SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.38 número4Sistemas de nebulização em idade pediátrica: uso domiciliário em São MiguelQuando o exame neurológico não tranquiliza: um caso de doença de Creutzfeldt-Jakob índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.38 no.4 Lisboa ago. 2022  Epub 31-Ago-2022

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v38i4.13207 

Estudos originais

Associação entre a realização de interrupção voluntária da gravidez e a tipologia de cuidados de saúde primários: um estudo transversal

Association between voluntary termination of pregnancy and type of primary care: a cross-sectional study

Catarina Neves Santos1  , Conceptualização, metodologia, validação, investigação, análise formal, recursos, gestão de dados, redação do draft original, redação, revisão, validação do texto final, visualização, supervisão
http://orcid.org/0000-0003-3232-1928

Beatriz Chambel2  3  , Conceptualização, metodologia, validação, investigação, análise formal, recursos, gestão de dados, redação do draft original, redação, revisão, validação do texto final, visualização, supervisão, administração do projeto

1. Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Ramada, ACeS Loures-Odivelas. Odivelas, Portugal.

2. Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Novo Mirante, ACeS Loures-Odivelas. Lisboa, Portugal.

3. Assistente Convidada. Instituto de Histologia e Biologia do Desenvolvimento, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Lisboa, Portugal.


Resumo

Introdução:

Melhor desempenho nos cuidados de planeamento familiar (PF) permitiria, teoricamente, reduzir as taxas de gravidezes indesejadas e, consequentemente, as interrupções voluntárias da gravidez (IVG).

Objetivos:

Verificar a existência de associação entre fatores organizacionais dos cuidados de saúde primários (CSP) e o recurso à consulta de IVG do Hospital Beatriz Ângelo, na população de mulheres que a esta recorreu durante o ano de 2018.

Métodos:

Estudo observacional, analítico e transversal. Os dados foram colhidos da base de dados da consulta de IVG do ano 2018 e do Registo de Saúde Eletrónico. Foi realizada uma análise estatística descritiva e inferencial utilizando o programa SPSS®.

Resultados:

Cerca de 39,1% das mulheres que realizaram uma IVG pertenciam a uma UCSP, 38,3% a uma USF modelo A e 22,6% a uma USF modelo B, sendo que 21,5% não tinham médico de família (MF). Após ajuste dos dados verificou-se que as utentes de uma USF modelo B ou com MF realizaram significativamente menos IVG (p=0,009 e p=0,001, respetivamente). As utentes de USF modelo B tiveram mais consultas nos CSP (p<0,001) e utilizaram mais métodos contracetivos (p=0,022) nos 12 meses prévios à IVG. Também as mulheres com MF realizaram mais contraceção no ano anterior à IVG (p<0,001).

Conclusões:

O melhor acesso aos CSP e o maior uso de contraceção que se verificam entre as utentes de USF modelo B ou com MF associam-se a uma menor realização de IVG. Ter MF mas, principalmente, pertencer a uma USF modelo B revela-se protetor face à realização de IVG, evidenciando a necessidade de atribuir MF a toda a população, melhorar a acessibilidade aos serviços de PF e incentivar a autonomia organizacional ao nível dos CSP.

Palavras-chave: Aborto legal; Serviços de planeamento familiar; Cuidados de saúde primários; Comportamento contracetivo

Abstract

Introduction:

Better performance in family planning (FP) care would, theoretically, reduce the rates of unwanted pregnancies and, consequently, the rates of voluntary terminations of pregnancy (VTP).

Aims:

To verify the existence of an association between organizational factors of primary health care (PHC) and the use of VTP consultation at Hospital Beatriz Ângelo, among the women who resorted to it in 2018.

Methods:

Observational, analytical, and cross-sectional study. Data were collected from the database of a VTP consultation in 2018 and the Electronic Health Record. Descriptive and inferential statistical analysis were performed using SPSS®.

