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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.38 no.6 Lisboa dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v38i6.13451 

Estudos originais

Políticas de saúde prioritárias no pós-pandemia: a visão dos profissionais de saúde

Priority health policies in the post-pandemic: the healthcare professionals’ perspective

Francisco Santos Coelho1 
http://orcid.org/0000-0002-2722-6873

Susana Sampaio Oliveira2 

1. USF Valongo. Valongo, Portugal.

2. Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Porto, Portugal.


Resumo

Objetivo:

Conhecer a opinião e a perceção dos profissionais de saúde sobre o impacto da pandemia da COVID-19 na sua prática clínica e identificar as políticas de saúde que consideram ser mais prioritárias para a fase de retoma assistencial pós-pandémica.

Tipo de estudo:

Observacional, transversal e descritivo.

População:

Adultos, profissionais de saúde de qualquer área, que tenham estado no ativo durante o ano 2020.

Métodos:

Colheita de dados através de um questionário divulgado online em diversas plataformas durante a primeira quinzena do mês de julho de 2021. A análise estatística descritiva e inferencial foi feita em Microsoft Excel® e em GraphPad Prism®.

Resultados:

Dos 546 profissionais de saúde que participaram neste estudo, 93% consideraram que a pandemia da COVID-19 teve um impacto importante na sua prática clínica; destes, 65% classificaram esse impacto como elevado. Verificou-se uma diferença estatisticamente significativa para todas as dificuldades laborais sentidas antes vs durante a pandemia. Foi nos cuidados de saúde primários (CSP) que se encontrou a maior taxa de insatisfação laboral no primeiro ano de pandemia. A política de saúde considerada mais prioritária para o pós-pandemia foi a retoma dos rastreios (94,9%), seguindo-se a contratação de profissionais de saúde (94,1%) e a melhoria das remunerações (93,2%). Foram ainda consideradas prioritárias a preparação do Serviço Nacional de Saúde9 (SNS) para situações equiparáveis a esta pandemia, o reforço das equipas e condições dos CSP e a redução do trabalho burocrático. Por oposição, o investimento em telemedicina foi considerado como a política menos prioritária de todas as listadas, com apenas cerca de 67% dos participantes a considerarem-na relevante.

Conclusões:

Para os profissionais de saúde, a retoma dos rastreios é a política de saúde mais prioritária a adotar no pós-pandemia. Investir nos CSP é uma necessidade premente e a contratação de profissionais é fundamental.

Palavras-chave: COVID-19; Políticas de saúde; Profissionais de saúde; Pós-pandemia

Abstract

Purpose:

To know the opinion and perception of healthcare professionals about the impact of the COVID-19 pandemic on their practice and the priority health policies for post-pandemic reform.

Study design:

Observational, cross-sectional, and descriptive.

Population:

Adults, active healthcare professionals from any area during the year 2020.

Methods:

Data collection through a questionnaire released online on diverse platforms during the first half of July 2021. Descriptive and inferential statistical analysis was performed in Microsoft Excel® and GraphPad Prism®.

Results:

Of the 546 healthcare professionals who participated in this study, 93% considered that the COVID-19 pandemic had an important impact on their clinical practice; 65% of these rated this impact as high. There was a statistically significant difference for all work difficulties experienced before vs during the pandemic. It was in Primary Health Care (PHC) that the highest rate of job dissatisfaction was found in the first year of the pandemic. The most priority health policy for the post-pandemic period was the resumption of screenings (94.9%), followed by the hiring of healthcare professionals (94.1%) and the improvement of remunerations (93.2%). Other considered priorities were the planning of the Portuguese National Health Service for situations like this pandemic, the reinforcement of teams and conditions of PHC, and the reduction of bureaucratic work. In contrast, investment in telemedicine was considered the lowest priority policy of all those listed, with only about 67% of participants considering it relevant.

Conclusions:

For healthcare professionals, the resumption of screenings is the highest priority health policy to adopt in the post-pandemic period. Investing in PHC is a pressing need and hiring professionals is essential.

