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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.38 no.5 Lisboa out. 2022  Epub 31-Out-2022

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v38i5.13394 

Revisões

Determinantes do adoecimento mental na população sem-abrigo

Determinants of mental illness in the homeless population

1. Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental, Centro Hospitalar do Médio Tejo. Tomar, Portugal.


Resumo

A definição de sem-abrigo não é consensual e varia entre alguém que vive literalmente na rua a um conceito mais alargado. Ser sem-abrigo resulta de um fenómeno heterogéneo e multidimensional, que pode afetar não só os indivíduos mais vulneráveis, como também aqueles que se encontram numa situação económica e social estável. A relação entre ser sem-abrigo e ter doença psiquiátrica é há muito conhecida. Há uma maior prevalência de todas as patologias mentais em sem-abrigo em relação à população geral, situando-se entre os 25 a 50%. O risco de ficar em situação de sem-abrigo para pessoas diagnosticadas com doenças mentais é dez vezes maior do que para a população em geral, na medida em que a funcionalidade e a autonomia dos indivíduos podem ficar altamente afetadas. Além disso, as adversidades associadas a tornar-se e a permanecer sem-abrigo são complexas e podem também elas criar combinações únicas de fatores de stresse para problemas de saúde mental. Trabalhar com pessoas em situação de sem-abrigo e, especialmente com doença mental, é um trabalho exigente. O problema central nos sem-abrigo com doenças mentais é a falta de acessibilidade aos tratamentos na comunidade e de habitação adequada. As políticas sociais devem ser abrangentes e ter em consideração a heterogeneidade da população sem-abrigo, desenvolvendo estratégias ajustadas às diferentes necessidades, flexíveis e adaptadas a cada pessoa.

Palavras-chave: Sem-abrigo; Doença mental em sem-abrigo; Intervenções psicossociais; Housing-first

Abstract

The definition of homeless is not consensual and varies between someone who literally lives on the street, to a broader definition. Being homeless is the result of a heterogeneous and multidimensional phenomenon, which can affect not only the most vulnerable individuals but also those who were in a stable economic and social situation. The relationship between homelessness and psychiatric illness has long been known. There is a higher prevalence of all mental pathologies ranging from 25 to 50%. The risk of becoming homeless for people diagnosed with mental illness is ten times greater than for the general population because the functionality and autonomy of the subjects can be highly affected. The adversities associated with becoming and staying homeless are complex and can create unique combinations of stressors for people with a predisposition to mental health problems. Working with homeless people is hard work. The central problem for the homeless with mental illness is the lack of accessibility to treatment in the community and the lack of adequate housing. Social policies must be comprehensive and consider the heterogeneity of the homeless population, developing strategies adjusted to different needs, flexible, and adapted to each person.

Keywords: Homelessness; Homeless person with mental illness; Psychosocial interventions; Housing-first

Introdução

Ser sem-abrigo não passa apenas pela ausência de um lugar para viver. É um fenómeno complexo que se reflete em questões sociais e de saúde pública preocupantes, pelo que requer atenção e merece ser alvo de todos os estudos possíveis.1

O termo “sem-abrigo” surge da tradução do francês sans abri e do inglês homeless. Sans abri reporta-se à ideia de falta de habitat que protege o homem do frio, do vento ou da chuva. Já o termo homeless refere-se à pessoa que, para além da falta de residência, mostra algum grau de isolamento social ou desafiliação, o que difere de houseless, que indica a simples falta de residência física. (2 Por desafiliado entende-se “aquele que se libertou das constrições dos laços afiliativos estáveis”: família, escola, trabalho, religião, política e recreação. (3

Do ponto de vista etimológico, “abrigo” deriva do latim apricus, que significa alperce ou fruto que amadurece ao Sol. Sem-abrigo são assim os que vivem na sombra e que não têm direito ao Sol. (2