Results:

About 39.1% of women who underwent a VTP belonged to a UCSP, 38.3% to a USF model A, and 22.6% to a USF model B, with 21.5% not having a family doctor (FD). After data adjustment, we found that users of USF model B or with FD had significantly less VTP (p=0.009 and p=0.001, respectively). USF model B users had more visits to PHC in the 12 months before the VTP (p<0.001) and used more contraceptive methods (p=0.022). Women with FD also used more contraceptive methods in the year before VTP (p<0.001).

Conclusions:

The better access to PHC and greater use of contraception that is observed among users of USF model B or women with FD are associated with the lower performance of VTP. Having FD but, mainly, belonging to a USF model B, is protective against the realization of VTP, highlighting the need to assign a FD to the entire population, improve accessibility to FP services and encourage organizational autonomy in the PHC setting.

Keywords: Legal abortion; Family planning services; Primary health care; Contraception behavior

Introdução

Estima-se que mundialmente 41% de todas as gravidezes sejam indesejadas e que, destas, aproximadamente metade termine em IVG. 1 Sabe-se que a melhoria da acessibilidade ao planeamento familiar e à contraceção se associam a uma diminuição destas gravidezes e, consequentemente, dos abortos voluntários, 2-7 observando-se este fenómeno um pouco por todo o mundo mas, em especial, nos países desenvolvidos. 1,8-9 Portugal encontra-se acima da média europeia em políticas de planeamento familiar, o que pode ter contribuído para que, desde 2011, o número total de abortos voluntários por ano tenha vindo a diminuir. 10-12 Ainda assim, este número têm-se mantido sempre acima das 14.500 IVG/ano. 10,12 Apesar da segurança dos métodos disponíveis para a interrupção da gravidez, estes procedimentos não são isentos de risco de complicações, nem se pode desprezar o impacto que representam na saúde mental das mulheres que a eles recorrem. 13-18 Importa, pois, analisar os cuidados de planeamento familiar que têm sido prestados e identificar áreas de melhoria da qualidade e da acessibilidade.

Em Portugal, a maioria dos cuidados de planeamento familiar são prestados nos cuidados de saúde primários (CSP). A reforma destes, que se iniciou em 2005, originou tipologias de unidades de saúde organizacionalmente diferentes - as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) e as Unidades de Saúde Familiares (USF), que se dividem em dois níveis, as USF modelo A e as USF modelo B. Todas elas têm a responsabilidade de oferecer cuidados em planeamento familiar, mas distinguem-se por níveis crescentes de amadurecimento organizacional, autonomia, incentivos financeiros e desempenhos mais exigentes. 19-21 Estudos indicam que as USF modelo B exibem maior taxa de utilização de consultas de planeamento familiar. 22 No entanto, não existem ainda estudos que correlacionem os níveis organizacionais dos CSP com uma efetiva melhoria de resultados na área do planeamento familiar.

O objetivo deste trabalho foi verificar a existência de associação entre características organizacionais dos CSP, nomeadamente a tipologia de unidade de saúde, ter médico de família atribuído e ter contactos recentes com a unidade de saúde, bem como a realização de contraceção nos doze meses que antecederam o aborto voluntário e o recurso à IVG.

Métodos

Foi realizado um estudo observacional, analítico e transversal.

Através da base de dados da consulta de IVG do Hospital Beatriz Ângelo foram selecionadas todas as utentes que realizaram um aborto voluntário por opção da mulher, nesse hospital, durante o ano civil de 2018. Com base no Registo de Saúde Eletrónico foram analisadas as variáveis: tipologia de CSP (UCSP, USF modelo A ou USF modelo B), existência de médico de família atribuído e número de contactos médicos presenciais com os CSP nos doze meses que antecederam a realização do aborto voluntário (independentemente da tipologia de consulta). Através da base de dados da consulta de IVG extraiu-se a variável utilização de método contracetivo nos doze meses prévios ao aborto voluntário (informação transmitida diretamente pela mulher durante a consulta prévia à IVG). Foram excluídas as utentes sobre as quais não havia informação disponível relativamente à tipologia de CSP, atribuição de médico de família e número de contactos com os CSP. As referidas variáveis foram colhidas em julho de 2019, sendo que os dados foram anonimizados e não houve lugar à consulta de qualquer registo clínico.

