e número de contactos médicos presenciais com os CSP nos doze meses que antecederam a realização do aborto voluntário (independentemente da tipologia de consulta). Através da base de dados da consulta de IVG extraiu-se a variável utilização de método contracetivo nos doze meses prévios ao aborto voluntário (informação transmitida diretamente pela mulher durante a consulta prévia à IVG). Foram excluídas as utentes sobre as quais não havia informação disponível relativamente à tipologia de CSP, atribuição de médico de família e número de contactos com os CSP. As referidas variáveis foram colhidas em julho de 2019, sendo que os dados foram anonimizados e não houve lugar à consulta de qualquer registo clínico.
Para ajuste dos dados recorreu-se à plataforma Bilhete de Identidade dos Cuidados de Saúde Primários (BI-CSP). 23 Para a variável tipologia de CSP procedeu-se ao ajuste com base no número de utentes do sexo feminino em idade fértil inscritas na Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) e área de referência do Hospital Beatriz Ângelo. Para a variável existência de médico de família atribuído realizou-se o ajuste dos dados a partir do número de utentes inscritos (independentemente do sexo e idade) na ARSLVT e área de referência do hospital. Em ambos os casos, a informação obtida era relativa a julho de 2019.
Os dados foram tratados no software Microsoft Office Excel® e analisados estatisticamente no software IBM SPSS® v. 25. Para o estudo descritivo procedeu-se à análise de frequências para os dados categóricos e de medida de tendência central Os dados foram tratados no software Microsoft Office Excel® e analisados estatisticamente no software IBM SPSS® v. 25. Para o estudo descritivo procedeu-se à análise de frequências para os dados categóricos e de medida de tendência central para os dados quantitativos. Na estatística inferencial utilizou-se o teste do Qui-Quadrado ou o teste de Fisher para a avaliação de associações entre variáveis categóricas e comparação de proporções independentes e o teste Kruskal-Wallis para comparação de medianas de dados quantitativos. Para todas as análises inferenciais considerou-se um nível de significância de p<0,05 e um intervalo de confiança de 95% (IC95%). Este estudo mereceu o parecer positivo da Comissão de Ética para a Saúde do Hospital Beatriz Ângelo.
Resultados
Em 2018 realizaram-se 775 IVG no Hospital Beatriz Ângelo, 771 das quais por opção da mulher (99,6%). Destas, foi possível apurar as características dos CSP em 728 casos (94,4%), tendo sido estas as mulheres analisadas neste estudo (Figura 1). Relativamente à localização dos CSP das utentes, 96,2% pertenciam à ARSLVT e 81,7% à área de influência do hospital (Tabela 1).
Tipologia de cuidados de saúde primários
Entre as mulheres que realizaram um aborto voluntário, 42,6% pertenciam a uma UCSP, 37,8% a uma USF modelo A e 19,6% a uma USF modelo B.
Ajustando os dados à proporção de mulheres em idade fértil (15-49 anos) inscritas em cada uma das modalidades de CSP na ARSLVT, verificou-se que as utentes de USF modelo A realizaram significativamente mais IVG que as mulheres inscritas em UCSP ou USF modelo B (p<0,001). Analisando exclusivamente as mulheres que pertenciam à área de influência do hospital objetivou-se que as utentes de USF modelo B realizaram menos abortos voluntários que as restantes (p=0,009) (Figura 2).
Médico de família
Verificou-se que 78,4% das mulheres que realizaram IVG tinham médico de família. No entanto, quando se ajustaram estes dados ao número de utentes com médico de família na ARSLVT ou na área de influência do hospital observou-se que as mulheres sem médico de família realizaram significativamente mais abortos voluntários (p<0,001) (Figura 3). Assim, as mulheres sem médico de família tinham um risco pelo menos 1,5 vezes superior de realizar uma IVG, quando comparadas com as mulheres com médico de família (Odds ratio=1,59; IC95% [1,33 ; 1,90]).