A forma como definimos o que é viver em situação de sem-abrigo é muito importante, porque determina a forma como os contamos. É difícil encontrar uma definição consensual, pois é um fenómeno que muitas vezes reflete mais o ambiente político de cada nação que propriamente a realidade desta população. (1 Esta varia entre alguém literalmente sem-teto, ou seja, que vive na rua e não dispõe de local para dormir, exceto abrigo público (definição essencialmente adotada nos Estados Unidos da América), e uma definição mais alargada que é principalmente utilizada na Europa. Esta divide as situações de sem-abrigo em quatro categorias: (1) sem-teto: pessoas que vivem na rua ou pessoas que pernoitam num albergue noturno; (2) sem-casa: pessoas em centros de acolhimento específicos para pessoas em situação de sem-abrigo, para imigrantes ou para mulheres, pessoas em vias de sair de instituições, pessoas em alojamentos de longa-duração próprios para pessoas em situação de sem-abrigo; (3) habitação insegura: a viver em casa de familiares ou amigos, subarrendamentos ilegais, em vias de serem despejadas ou vítimas de violência na residência onde estão; e (4) habitação inadequada: pessoas a viver em estruturas não convencionais, como barracas ou habitações móveis, a ocupar edifícios ou em situação de habitações sobrelotadas. (4

A situação de sem-abrigo é um processo em que as capacidades de um indivíduo são progressivamente afetadas, diminuindo as suas possibilidades de escolha e, consequentemente, a sua liberdade. (4

Em Portugal, e segundo a Estratégia Nacional Para a Integração de Pessoas em Situação Sem-Abrigo, define-se sem-abrigo como “aquele que, independentemente da sua nacionalidade, origem racial ou étnica, religião, idade, sexo, orientação sexual, condição socioeconómica e condição de saúde física e mental, se encontre: sem teto, a viver no espaço público, alojado em abrigo de emergência ou em local precário; ou sem casa, encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito”. (5

Métodos

Foi realizada uma revisão bibliográfica da literatura. Os artigos foram identificados através das seguintes bases de dados: PubMed, MEDLINE, LILACS e Google Académico. Limitou-se a pesquisa ao período entre 2000 e 2021, artigos em língua inglesa ou portuguesa e disponíveis para consulta em texto integral.

A procura foi conduzida usando as seguintes palavras-chave: homeless, mental disease, sem-abrigo e mental. Foram consideradas ainda as referências dos artigos identificadas como relevantes, com base nas citações dos estudos revistos.

Inicialmente foram identificados 1.641 estudos. Como base no título e resumos que indicavam uma aproximação com o tema foram selecionados 100 artigos para uma revisão detalhada.

Discussão

Sem-abrigo ao longo da história

Em todas as sociedades, em todas as culturas, em todos os tempos, sempre existiram pessoas sem local de acolhimento ou a viver em parte incerta. Em Portugal, a Lei das Sesmarias, criada em 1373 por D. Fernando, instituía que “os mendigos e ociosos seriam presos, só podendo mendigar os fracos, velhos e doentes”. Por toda a Europa, estes foram condenados, torturados e abandonados sem piedade. Em Inglaterra, em meados do século XVI, foram enforcados milhares de sem-abrigo e a instaurada a Lei da Vagabundagem. (2,6

Em Portugal, após a Revolução de 1974 são abolidas as políticas de repressão e, em 1976, é criado o Decreto-Lei que revoga a repressão à mendicidade. Desta forma, é introduzida uma nova compreensão do fenómeno dos sem-abrigo, sendo que no quadro atual não é possível punir ninguém por dormir na rua. (2,6

Epidemiologia e caracterização

Em 2011, a Organização das Nações Unidas estimava existirem, em todo o mundo, cerca de cem milhões de pessoas nas ruas, seiscentos milhões de pessoas a viverem em abrigos e mais de mil milhões em moradias sem condições dignas. (2 A nível europeu, o número de sem-abrigo tem sofrido um constante aumento, estimando-se em dezoito milhões o número de pessoas que estão impedidas de aceder a uma habitação condigna. Três milhões estão efetivamente sem teto e quinze milhões vivem em casas superlotadas e sem condições de habitabilidade. (7

Em Portugal, e segundo a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, em 2020, 7.107 pessoas eram sem-abrigo. As áreas metropolitanas de Lisboa e Porto concentravam 72% do valor total. (8