Para ajuste dos dados recorreu-se à plataforma Bilhete de Identidade dos Cuidados de Saúde Primários (BI-CSP). 23 Para a variável tipologia de CSP procedeu-se ao ajuste com base no número de utentes do sexo feminino em idade fértil inscritas na Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) e área de referência do Hospital Beatriz Ângelo. Para a variável existência de médico de família atribuído realizou-se o ajuste dos dados a partir do número de utentes inscritos (independentemente do sexo e idade) na ARSLVT e área de referência do hospital. Em ambos os casos, a informação obtida era relativa a julho de 2019.

Os dados foram tratados no software Microsoft Office Excel® e analisados estatisticamente no software IBM SPSS® v. 25. Para o estudo descritivo procedeu-se à análise de frequências para os dados categóricos e de medida de tendência central Os dados foram tratados no software Microsoft Office Excel® e analisados estatisticamente no software IBM SPSS® v. 25. Para o estudo descritivo procedeu-se à análise de frequências para os dados categóricos e de medida de tendência central para os dados quantitativos. Na estatística inferencial utilizou-se o teste do Qui-Quadrado ou o teste de Fisher para a avaliação de associações entre variáveis categóricas e comparação de proporções independentes e o teste Kruskal-Wallis para comparação de medianas de dados quantitativos. Para todas as análises inferenciais considerou-se um nível de significância de p<0,05 e um intervalo de confiança de 95% (IC95%). Este estudo mereceu o parecer positivo da Comissão de Ética para a Saúde do Hospital Beatriz Ângelo.

Resultados

Em 2018 realizaram-se 775 IVG no Hospital Beatriz Ângelo, 771 das quais por opção da mulher (99,6%). Destas, foi possível apurar as características dos CSP em 728 casos (94,4%), tendo sido estas as mulheres analisadas neste estudo (Figura 1). Relativamente à localização dos CSP das utentes, 96,2% pertenciam à ARSLVT e 81,7% à área de influência do hospital (Tabela 1).

Figura 1 Fluxograma amostral. Legenda: IVG = Interrupção voluntária da gravidez; RSE = Registo de saúde eletrónico; CSP = Cuidados de saúde primários. 

Tabela 1 Características dos cuidados de saúde primários e utilização de métodos contracetivos das utentes que realizaram uma interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher 

Tipologia de cuidados de saúde primários

Entre as mulheres que realizaram um aborto voluntário, 42,6% pertenciam a uma UCSP, 37,8% a uma USF modelo A e 19,6% a uma USF modelo B.

Ajustando os dados à proporção de mulheres em idade fértil (15-49 anos) inscritas em cada uma das modalidades de CSP na ARSLVT, verificou-se que as utentes de USF modelo A realizaram significativamente mais IVG que as mulheres inscritas em UCSP ou USF modelo B (p<0,001). Analisando exclusivamente as mulheres que pertenciam à área de influência do hospital objetivou-se que as utentes de USF modelo B realizaram menos abortos voluntários que as restantes (p=0,009) (Figura 2).

Figura 2 Realização de interrupção voluntária da gravidez segundo a tipologia de cuidados de saúde primários. Legenda: IVG = Interrupção voluntária da gravidez; ARSLVT = Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo; UCSP = Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados; USF = Unidade de Saúde Familiar. * Teste de Qui-quadrado. 

Médico de família

Verificou-se que 78,4% das mulheres que realizaram IVG tinham médico de família. No entanto, quando se ajustaram estes dados ao número de utentes com médico de família na ARSLVT ou na área de influência do hospital observou-se que as mulheres sem médico de família realizaram significativamente mais abortos voluntários (p<0,001) (Figura 3). Assim, as mulheres sem médico de família tinham um risco pelo menos 1,5 vezes superior de realizar uma IVG, quando comparadas com as mulheres com médico de família (Odds ratio=1,59; IC95% [1,33 ; 1,90]).