Keywords: COVID-19; Health policies; Healthcare professionals; Post-pandemic

Introdução

Em dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde reconheceu e identificou um novo coronavírus, com origem na China. Foi apelidado de SARS-CoV-2 e a doença por ele causada designou-se por COVID-19.1-2

A 11 de março de 2020, esta infeção foi declarada como pandemia, tendo em conta o seu atingimento global, sendo que, a 2 de março, Portugal registou o seu primeiro caso da doença. 3 Desde então, no nosso país, profundas mudanças foram operadas na organização dos serviços de saúde, particularmente nos cuidados de saúde primários (CSP), que se viram a braços com uma extensa reestruturação da sua forma de trabalhar, com implicação na redefinição do acesso por partes dos utentes e na criação de meios alternativos de contacto e de prestação de serviços. De modo idêntico, também hospitais e outras estruturas e entidades prestadoras de cuidados de saúde viram completamente alteradas as suas dinâmicas de funcionamento. 1

Para além da insatisfação dos utentes, também se adensaram os testemunhos de profissionais de saúde assoberbados com tarefas diretamente relacionadas com a gestão da COVID-19 (no caso particular dos CSP, acumularam com as suas tarefas habituais a vigilância da maioria dos doentes suspeitos ou confirmados com infeção pelo SARS-CoV-2). Em muitos casos ficaram impossibilitados de cumprir as suas agendas e atividade clínica programada, tendo sido mobilizados frequentemente para outras tarefas noutros locais, 4-5 sem esquecer o forte impacto que tudo isto acarretou nas suas vidas pessoais.

Tendo em conta a perturbação gerada pela pandemia em várias frentes, estruturas e organizações, tornou-se um verdadeiro desafio prestar cuidados de saúde de qualidade e que respeitassem os princípios desejados da equidade e da justiça. Por isso mesmo - e com a aproximação do período pós-pandémico - importa aos profissionais e aos gestores em saúde perceber se as estratégias desenvolvidas têm sido ou não suficientes e adequadas para responder às necessidades manifestadas, qual o seu real impacto na prática clínica e quais as políticas de saúde que se consideram de implementação prioritária para a fase na qual agora se entra. 6

Assim, com este trabalho de investigação os autores pretenderam auscultar e recolher a opinião e a perceção concretas dos profissionais de saúde em relação ao impacto da pandemia na sua prática clínica e sobre quais consideram ser as políticas de saúde prioritárias a adotar na fase de retoma assistencial.

Métodos

Foi realizado um estudo de investigação observacional, transversal e descritivo. A abordagem feita incluiu variáveis qualitativas e quantitativas.

Para o efeito, foi elaborado um questionário em formato Google Forms ® constituído essencialmente por perguntas fechadas e pensado para um público-alvo constituído por indivíduos com as seguintes características: idade adulta; profissionais de saúde de qualquer área de atuação; e que tivessem estado a trabalhar ao longo do ano de 2020. Foi submetido a um pré-teste junto de uma amostra selecionada de onze profissionais de saúde de diferentes áreas de atuação, géneros e idades e a trabalhar em locais distintos. As respostas de indivíduos que não cumprissem as três premissas definidas seriam excluídas.

A versão final do questionário foi estruturada em quatro partes: a primeira com informações sobre o estudo e seus propósitos e com os contactos dos autores; a segunda com perguntas para caracterização da amostra; a terceira relacionada com o impacto da COVID-19 na prática clínica e as dificuldades laborais sentidas com mais relevância; e a última com questões que tinham em vista a priorização de políticas de saúde para a fase de retoma assistencial pós-pandémica. Várias perguntas foram elaboradas recorrendo a escalas de Likert de cinco pontos, uma vez que estas são de preenchimento e análise intuitivas. Para além disso, em várias questões foi dada a possibilidade aos participantes de acrescentarem outras alíneas para além das listadas, de forma a otimizar a representatividade das opiniões recolhidas.