O perfil do sem-abrigo em Portugal, extrapolado a partir de dados reunidos, retrata um homem entre os 45 e os 64 anos, solteiro ou divorciado, português e com uma retaguarda familiar inexistente. Terá o 2.º ou 3.º ciclo, baixas qualificações profissionais e competências pessoais e sociais deficitárias. Estará nesta situação há mais de um e há menos de cinco anos e tem fortes probabilidades de desenvolver problemas de saúde físicos e mentais pela falta de acompanhamento médico. É beneficiário do Rendimento Social de Inserção e recorrerá a outras fontes paralelas de rendimento como, por exemplo, arrumar carros ou a mendicidade. É provavelmente consumidor de álcool ou substâncias psicoativas ilícitas, podendo ter sido esta a causa ou consequência da sua situação. (9

As características dos sem-abrigo apresentam consideráveis diferenças com as dos existentes há duas décadas. Aos “marginalizados” clássicos acresce uma nova geração de excluídos que resultam do desemprego, consumo de substâncias, crise económica e de valores e da influência das políticas sociais. (7

Como se chega a uma situação de sem-abrigo?

Ser sem-abrigo resulta de um fenómeno heterogéneo e multidimensional, que pode afetar não só os indivíduos mais vulneráveis como também aqueles que se encontram numa situação económica e social estável e que, num certo período das suas vidas, se destabiliza radicalmente. (6

Vários modelos explicativos têm sido criados para se compreender como uma pessoa chega à situação de sem-abrigo. O modelo criado por Nooe e Patterson, um dos mais completos, explica que fatores de índole biopsicossocial e estrutural, ao interagir entre si, potenciam-se e podem conduzir a esta situação (Figura 1). (10

Figura 1 Modelo ecológico da situação de sem-abrigo, de Nooe e Patterson (2010), adaptado de Gonçalves (2016). (4  

Adoecimento mental nos sem-abrigo

Os conceitos de sem-abrigo e doença mental foram associados há mais de cem anos pela porta da errância patológica, de “indivíduos mentalmente diminuídos afetados pela dromomania dos degenerados” ou pelo automatismo ambulatório. (2 Wilmanns, psiquiatra alemão, desenvolveu o conceito de instinto de migração num estudo de 1906, o que, juntamente com a teoria das personalidades psicopáticas de Kurt Schneider, justificava, em termos psicológicos, a situação de sem-abrigo. Já Henry Ey criou, em 1978, a noção de fuga psicopática para explicar a condição de sem-abrigo como uma doença mental crónica. No século XIX apresentava-se uma classificação das pessoas em situação de sem-abrigo com base nos seus traços de personalidade: “alienados delirantes, alucinados, maníacos, melancólicos, místicos, perseguidos, degenerados, traumatizados e intoxicados”. (2

Há, de facto, uma maior prevalência de todas as patologias mentais, bem como de patologia dual (coexistência de patologia mental e de perturbação por uso de substâncias), em sem-abrigo em relação à população geral. Para além disso, os diagnósticos psiquiátricos em sem-abrigo aumentam o risco de mortalidade por suicídio, patologia médica e por consumo de substâncias. Uma recente revisão estimou a prevalência de perturbações psiquiátricas em sem-abrigo deste modo: perturbações depressivas (11,4%-57,9%); esquizofrenia e outras doenças psicóticas (1%-45%); perturbações neurocognitivas (4-80%); transtornos bipolares e transtornos do humor (5,1%-41,3%); automutilação (69%); ideação suicida (22%-36,8%) e tentativas de suicídio (8,8%-46%); perturbação de hiperatividade e défice de atenção (4,4%-34%); perturbações da conduta (36%-76,7%); perturbações da personalidade (23,1%-29,1%); perturbação de stresse pós-traumático (29,1%-41,4%); e abuso de substâncias (40%-67,3%).11

A prevalência de patologia psiquiátrica em sem-abrigo situa-se entre os 25 a 50%, sendo o valor mais referido entre os estudos de 1/3. Já a prevalência entre os sem-teto aumenta consideravelmente para os 92%.12 Em Portugal verifica-se que em mais de 90% dos casos é possível estabelecer um diagnóstico psiquiátrico, apenas 20% se encontra clinicamente diagnosticada e que pelo menos 1/3 não recebe tratamento. (13

No entanto, uma questão fulcral impõe-se: Será a doença mental que conduz a uma situação de sem-abrigo? Ou a condição de sem-abrigo precipita a doença mental?