Figura 3 Realização de interrupção voluntária da gravidez consoante a atribuição de médico de família. Legenda: IVG = Interrupção voluntária da gravidez; ARSLVT = Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo; OR = Odds ratio; IC95% = Intervalo de confiança de 95%. ‡ Utentes inscritos na ARSLVT ou área de influência do Hospital Beatriz Ângelo com e sem médico de família atribuído. Excluídos os utentes sem médico de família atribuído por opção. * Teste de Qui-quadrado. 

Contacto com os cuidados de saúde primários no ano prévio

As mulheres inscritas em USF modelo B tiveram mais consultas médicas presenciais nos CSP nos 12 meses que antecederam a IVG que as inscritas nas restantes tipologias de CSP (p<0,001) (Tabela 1).

Utilização de métodos contracetivos

As utentes de USF modelo B utilizaram significativamente mais métodos contracetivos nos 12 meses prévios ao aborto voluntário que as utentes de UCSP (p=0,022), não se tendo verificado diferenças estatisticamente significativas entre as utentes de USF modelo A e as restantes tipologias. As mulheres com médico de família também realizaram mais contraceção nos 12 meses que antecederam a interrupção da gravidez (p<0,001), sendo que o risco de não ter realizado qualquer método contracetivo no ano que antecedeu à realização do aborto voluntário era 2,5 vezes superior se a mulher não tinha médico de família atribuído, comparativamente às utentes com médico de família (Odds ratio=2,46; IC95% [1,62 ; 3,72]) (Tabela 2).

Tabela 2 Utilização de métodos contracetivos nos 12 meses prévios à interrupção voluntária da gravidez de acordo com a tipologia de cuidados de saúde primários e atribuição de médico de família 

Discussão

Com o presente estudo constatou-se que as mulheres sem médico de família atribuído tinham um risco 1,5 vezes superior de realizar uma IVG e 2,5 vezes superior de não realizar contraceção nos doze meses prévios. Estes resultados demonstram o papel fundamental que os médicos de família têm na prestação de cuidados preventivos e de planeamento familiar e reforçam a importância de atribuir médico de família a toda a população portuguesa, garantindo a igualdade e facilidade de acesso aos CSP, bem como a promoção da literacia em saúde, a partir de uma perspetiva longitudinal.

O modelo USF pauta-se pela atribuição de médico de família à totalidade dos seus utentes. No entanto, verificou-se que, na ARSLVT, as mulheres pertencentes a uma USF modelo A realizavam mais IVG que as mulheres pertencentes a uma UCSP ou a uma USF modelo B. Além disso, não se verificaram diferenças estatisticamente significativas no que respeita à utilização de métodos contracetivos entre as mulheres que pertenciam a uma USF modelo A e outras tipologias de CSP. Significa que ter médico de família atribuído não é o único determinante a nível dos CSP que influencia o risco de realizar uma IVG e que outros fatores de desempenho, principalmente relativos às USF modelo A, importam ser identificados e discutidos.

realizavam mais IVG que as mulheres pertencentes a uma UCSP ou a uma USF modelo B. Além disso, não se verificaram diferenças estatisticamente significativas no que respeita à utilização de métodos contracetivos entre as mulheres que pertenciam a uma USF modelo A e outras tipologias de CSP. Significa que ter médico de família atribuído não é o único determinante a nível dos CSP que influencia o risco de realizar uma IVG e que outros fatores de desempenho, principalmente relativos às USF modelo A, importam ser identificados e discutidos.