O questionário foi disponibilizado através de um link em diversos fóruns/plataformas online (nomeadamente em grupos de profissionais de saúde) e também através do correio eletrónico institucional da Universidade do Porto para a mailing list de toda a comunidade académica. Esteve livremente acessível durante a primeira quinzena do mês de julho de 2021. O seu preenchimento foi realizado de forma totalmente voluntária, consentida e também anónima, uma vez que não foram solicitados dados que permitissem a identificação inequívoca dos profissionais de saúde respondentes nem dados institucionais acerca dos mesmos, mas apenas as suas opiniões acerca do impacto da pandemia da COVID-19 na prática clínica, bem como sobre as políticas de saúde que consideravam mais relevantes para a fase de retoma pós-pandémica. Assim sendo, os autores entenderam que não existiam outras questões éticas a salvaguardar para o decurso do presente estudo. Por esse motivo, e tendo em conta os múltiplos constrangimentos pandémicos vividos no momento da investigação, que também o dificultaram, os autores não dispõem de um parecer oficial de uma Comissão de Ética.

Após aplicação do questionário - e uma vez que todas as respostas obtidas cumpriram os requisitos definidos - não houve lugar a exclusões. Os dados foram analisados recorrendo aos programas Microsoft Excel ® e GraphPad Prism ® , através de técnicas de estatística descritiva e inferencial.

Resultados

Caracterização da amostra

Participaram neste estudo 546 profissionais de saúde, sendo que os questionários preenchidos foram validados na sua totalidade, não tendo sido efetuada qualquer exclusão.

A maioria dos participantes era do sexo feminino (72,9%), ao encontro da taxa de feminização dos trabalhadores do SNS que, segundo dados publicados em 2018, era de 76,5%.7 Cerca de 39% dos participantes tinha uma idade compreendida entre os 26 e os 30 anos, sendo que a idade mínima verificada foi de 22 anos e a máxima de 66 anos. Não houve diferença estatisticamente significativa de idades entre os sexos masculino e feminino.

Tratou-se de uma amostra constituída essencialmente por médicos (71,6%), sendo que os enfermeiros, os técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica (TSDT) e os assistentes técnicos foram os grupos profissionais com as maiores representações seguintes (Tabela 1). Esta distribuição sobrerrepresenta o grupo profissional dos médicos, atendendo a que, de acordo com os dados de julho de 2021 do portal Transparência do SNS, o grupo profissional com maior representatividade no SNS português é o dos enfermeiros, seguindo-se o dos médicos e o dos assistentes técnicos. 7

Tabela 1 Distribuição da amostra de acordo com a profissão 

Especificamente no grupo profissional dos médicos, estavam representadas 36 especialidades médicas, destacando-se a medicina geral e familiar (MGF) (54,3% dos médicos), seguindo-se a medicina interna e a pediatria. Estes dados são concordantes com a estatística publicada em janeiro de 2021, que indica que estas três especialidades, precisamente por esta ordem, são as que apresentam mais médicos em Portugal. 8

O principal local de trabalho em 2020 de 48,2% dos profissionais respondentes foram os CSP e 41,8% exercia funções em meio hospitalar. Estes dados também sobrerrepresentam os CSP, uma vez que se se comparar o número de profissionais hospitalares com o número de profissionais nas Administrações Regionais de Saúde (ARS) existem cerca de três profissionais nos hospitais por cada profissional na ARS. A referir, ainda, 29 participantes no estudo cuja atividade profissional em 2020 foi essencialmente desenvolvida em contexto privado (Tabela 2).

Tabela 2 Distribuição da amostra de acordo com o local principal de trabalho em 2020 

Quanto à distribuição dos participantes pelas regiões de saúde - considerando para o efeito a Nomenclatura das Unidades Territoriais para fins estatísticos de nível 2 (NUTS2) - verificou-se uma importante assimetria, com uma muito maior representatividade da região Norte (71,8%), seguindo-se o Centro (12,3%) e a Área Metropolitana de Lisboa (9,5%, cf. Tabela 3). Segundo o portal Transparência do SNS são também estas as três regiões nas quais se concentra a maioria dos profissionais de saúde, mas por uma outra ordem: Norte, Área Metropolitana de Lisboa e Centro. 7

Tabela 3 Distribuição da amostra por regiões NUTS2 

Tendo em conta os métodos de divulgação do questionário e que se trata de uma amostra constituída por voluntários, os autores admitem a possibilidade de existência de um viés de resposta a favor dos CSP e da região Norte.