Contacto com os cuidados de saúde primários no ano prévio
As mulheres inscritas em USF modelo B tiveram mais consultas médicas presenciais nos CSP nos 12 meses que antecederam a IVG que as inscritas nas restantes tipologias de CSP (p<0,001) (Tabela 1).
Utilização de métodos contracetivos
As utentes de USF modelo B utilizaram significativamente mais métodos contracetivos nos 12 meses prévios ao aborto voluntário que as utentes de UCSP (p=0,022), não se tendo verificado diferenças estatisticamente significativas entre as utentes de USF modelo A e as restantes tipologias. As mulheres com médico de família também realizaram mais contraceção nos 12 meses que antecederam a interrupção da gravidez (p<0,001), sendo que o risco de não ter realizado qualquer método contracetivo no ano que antecedeu à realização do aborto voluntário era 2,5 vezes superior se a mulher não tinha médico de família atribuído, comparativamente às utentes com médico de família (Odds ratio=2,46; IC95% [1,62 ; 3,72]) (Tabela 2).
Discussão
Com o presente estudo constatou-se que as mulheres sem médico de família atribuído tinham um risco 1,5 vezes superior de realizar uma IVG e 2,5 vezes superior de não realizar contraceção nos doze meses prévios. Estes resultados demonstram o papel fundamental que os médicos de família têm na prestação de cuidados preventivos e de planeamento familiar e reforçam a importância de atribuir médico de família a toda a população portuguesa, garantindo a igualdade e facilidade de acesso aos CSP, bem como a promoção da literacia em saúde, a partir de uma perspetiva longitudinal.
O modelo USF pauta-se pela atribuição de médico de família à totalidade dos seus utentes. No entanto, verificou-se que, na ARSLVT, as mulheres pertencentes a uma USF modelo A realizavam mais IVG que as mulheres pertencentes a uma UCSP ou a uma USF modelo B. Além disso, não se verificaram diferenças estatisticamente significativas no que respeita à utilização de métodos contracetivos entre as mulheres que pertenciam a uma USF modelo A e outras tipologias de CSP. Significa que ter médico de família atribuído não é o único determinante a nível dos CSP que influencia o risco de realizar uma IVG e que outros fatores de desempenho, principalmente relativos às USF modelo A, importam ser identificados e discutidos.
realizavam mais IVG que as mulheres pertencentes a uma UCSP ou a uma USF modelo B. Além disso, não se verificaram diferenças estatisticamente significativas no que respeita à utilização de métodos contracetivos entre as mulheres que pertenciam a uma USF modelo A e outras tipologias de CSP. Significa que ter médico de família atribuído não é o único determinante a nível dos CSP que influencia o risco de realizar uma IVG e que outros fatores de desempenho, principalmente relativos às USF modelo A, importam ser identificados e discutidos.
As mulheres que pertenciam a uma USF modelo B tendiam a ter mais contactos médicos, a utilizar mais contraceção e a realizar menos IVG. Este modelo funcional tem-se revelado superior em termos de acessibilidade e desempenho ao nível de cuidados de saúde preventivos, com maiores taxas de utilização de consultas médicas e melhores resultados em todos os indicadores na gestão de saúde e doença, 22,24-25 fatores que podem justificar os resultados obtidos. Ao nível do planeamento familiar sabia-se apenas que, apesar das diferenças verificadas nas diferentes administrações regionais de saúde, todas as USF modelo B mostraram uma taxa média de utilização de consultas de planeamento familiar superior, seguidas pelas USF modelo A e, por fim, as UCSP. 22 O fator acessibilidade afirma-se como fundamental para obter ganhos na saúde da mulher; no entanto, mulheres que pertencem a uma USF modelo A realizaram mais IVG que mulheres pertencentes a uma UCSP, demostrando que a melhoria da acessibilidade por si só não se traduz na diminuição das gravidezes indesejadas e, consequentemente, no recurso a IVG.