As mulheres que pertenciam a uma USF modelo B tendiam a ter mais contactos médicos, a utilizar mais contraceção e a realizar menos IVG. Este modelo funcional tem-se revelado superior em termos de acessibilidade e desempenho ao nível de cuidados de saúde preventivos, com maiores taxas de utilização de consultas médicas e melhores resultados em todos os indicadores na gestão de saúde e doença, 22,24-25 fatores que podem justificar os resultados obtidos. Ao nível do planeamento familiar sabia-se apenas que, apesar das diferenças verificadas nas diferentes administrações regionais de saúde, todas as USF modelo B mostraram uma taxa média de utilização de consultas de planeamento familiar superior, seguidas pelas USF modelo A e, por fim, as UCSP. 22 O fator acessibilidade afirma-se como fundamental para obter ganhos na saúde da mulher; no entanto, mulheres que pertencem a uma USF modelo A realizaram mais IVG que mulheres pertencentes a uma UCSP, demostrando que a melhoria da acessibilidade por si só não se traduz na diminuição das gravidezes indesejadas e, consequentemente, no recurso a IVG.

Reconhecem-se algumas limitações neste trabalho. Por serem os dados disponíveis, foram utilizadas as IVG como marcador indireto do número de gravidezes indesejadas. Pela metodologia escolhida para a realização do estudo, apenas foi identificado se existiram ou não contactos médicos presenciais com a unidade de saúde a que a utente pertencia, não tendo sido possível determinar a tipologia de consulta a que recorreu. No entanto, dada a abordagem holística e integrativa dos CSP, em que todos os contactos são oportunidades para validar e/ou fornecer o método contracetivo e aconselhar sobre os mesmos, esta parece ser uma limitação menor. Os dados recolhidos referentes à atribuição ou não de médico de família e à tipologia de unidade de saúde primária foram os verificados no momento da colheita de dados, não refletindo alterações individuais que se possam ter verificado no ano civil de 2018, como a atribuição ou perda de médico de família, mudança de unidade de saúde ou alteração de tipologia organizacional da unidade de saúde. No entanto, estas situações são pontuais e não parece plausível que alterem a tendência geral dos dados.

No presente estudo não foi feita a caracterização sociodemográfica das mulheres pertencentes às diferentes tipologias de CSP, o que pode condicionar um viés na análise dos resultados. O Hospital Beatriz Ângelo é o segundo hospital público na ARSLVT e o terceiro a nível nacional a realizar um maior número de IVG por ano, não acompanhando a tendência decrescente nacional. Um estudo apresentado publicamente em 2020 traça o perfil sociodemográfico das mulheres que recorreram à consulta de IVG deste hospital entre 2012 e 2018. 26 Verificou-se que esta população se destacava por ter uma menor escolaridade e situações laborais mais precárias que a média nacional e que as mulheres com menos de 20 anos e imigrantes foram as que apresentaram maior risco de interromper a gravidez. No entanto, em termos absolutos, a maioria das mulheres que realizou um aborto voluntário tinha entre 20 e 40 anos, era portuguesa, tinha o 3º ciclo ou ensino secundário concluídos, era solteira, tinha filhos e estava desempregada ou tinha um trabalho não qualificado - perfil este que era sobreponível ao descrito noutros estudos nacionais. Assim, não se verificam fatores sociodemográficos que possam condicionar características distintas entre a população estudada e a população nacional, pelo que estes resultados poderão ser extrapoláveis para a realidade portuguesa, carecendo, contudo, de estudos confirmatórios.

Salienta-se que este estudo foi o primeiro em Portugal a cruzar os dados de uma consulta de IVG com os dados organizacionais dos CSP, apresentando dados ajustados à população estudada de forma a permitir uma análise real e contextualizada dos mesmos.

Os CSP são o pilar do Sistema Nacional de Saúde, constituindo a primeira porta de acesso aos cuidados de saúde. Por este motivo, são também os principais responsáveis pelo planeamento familiar em Portugal. Importa dotar as unidades funcionais de maior autonomia, permitindo-lhes atingir níveis organizacionais mais evoluídos. Melhores serviços de saúde associam-se a um menor número de IVG realizadas, tradução de melhores cuidados de saúde prestados à população.