Impacto da pandemia na prática clínica e satisfação profissional

Para 510 participantes neste estudo (93,4%), ou seja, a maioria, o impacto do primeiro ano da pandemia na sua prática clínica foi significativo (níveis 4 e 5 da escala de Likert aplicada, cf. Tabela 4). Destes, foram 353 (64,7%) os profissionais de saúde que referiram especificamente que a COVID-19 teve «Elevado impacto» (nível 5) no seu trabalho. Ao invés, apenas dois participantes referiram que a pandemia não teve nenhum impacto (nível 1) na sua atividade profissional, sendo ambos médicos.

Tabela 4 Impacto da pandemia da COVID-19 na prática clínica dos participantes 

Relativamente às dificuldades sentidas na atividade laboral dos participantes (cf. Tabela 5), definiram-se como mais relevantes as que cumpriram os seguintes requisitos: média, mediana e moda ≥ 4 e frequência acumulada dos níveis 4 e 5 da escala de Likert aplicada (FA4,5) ≥ 75%. No período pré-pandémico verificou-se que as «múltiplas tarefas simultâneas» e a «falta de tempo/dificuldades na gestão do tempo» eram as dificuldades sentidas com maior preponderância. Já durante a fase pandémica, o número de dificuldades laborais consideradas relevantes aumentou, passando a incluir-se também, para além das duas anteriores, o «trabalho burocrático», os «problemas com sistemas informáticos», a «baixa literacia em saúde» e a «falta de profissionais de saúde».

Tabela 5 Dificuldades mais relevantes na atividade laboral (análise comparativa dos períodos antes e durante a pandemia da COVID-19) 

No que diz respeito à satisfação dos profissionais de saúde com a sua atividade laboral ao longo de 2020, uma elevada percentagem (39,4%) sentiu-se «Quase sempre» ou «Sempre satisfeita» (níveis 4 e 5 da escala de Likert aplicada), enquanto 36,1% se sentiram satisfeitos apenas «Às vezes» (nível 3), tendo sido esta a resposta prevalente. Fazendo uma análise destes dados por local de trabalho verificou-se que foi nos CSP que se encontrou uma maior frequência relativa de profissionais com insatisfação laboral (cerca de 30%), como apresentado na Figura 1.

Figura 1 Níveis de satisfação com os cuidados de saúde prestados (frequências relativas por local de trabalho). Legenda: RNCCI = Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados. 

Políticas de saúde prioritárias na fase de retoma pós-pandémica

Relativamente à priorização de políticas de saúde e à análise estatística das respostas relacionadas com este tópico (cf. Tabela 6) definiram-se como prioritárias as políticas que cumpriam os seguintes requisitos: média e mediana ≥ 4, moda = 5 e FA4,5 ≥ 90%. A escolha destes valores prendeu-se com dois fatores: um elevado número de itens para classificar/ordenar, pelo que, assim, se faz uma seleção mais restrita de prioridades; como se trata de propostas de políticas de saúde, tenderão a ser mais representativas da opinião da população estudada quanto mais consenso reunirem.

Tabela 6 Priorização de políticas de saúde para melhoria dos cuidados de saúde pós-pandemia 

Para os profissionais de saúde participantes neste estudo, a política de saúde a adotar prioritariamente no sentido de melhorar os cuidados de saúde prestados no período de recuperação pós-pandémica é a «retoma dos rastreios», com uma FA4,5 de quase 95%. Logo de seguida, surgiu a necessidade de «contratação de profissionais de saúde (nomeadamente médicos e enfermeiros)», com 94,1% de respostas concordantes, e a «melhoria das remunerações», com uma FA4,5 de cerca de 93%. Na opinião dos respondentes ao estudo fazem ainda parte do leque de políticas de saúde mais prioritárias para a retoma da atividade assistencial no pós-pandemia a «preparação do SNS para situações equiparáveis a esta pandemia» (FA4,5 de 92,7%), o «reforço das equipas e condições dos CSP» e a «redução do trabalho burocrático», ambas a reunirem o consenso favorável de 92,5% dos participantes.