Reconhecem-se algumas limitações neste trabalho. Por serem os dados disponíveis, foram utilizadas as IVG como marcador indireto do número de gravidezes indesejadas. Pela metodologia escolhida para a realização do estudo, apenas foi identificado se existiram ou não contactos médicos presenciais com a unidade de saúde a que a utente pertencia, não tendo sido possível determinar a tipologia de consulta a que recorreu. No entanto, dada a abordagem holística e integrativa dos CSP, em que todos os contactos são oportunidades para validar e/ou fornecer o método contracetivo e aconselhar sobre os mesmos, esta parece ser uma limitação menor. Os dados recolhidos referentes à atribuição ou não de médico de família e à tipologia de unidade de saúde primária foram os verificados no momento da colheita de dados, não refletindo alterações individuais que se possam ter verificado no ano civil de 2018, como a atribuição ou perda de médico de família, mudança de unidade de saúde ou alteração de tipologia organizacional da unidade de saúde. No entanto, estas situações são pontuais e não parece plausível que alterem a tendência geral dos dados.
No presente estudo não foi feita a caracterização sociodemográfica das mulheres pertencentes às diferentes tipologias de CSP, o que pode condicionar um viés na análise dos resultados. O Hospital Beatriz Ângelo é o segundo hospital público na ARSLVT e o terceiro a nível nacional a realizar um maior número de IVG por ano, não acompanhando a tendência decrescente nacional. Um estudo apresentado publicamente em 2020 traça o perfil sociodemográfico das mulheres que recorreram à consulta de IVG deste hospital entre 2012 e 2018. 26 Verificou-se que esta população se destacava por ter uma menor escolaridade e situações laborais mais precárias que a média nacional e que as mulheres com menos de 20 anos e imigrantes foram as que apresentaram maior risco de interromper a gravidez. No entanto, em termos absolutos, a maioria das mulheres que realizou um aborto voluntário tinha entre 20 e 40 anos, era portuguesa, tinha o 3º ciclo ou ensino secundário concluídos, era solteira, tinha filhos e estava desempregada ou tinha um trabalho não qualificado - perfil este que era sobreponível ao descrito noutros estudos nacionais. Assim, não se verificam fatores sociodemográficos que possam condicionar características distintas entre a população estudada e a população nacional, pelo que estes resultados poderão ser extrapoláveis para a realidade portuguesa, carecendo, contudo, de estudos confirmatórios.
Salienta-se que este estudo foi o primeiro em Portugal a cruzar os dados de uma consulta de IVG com os dados organizacionais dos CSP, apresentando dados ajustados à população estudada de forma a permitir uma análise real e contextualizada dos mesmos.
Os CSP são o pilar do Sistema Nacional de Saúde, constituindo a primeira porta de acesso aos cuidados de saúde. Por este motivo, são também os principais responsáveis pelo planeamento familiar em Portugal. Importa dotar as unidades funcionais de maior autonomia, permitindo-lhes atingir níveis organizacionais mais evoluídos. Melhores serviços de saúde associam-se a um menor número de IVG realizadas, tradução de melhores cuidados de saúde prestados à população.
Considera-se que seria importante realizar um estudo com maior nível de evidência e de caráter multicêntrico, com abrangência de outros ACeS e ARS, de forma a averiguar se a associação encontrada neste trabalho entre as características dos CSP e o recurso à interrupção da gravidez reflete, efetivamente, uma relação de causalidade e se estes resultados se mantêm no resto do país.
Conclusão
Na amostra estudada, as utentes de USF modelo B ou com médico de família atribuído realizaram menos IVG, tiveram maior contacto com os cuidados de saúde primários e utilizaram mais métodos contracetivos. Este estudo vai ao encontro da ideia de que melhores níveis de desempenho nos cuidados prestados em planeamento familiar têm um impacto significativo nas taxas de realização de abortos voluntários. Este efeito parece relacionar-se com a existência de médico de família atribuído e com níveis organizacionais superiores ou mais evoluídos. Urge, pois, aplicar medidas de melhoria de qualidade e acessibilidade aos serviços de planeamento familiar nos CSP e promover a autonomia organizacional das unidades funcionais.