Considera-se que seria importante realizar um estudo com maior nível de evidência e de caráter multicêntrico, com abrangência de outros ACeS e ARS, de forma a averiguar se a associação encontrada neste trabalho entre as características dos CSP e o recurso à interrupção da gravidez reflete, efetivamente, uma relação de causalidade e se estes resultados se mantêm no resto do país.

Conclusão

Na amostra estudada, as utentes de USF modelo B ou com médico de família atribuído realizaram menos IVG, tiveram maior contacto com os cuidados de saúde primários e utilizaram mais métodos contracetivos. Este estudo vai ao encontro da ideia de que melhores níveis de desempenho nos cuidados prestados em planeamento familiar têm um impacto significativo nas taxas de realização de abortos voluntários. Este efeito parece relacionar-se com a existência de médico de família atribuído e com níveis organizacionais superiores ou mais evoluídos. Urge, pois, aplicar medidas de melhoria de qualidade e acessibilidade aos serviços de planeamento familiar nos CSP e promover a autonomia organizacional das unidades funcionais.

Agradecimentos

As autoras gostariam de agradecer ao Dr. J. J. Prado González pela oportunidade e apoio na realização deste estudo.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse ou fontes de financiamento a declarar.

Referências bibliográficas

1. Sedgh G, Bearak J, Singh S, Bankole A, Popinchalk A, Ganatra B, et al. Abortion incidence between 1990 and 2014: global, regional, and subregional levels and trends. Lancet. 2016;388(10041):258-67. [ Links ]

2. Yogi A, Prakash KC, Neupane S. Prevalence and factors associated with abortion and unsafe abortion in Nepal: a nationwide cross-sectional study. BMC Pregnancy Childbirth. 2018;18:376. [ Links ]

3. Llorente-Marrón M, Díaz-Fernández M, Méndez-Rodríguez P. Contextual determinants of induced abortion: a panel analysis. Rev Saude Publica. 2016;50:8. [ Links ]

4. Rodriguez-Alvarez E, Borrell LN, González-Rábago Y, Martín U, Lanborena N. Induced abortion in a Southern European region: examining inequalities between native and immigrant women. Int J Public Health. 2016;61(7):829-36. [ Links ]

5. Zurriaga O, Martínez-Beneito MA, Galmés Truyols A, Mar Torne M, Bosch S, Bosser R, et al. Recourse to induced abortion in Spain: profiling of users and the influence of migrant populations. Gac Sanit. 2009;23 Suppl 1:57-63. [ Links ]

6. Peipert JF, Madden T, Allsworth JE, Secura GM. Preventing unintended pregnancies by providing no-cost contraception. Obstet Gynecol. 2012;120(6):1291-7. [ Links ]

7. Birgisson NE, Zhao Q, Secura GM, Madden T, Peipert JF. Preventing unintended pregnancy: the contraceptive CHOICE Project in review. J Womens Health. 2015;24(5):349-53. [ Links ]

8. World Health Organization. Safe abortion: technical and policy guidance for health systems [Internet]. Geneva: WHO; 2015. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/173586/WHO_RHR_15.04_eng.pdf [ Links ]

9. Singh S, Remez L, Sedgh G, Kwok L, Onda T. Abortion worldwide 2017: uneven progress and unequal access [homepage]. New York: Guttmacher Institute; 2018. Available from: https://www.guttmacher.org/report/abortion-worldwide-2017 [ Links ]

10. Direção-Geral da Saúde. Relatório dos registos das interrupções da gravidez: dados de 2016. Lisboa: DGS; 2017. [ Links ]

11. The Contraception Atlas. Limited access: Europe's contraception deficit - a white paper [Internet]. Brussels: The European Parliamentary Forum on Population and Development; 2018. Available from: https://www.epfweb.org/sites/default/files/2020-05/786209755_epf_contraception-in-europe_white-paper_cc03_002.pdf [ Links ]

12. Direção-Geral da Saúde. Relatório dos registos das interrupções da gravidez, 2018. Lisboa: Direção-Geral da Saúde; 2018. [ Links ]