De entre as políticas de saúde listadas na Tabela 6 destaque ainda para o «investimento em telemedicina» que, na ótica dos participantes no estudo, é a política de saúde menos prioritária, com uma média de respostas fixada nos 3,79, segundo a escala de Likert aplicada e uma FA4,5 de apenas 67%. Para além disso, grande parte dos participantes neste estudo (45,4%) considerou mesmo que os seus locais de trabalho não estavam nem estão devidamente preparados para a prática deste tipo de cuidados de saúde (níveis 1 e 2 da escala de Likert aplicada), como apresentado na Tabela 7.

Tabela 7 Adaptação dos locais de trabalho à prática da telemedicina 

Ainda nesta secção do questionário foi dada oportunidade aos participantes de indicarem políticas que considerassem mais prioritárias, mas que não constassem das listadas na tabela, das quais se destacam: redefinição dos horários laborais; programas de recuperação de listas de espera para meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT); ações de prevenção quinquenária; implementação de estratégias de gestão baseada em resultados; automatização de processos e tarefas; incentivos à formação/investigação; aumento do financiamento e alocação de recursos ao SNS.

Discussão

Verificou-se neste estudo que, de acordo com o expectável, a maioria (mais de 93%) dos participantes considerou que o primeiro ano de pandemia teve um impacto significativo na sua atividade laboral. A corroborar apresenta-se o facto de, no presente estudo, se ter encontrado uma diferença estatisticamente significativa para todas as dificuldades sentidas na atividade laboral quando se comparou a sua relevância durante o período pré-pandémico vs durante a pandemia. Estes são dados consensuais com praticamente toda a bibliografia disponível sobre o assunto e também com os relatos auscultados nas instituições de saúde, que relatam que a COVID-19 afetou inequivocamente a prática clínica e a prestação de cuidados de saúde. 3,10

Relativamente ao programa de rastreios, a sua rápida retoma foi apontada por praticamente 95% dos participantes como sendo a política de saúde mais prioritária a adotar no SNS no pós-pandemia. Esta opinião vai ao encontro de publicações internacionais sobre o tema, 11 mas também de dados publicados a nível nacional que apontaram os rastreios oncológicos como sendo a área da saúde mais afetada pela pandemia no nosso país, tendo em conta que houve menos 169 mil mulheres com registo de mamografia nos últimos dois anos, menos 140 mil mulheres com colpocitologia atualizada e menos 125 mil utentes inscritos com o rastreio do cólon e reto efetuado em relação ao total de 2019. 12

Mundialmente, a pandemia da COVID-19 implicou uma sobrecarga laboral significativa para os profissionais de saúde. 13 Alguns autores referem mesmo que a falta de recursos humanos tem sido evidente durante a pandemia, 11 o que contribuiu para o aumento da pressão sobre os serviços de saúde, em particular sobre o SNS. Por esta ordem de ideias entende-se porque é que a contratação de profissionais de saúde, sobretudo nos CSP, surge neste estudo como a segunda política de saúde mais relevante a ser adotada para a retoma pós-pandémica, com uma FA4,5 de cerca de 94%, à semelhança do que se conclui em múltiplos estudos feitos ao longo da pandemia da COVID-19. 14

A par desta necessidade de contratação de profissionais de saúde, 92% dos participantes consideraram premente também uma outra: o reforço das equipas e das condições de trabalho nos CSP que, para os respondentes, foi o nível de cuidados mais afetado pela pandemia. Estes dados são concordantes com a literatura, que refere precisamente a necessidade de investimento crescente nos CSP, tendo em vista que esta priorização permitirá aumentar a confiança dos utentes para com o sistema de saúde à medida que for acontecendo também a retoma social e económica. 14

Uma nota ainda para as remunerações, cuja necessidade de melhoria foi apontada pelos respondentes do presente estudo como a terceira decisão mais importante a ser tomada pela tutela (FA4,5 de 93%). Neste tópico inclui-se também o pagamento de horas extraordinárias que nem sempre foi devidamente efetuado durante o período pandémico. 12,15

Para cerca de 93% dos participantes deste estudo é também fundamental que o SNS se prepare para situações equiparáveis à da atual pandemia da COVID-19, aprendendo com as lições adquiridas ao longo do tempo já decorrido e otimizando diversos aspetos que ainda falharam, como o acesso equitativo aos cuidados de saúde, o fluxo entre cuidados primários e secundários e a comunicação/informação em saúde. 16

Apesar do aumento muito significativo do número de contactos médicos e de enfermagem não presenciais em 2020 no nosso país, sobretudo nos CSP, 12 os participantes neste estudo não consideram prioritário investir em telemedicina, afirmando mesmo que os seus locais de trabalho não estão devidamente adaptados a esta prática. Alguns estudos já publicados corroboram estes dados: por ter decorrido pouco tempo desde o início desta grande mudança no panorama da saúde ainda não foi possível clarificar como evoluirá o comportamento da procura deste tipo de cuidados de saúde, sendo necessário que os próprios utentes estejam também devidamente adaptados. 13,17-18

Conclusão

Não há dúvidas de que a pandemia da COVID-19 alterou por completo a sociedade e os sistemas de saúde a nível mundial, comprovando a estreita relação existente entre estas duas áreas e a forma como se influenciam mutuamente. Prestar serviços de saúde com qualidade é uma tarefa que requer, para além de uma análise atenta da componente da procura, uma auscultação e perceção adequadas também do lado da oferta: quais são as condições existentes, que perceção têm os prestadores (nomeadamente os profissionais de saúde) sobre os serviços que desenvolvem e que políticas fazem mais sentido em cada momento e circunstância, tendo em vista a melhoria de resultados clínicos e socioeconómicos.

Aplicado ao contexto pandémico vivido em Portugal em 2020 e 2021 foi este o mote para o desenvolvimento do presente estudo: perceber o impacto que a COVID-19 teve na prática clínica dos profissionais de saúde e quais as políticas mais prioritárias para intervir no sistema de saúde português, de acordo com estes profissionais.

De um modo global, o impacto da pandemia da COVID-19 na atividade laboral em saúde foi considerado muito relevante.

A política de saúde considerada neste estudo como a mais prioritária de todas a adotar na fase de recuperação pós-pandémica foi a retoma dos rastreios, sobretudo os oncológicos, tendo em conta que este foi um dos atos clínicos mais afetados pela COVID-19 e que representa uma medida preventiva muito importante para a saúde dos portugueses. Foi também conclusão do presente estudo que uma das principais políticas de saúde a adotar é a contratação de mais profissionais de saúde, sobretudo para os CSP, a par de uma melhoria das remunerações e da preparação do SNS para situações equiparadas à da COVID-19. Investir em CSP (quer ao nível das equipas, que ao nível das condições globais de trabalho) foi considerada uma necessidade premente exposta pela atual pandemia, uma vez que este nível de cuidados representa a pedra angular para a recuperação global no pós-pandemia.

Uma nota ainda para o facto dos profissionais de saúde participantes neste estudo considerarem que, atualmente, em Portugal a maioria dos locais de trabalho na área da saúde não estão suficientemente adaptados à prática da telemedicina. Apesar disso, curiosamente, a telemedicina não foi considerada pelos participantes como uma área de investimento prioritário no pós-pandemia, pelo contrário.

Assim, os autores deste trabalho de investigação consideram que o mesmo demonstrou a relevância de auscultar os profissionais de saúde no sentido de perceber, junto de quem está ‘no terreno’, quais são as suas perceções, tendo em vista a otimização das suas condições de trabalho e a oferta de cuidados de saúde.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Doutora Sara Rocha o seu contributo na análise estatística do presente estudo de investigação.

Contributo dos autores

Conceptualização, FSC e SSO; metodologia, FSC e SSO; investigação, FSC; software, FSC; análise formal, FSC; redação do draft original, FSC; redação, revisão e validação do texto final, FSC e SSO; visualização, FSC; administração do projeto, FSC; supervisão, SSO.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Fontes de financiamento

Os autores declaram não ter recebido quaisquer subsídios ou bolsas para a elaboração do presente artigo científico.

Referências bibliográficas

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Recebido: 20 de Janeiro de 2022; Aceito: 31 de Maio de 2022

Endereço para correspondência Francisco Santos Coelho E-mail: franciscomscoelho@hotmail.com

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