Vários estudos demonstram que o risco de ficar em situação de sem-abrigo para pessoas diagnosticadas com doenças mentais é dez vezes maior do que para a população em geral, (14 na medida em que a funcionalidade e autonomia dos sujeitos podem ficar altamente afetadas. Por exemplo, sintomatologia delirante persecutória, alucinações auditivas, comportamentos bizarros e negligência com a higiene pessoal dificultam o estabelecimento de relacionamentos interpessoais, podendo conduzir à alienação e ao isolamento. (7

As ruas das grandes cidades são lugares desritualizados, sendo o melhor sítio para um doente mental se tornar invisível. Também os albergues e locais para sem-abrigo parecem ser locais de maior tolerância a comportamentos bizarros, com menores níveis de emoção expressa, hostilidade e criticismo, sendo que a ocorrência de quadros psicóticos é 20 a 30 vezes mais frequente em sem-abrigo alojados em albergues do que na população geral. (15

As perturbações delirantes persistentes, como a depressão, toxicodependência, alcoolismo, duplo diagnóstico, perturbações da personalidade e esquizofrenia, são as doenças psiquiátricas pré-existentes mais comuns verificadas nesta população. (16 Os estudos apontam para que a doença mental seja prévia a ser sem-abrigo em cerca de 2/3 dos casos. (14 No entanto, nem sempre a doença mental precede a situação de sem-abrigo. (2

As questões de saúde não se podem analisar de forma desligada da envolvente social. Por tal, o conceito de saúde não é um estado de ausência de doença, mas “um completo bem-estar físico, social e mental”. Ter saúde será mais fácil se houver acesso a condições dignas de vida. (2

As adversidades associadas a tornar-se e a permanecer sem-abrigo são complexas e podem ser eventos traumáticos e stressores, aumentando a sensação de desamparo e o isolamento social. (17 A falta de lar conduz a níveis elevados de sofrimento psíquico14 e a precariedade económica e social, e consequente devastação psicológica, poderão funcionar como fatores na precipitação dos surtos psicóticos e surgimento de outras perturbações mentais. (7

A vergonha é uma emoção inerente à condição humana associada a múltiplos sintomas da psicopatologia e perturbações, em particular a depressão. Devido às fragilidades a que os sem-abrigo são expostos diariamente com várias situações de risco pessoal e social, quase dois terços referem uma perda de autoestima e autoconfiança. (16

Os quadros demenciais são também frequentes, sobretudo na população sem-abrigo mais idosa ou dependente de álcool, podendo ainda estar relacionados com uma reduzida ou mesmo inexistente estimulação intelectual e cognitiva nestes longos percursos de exclusão. (7

Ser mulher sem-abrigo acarreta mais riscos do que ser homem. Estas tornam-se sem-abrigo muitas vezes depois de um passado de violência doméstica e sexual ou tráfico humano. Estes fatores, para além de todos os relacionados com a situação sem-abrigo faz com que 50% a 60% sofram de distúrbios mentais e emocionais e 1/3 consumam heroína e crack. (2

Perturbações psiquiátricas podem desencadear a situação de sem-abrigo, “mas não é possível sustentar que são a sua causa última”. De facto, “pode cair-se na miséria porque se perdeu a saúde, também se perde a saúde porque se caiu na miséria”. (2

Dificuldades

Trabalhar com pessoas em situação de sem-abrigo, e especialmente com doença mental, é um trabalho exigente. As múltiplas questões envolvidas (saúde, social, habitação, reabilitação) tornam difícil para um único profissional ou mesmo serviço estar preparado para todos os desafios e necessidades destas pessoas. Sem-abrigo com doenças mentais graves são, muitas das vezes, sem-teto, sem nome e desamparados, sofrendo da “síndroma do Zé-ninguém”. Em 2020 foi mesmo criada uma subespecialidade médica designada por marontologia, sugerida após a palavra grega marontos, que significa indesejados, (18-19 exatamente para incluir o tratamento de doentes difíceis onde se incluem os sem-abrigo.

O problema central nos sem-abrigo com doenças mentais é a falta de acessibilidade aos tratamentos na comunidade e de habitação adequada. De destacar que a maioria dos serviços de saúde prevê que os doentes tenham residência e um número de contacto, requisitos alheios à realidade dos sem-abrigo. Além disso, as características especiais deste grupo de pacientes condicionam desafios específicos para o tratamento. Esses muitas vezes já tiveram experiências negativas com cuidados de saúde mental, por exemplo em instituições com falta de pessoal e fundos, e recusam novos tratamentos; alguns tiveram reações adversas com antipsicóticos ou lembram-se de terem sofrido abusos no sistema de saúde mental; alguns não têm insight para a sua doença e necessidade de tratamento contínuo ou não acreditam que receberão o tratamento adequado. Na maioria dos casos não têm o apoio de amigos ou familiares, suspeitam de figuras de autoridade (incluindo médicos) e demoram a desenvolver um relacionamento terapêutico de confiança. (20

O acesso a programas de apoio público é extremamente limitado e os sem-abrigo são comummente vistos como doentes menos desejáveis ou menos recompensadores. O tratamento requer muita paciência; habilidade clínica considerável; e a capacidade de mobilizar uma variedade de recursos de tratamento, residenciais e de reabilitação para atender às necessidades de um paciente específico. (20

Quando procuram ajuda, as pessoas em situação de sem-abrigo deparam-se, por vezes, com serviços que as infantilizam e objetificam. Muitas instituições que trabalham com esta população veem a situação de sem-abrigo como uma falha da pessoa, um defeito que necessita de ser reparado, ignorando as causas estruturais e as próprias falhas dos serviços. Muitas vezes os serviços oferecem etiquetas não-desejadas e excesso de regras, o que contribui para o afastamento das pessoas em situação de sem-abrigo. (20

Soluções

As necessidades desta população seguem a pirâmide de necessidades de Maslow, com relevância para as necessidades essenciais, como alojamento, comida e segurança, mas também de níveis superiores, como autoestima e respeito, e que desempenham um papel fundamental na resolução da situação de sem-abrigo. (4

Urgem sistemas de suporte abrangentes que possam oferecer alojamento, apoio no acesso a cuidados de saúde, manutenção de consultas de psiquiatria, bem como apoio na administração da medicação e valências de caráter social que permitam a inserção comunitária dos doentes e combatam os altos índices de isolamento. (3

Na perspetiva tradicional considerava-se que o tratamento para o abuso de substâncias e de doenças psiquiátricas era prioritário e fundamental para a aquisição de habitação estável e saída da rua. Contudo, tal é contrariado pela evidência científica, que verificou que as pessoas que se tinham submetido a tratamento não melhoravam o seu acesso a habitação estável comparativamente às que se tinham recusado a aderir aos programas de tratamento. Perante estas evidências, em 1992, desenvolveu-se uma abordagem inovadora para as situações de sem-abrigo mais complexas, conhecida como Housing First. Este programa pressupõe que os serviços de habitação são claramente separados dos serviços de tratamento e apoio, prestados por instituições diferentes e que a adesão ao programa não pressupõe a adesão a tratamentos psiquiátricos, não exige a toma de medicação nem a abstinência do consumo de álcool ou outras substâncias psicoativas. Os programas Housing First apresentam consistentemente taxas de sucesso entre 80-85%.4 A relação custo-benefício mostrou menos custos totais do que os do grupo de abordagem tradicional, essencialmente pela poupança em internamentos psiquiátricos. Os custos com serviços psiquiátricos eram inferiores quando as pessoas estavam alojadas em casas. Por outro lado, as pessoas que continuavam em situação de sem-abrigo eram as que apresentavam custos mais altos de manutenção. (5

A redução de danos é também uma estratégia com benefícios comprovados. Constitui um conjunto de medidas em saúde com o objetivo de minimizar as consequências adversas provenientes do uso e abuso de substâncias psicoativas, tendo como princípio fundamental o respeito à liberdade de escolha do indivíduo e o acesso aos serviços de saúde. A abordagem de redução de danos contribui com um novo olhar sobre a prática de saúde, atentando para a consideração e valorização da independência dos sujeitos, da sua cultura e das suas práticas. Ao abandonar o modelo biomédico de doutrinação, que qualifica comportamentos a partir de uma perspetiva de indivíduos ou comportamentos “bons” e “maus”, considera a multiplicidade de estratégias. (21 Constroem-se alternativas às antigas regras pautadas em princípios morais, onde as iniciativas de intervenção se baseavam somente na abstinência de uso de substâncias ou no amedrontamento do público. Os indivíduos são agora vistos como responsáveis pelas suas próprias escolhas e como agentes e recetores de influências ambientais. (22

Conclusões

Ao falar em sem-abrigo deve-se ter o cuidado de não cair num padrão estereotipado, que apenas reduz e anula a diversidade das pessoas. Esta é uma população heterogénea e que difere nos seus valores, significados, estrutura física, estratégias de sobrevivência e atitudes. Cabe aos médicos ter conhecimento deste fenómeno e promover a sensibilização e educação da comunidade em geral para o mesmo, de forma a que participem na mudança das representações sociais discriminatórias. Urge, de igual forma, que a formação médica garanta os instrumentos essenciais para uma intervenção que se quer multidimensional e que garanta a acessibilidade aos serviços por parte destes cidadãos.

Estas pessoas sentem frequentemente vergonha, abundando sentimentos de incapacidade, fracasso, culpa, receio de mudar e a necessidade de justificar perante os outros (e perante si próprio) a sua situação. Para além disso, a precariedade económica e social, a perda de casa e do estatuto social são encarados maioritariamente como uma derrota social. É neste ambiente que surgem sentimentos internalizados de exclusão cultural e social, que ainda afastam mais os sem-abrigo das outras pessoas. Falar em sem-abrigo é também falar em exclusão social, já que a situação de sem-abrigo é considerada a forma mais extrema e visível de exclusão social. (1 Os sem-abrigo são olhados de lado, ignorados e esquecidos, encarados tantas vezes como “uns perdidos na rua”. A sociedade atual descura muitas vezes a sua própria responsabilidade na resolução desta situação. A proximidade com a realidade dos sem-abrigo possibilita uma visão dos graves problemas que afetam de um modo geral a sociedade, adquirindo uma dimensão mais extrema de pobreza, como a precariedade económica e profissional, as ruturas familiares, as toxicodependências e o enfraquecimento das redes sociais de suporte, repercutindo-se gravemente no bem-estar físico e psicológico dos sem-abrigo. (16 Dada a fragilidade da saúde mental destas pessoas deve ser reforçada a articulação entre várias estruturas da comunidade e do âmbito da saúde, nomeadamente hospitais e centros de saúde, para que haja identificação e seguimento dos sem-abrigo e possam ser dadas respostas sociais (nomeadamente facilitar o acesso a serviços locais de saúde mental e de resposta a consumidores de substâncias psicoativas). É também essencial que se assegure que ninguém é desinstitucionalizado sem que tenham sido acionadas todas as medidas necessárias para lhe garantam um lugar adequado para viver, bem como os apoios necessários.

O abandono, a miséria e a morte não precisam de ser uma fatalidade para os sem-abrigo e é possível fazer um bom trabalho em benefício destas pessoas. Olhemos para e por eles.

Contributo dos autores

PJ foi responsável pela conceptualização, metodologia, escrita e revisão do artigo.

Conflito de interesses

Os autores não têm quaisquer conflitos de interesse a declarar.

Fontes de financiamento

Os autores não receberam quaisquer fontes de financiamento para a realização deste trabalho.

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Recebido: 17 de Novembro de 2021; Aceito: 13 de Agosto de 2022

Endereço para correspondência Patrícia Jorge E-mail: anapjorge1@gmail.com

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