13. Levine EM, editor. Induced abortion. DynaMed [Internet]; 2018 [cited 2019 Feb 5]. Available from: https://www.dynamed.com/procedure/induced-abortionLinks ]

14. Upadhyay UD, Desai S, Zlidar V, Weitz TA, Grossman D, Anderson P, et al. Incidence of emergency department visits and complications after abortion. Obstet Gynecol. 2015;125(1):175-83. [ Links ]

15. Gerdts C, Dobkin L, Foster DG, Schwarz EB. Side effects, physical health consequences, and mortality associated with abortion and birth after an unwanted pregnancy. Womens Health Issues. 2016;26(1):55-9. [ Links ]

16. Raymond EG, Grimes DA. The comparative safety of legal induced abortion and childbirth in the United States. Obstet Gynecol. 2012;119(2 Pt 1):215-9. [ Links ]

17. Limoncin E, D'Alfonso A, Corallino C, Cofini V, Di Febbo G, Ciocca G, et al. The effect of voluntary termination of pregnancy on female sexual and emotional well-being in different age groups. J Psychosom Obstet Gynaecol. 2017;38(4):310-6. [ Links ]

18. Campo-Arias A, Herazo E. Voluntary interruption of pregnancy in Colombia: contributions to the debate from public mental health. Rev Colomb Psiquiatr. 2018;47(4):201-3. [ Links ]

19. Biscaia AR, Heleno LC. Primary health care reform in Portugal: Portuguese, modern and innovative. Cienc Saude Colet. 2017;22(3):701-11. [ Links ]

20. Lapão LV, Pisco L. A reforma da atenção primária à saúde em Portugal, 2005-2018: o futuro e os desafios da maturidade [Primary health care reform in Portugal, 2005-2018: the future and challenges of coming of age]. Cad Saude Publica. 2019;35(Suppl 2):e00042418. Portuguese [ Links ]

21. Teixeira CJ. Diferentes modelos organizativos de cuidados de saúde primários apresentam diferenças no desempenho? [dissertation]. Faro: Faculdade de Economia da Universidade do Algarve; 2017. [ Links ]

22. Entidade Reguladora da Saúde. Estudo sobre as Unidades de Saúde Familiar e as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados [Internet]. Porto: ERC; 2016. Available from: https://www.ers.pt/uploads/writer_file/document/1792/ERS_-_Estudo_USF_e_UCSP_-_final.pdf [ Links ]

23. Serviço Nacional de Saúde. Bilhete de identidade dos cuidados de saúde primários [homepage]. Lisboa: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2019 Dec 6]. Available from: https://bicsp.min-saude.pt/pt/Paginas/default.aspx [ Links ]

24. Ferreira PL, Raposo V. Monitorização da satisfação dos utilizadores das USF e de uma amostra de UCSP [Internet]. Coimbra: Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra; 2015. Available from: https://www.acss.min-saude.pt/wp-content/uploads/2016/11/Estudo_CSP.pdf [ Links ]

25. Pereira A, Nunes C, Botelho H, Biscaia JL, Barbosa M, Oliveira M, et al. Avaliação custos-consequências das USF B e UCSP 2015: unidades funcionais dos CSP como centros de resultados [Internet]. Lisboa: Coordenação Nacional para a Reforma do SNS; 2018. Available from: https://www.sns.gov.pt/wp-content/uploads/2018/02/CNCSP-Avalia%C3%A7%C3%A3o_USF-1.pdf [ Links ]

26. Santos CN, Chambel B, Prado González JJ. Perfil das mulheres que realizam interrupções voluntárias da gravidez: um estudo transversal [Profile of women who have voluntary interruptions of pregnancy: a cross-sectional study]. Acta Obstet Ginecol Port. 2022;16(1):10-21. [ Links ]

Recebido: 25 de Março de 2021; Aceito: 21 de Fevereiro de 2022

Endereço para correspondência Catarina Neves Santos E-mail: catarinansantos90@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons