Introdução
As malformações pulmonares originam-se a partir de falhas no desenvolvimento embrionário.1 O sequestro pulmonar é uma anomalia congénita rara, correspondendo entre 0,15 e 6,45% dos casos de malformação pulmonar. 1 A sua etiologia está mal esclarecida. A teoria mais amplamente aceite sugere que resulta da formação de um esboço pulmonar acessório em posição caudal em relação aos esboços pulmonares normais, o que acontecerá entre a quarta e a oitava semanas de gestação. 2 Nenhuma anomalia cromossómica foi identificada nos doentes que apresentavam sequestro pulmonar. 3
O sequestro pulmonar pode ser definido como uma massa de tecido pulmonar composto por tecido embrionário cístico e alvéolos não arejados e desorganizados, além de outros componentes do trato respiratório.1 Divide-se em sequestro intralobar (SIL) e extralobar (SEL), dependendo da existência de um revestimento pleural próprio. 1,4-5
O SIL corresponde a aproximadamente 75% dos casos, sendo mais comum nos lobos inferiores à esquerda, com igual distribuição em relação ao sexo. 1,3,5 Costuma apresentar manifestações clínicas mais tardias, por volta da segunda década de vida, geralmente por infeções respiratórias recorrentes, hemoptises e dispneia. 1,3
O SEL representa cerca de 25% dos casos desse tipo de malformação pulmonar. Também ocorre, predominantemente, nos lobos pulmonares inferiores à esquerda, mas ao contrário do SIL apresenta maior prevalência no sexo masculino (4:1). 1 A apresentação clínica costuma ocorrer nos primeiros meses de vida. 1,4
Em qualquer dos casos, e por definição, a vascularização arterial provém da circulação sistémica, mais habitualmente da aorta, através de uma ou mais artérias anómalas e a drenagem venosa de veias sistémicas, como a veia cava inferior ou a veia ázigos. 2
Após o nascimento, as manifestações clínicas possíveis são as infeções pulmonares recidivantes ou crónicas ao nível do tecido pulmonar anómalo, com febre e tosse (a manifestação clínica mais frequente nos casos de SIL), síndroma de dificuldade respiratória, dificuldade na alimentação, dor abdominal, insuficiência cardíaca congestiva ou de alto débito (com shunt esquerdo/direito, devida ao grande calibre dos vasos arteriais), hemoptises ou hemorragia intratorácica maciça. 2
Os diagnósticos diferenciais desta patologia são: malformação adenomatoide quística pulmonar, quistos broncogénicos ou quistos de duplicação entéricos, lesões da suprarenal e do rim, hemangiomas, linfangiomas, teratomas e neuroblastomas. 2
Este tipo de malformação pode ser inicialmente visualizado na radiografia de tórax como uma hipotransparência homogénea. A confirmação diagnóstica é realizada através da tomografia computorizada torácica, ressonância nuclear magnética ou arteriografia, sendo este último exame o melhor método diagnóstico. 1 Os estudos de imagem assumem um papel importante no diagnóstico do sequestro pulmonar e sobretudo na identificação dos vasos aberrantes, essencial para o planeamento cirúrgico. 5-6
O tratamento de eleição é a resseção cirúrgica do tecido pulmonar sequestrado. 6
No caso de não existirem outras anomalias congénitas significativas, o prognóstico é geralmente favorável. 5
O caso apresentado descreve uma doente com sequestro pulmonar, com 39 anos, com sintomatologia inespecífica e pretende alertar para a importância de suspeição clínica desta patologia que, apesar de rara, deve ser colocada como opção diagnóstica. Além disso, evidencia a necessidade de ser feita uma avaliação completa do doente, utilizando de forma assertiva os meios complementares de diagnóstico.
Descrição do caso
A.F., sexo feminino, 39 anos, raça caucasiana, natural e residente nos Açores, casada. A nível socioprofissional exercia funções em artes plásticas (ultimamente praticava o uso de tintas de água e tecidos). Habitava numa residência, com o marido e os dois filhos e tinha um gato como animal de estimação. Antecedentes pessoais de rosácea e tuberculose pulmonar com primoinfeção ao nascimento. Negava infeções respiratórias de repetição tanto na infância como na idade adulta. Sem internamentos ou cirurgias anteriores. Tinha o Plano Nacional de Vacinação atualizado, sem ter feito vacina anti-influenza ou vacina antipneumocócica. Sem medicação habitual. Negava alergias medicamentosas e não medicamentosas. Referia hábitos tabágicos e alcoólicos socialmente e negava hábitos toxicológicos. Como antecedentes familiares referia que a mãe teve tuberculose enquanto estava grávida da doente. Sem outros antecedentes familiares relevantes.
Iniciou um quadro de tosse e febre vespertina com cerca de quinze dias de evolução, tendo recorrido à consulta da médica de família (MF), em 30/11/2020, D15. Não apresentava alterações ao exame objetivo. A MF pediu uma radiografia do tórax com incidência póstero-anterior e análises. Recorreu ao serviço de urgência (SU) em 28/12/2020, D43, por manutenção de tosse seca e febre vespertina. Foi pedido teste COVID-19, que foi negativo, tendo sido medicada com azitromicina 500 mg id, três dias, desloratadina 5 mg id, durante vinte dias, e prednisolona 5 mg bid, quatro dias.
Após cerca de uma semana, em 03/01/2021, por não apresentar melhoria da tosse recorreu novamente ao SU. Sem alterações descritas no exame objetivo. Não foram pedidos métodos complementares de diagnóstico. Foi medicada com pseudoefredina e tripolidina 60 mg + 2,5 mg id, durante sete dias.
Em 14/02/2021, D91, por persistência da tosse seca associada a dispneia e dor tipo pleurítica, que agravava com a inspiração profunda, recorreu à sua MF. Não apresentava outras alterações ao exame objetivo. Analiticamente, em 01/02/2021: sem leucocitose, neutrófilos 72,6%, VS 28 mm, PCR 1,22 mg/dL. Radiografia do tórax com uma incidência póstero-anterior, de 11/12/2020, com ligeira retificação das hemicúpulas diafragmáticas e aumento dos espaços intercostais. Foi-lhe solicitada uma TC torácica sem contraste e medicada com acetilcisteína 600 mg id, bilastina 20 mg bid e paracetamol 1000 mg tid.
A tomografia computorizada (TC) torácica sem contraste, pedida pela MF, foi efetuada a 27/02/2021, D104, apresentando pequeno colapso da base pulmonar esquerda, associado a pequeníssimo derrame. Além destas alterações, eram também descritas, no relatório de imagiologia, enfisema subpleural nos ápices pulmonares mais frequentes à esquerda e pectus excavatum, sem outras alterações valorizáveis dos tecidos moles. Foi referenciada à consulta de pneumologia, pela MF, em 04/03/2021, D109, medicada com bilastina 20 mg, 2 bid, paracetamol 1000 mg tid, sem alívio terapêutico.
Foi observada em consulta de pneumologia, cinco dias depois, D114, onde foi solicitado Interferon-Gamma Release Assays (IGRA), com resultado negativo, reavaliação analítica e radiografia do tórax com incidência póstero-anterior e perfil esquerdo. Esta nova radiografia do tórax, D117, não apresentava alterações de novo na incidência póstero-anterior; na incidência de perfil esquerdo: pectus excavatum; ligeiro aumento do espaço retroesternal; imagem hipotransparente no terço inferior (compatível com derrame pleural esquerdo organizado visualizado em TC torácica de 27/02/2021) (Figura 1).

Figura 1 Radiografia de tórax na incidência póstero-anterior e perfil esquerdo (12/03/2021). Incidência póstero-anterior: sem alterações de novo; Incidência de perfil esquerdo: imagem hipotransparente no terço inferior.
Foi realizada ecografia torácica, em 15/03/2021, que excluiu derrame pleural. Assim, foi pedida TC torácica com contraste e iniciou terapêutica inalatória com budesonida 160 mcg/formoterol 4,5 mcg bid, na suspeita de asma brônquica, que manteve cerca de dois meses, sem melhoria significativa.
A TC torácica com contraste, realizada em 14/04/2021, D151, revelou consolidação parenquimatosa no lobo inferior esquerdo, envolvendo o segmento basal posterior e medial, que apresentava irrigação por vaso anómalo com origem na aorta torácica distal. Estes achados eram compatíveis com sequestro pulmonar (Figura 2).

Figura 2 TC torácica com contraste, antes da cirurgia (14/04/2021). Consolidação parenquimatosa no lobo inferior esquerdo, envolvendo o segmento basal posterior e medial, com irrigação por vaso anómalo com origem na aorta torácica distal.
Foi referenciada à cirurgia torácica a 20/04/2021, D157, medicada com budesonida 160 mcg/formoterol 4,5 mcg bid, bilastina 20 mg, 2 id, paracetamol 1000 mg, tid. A doente apresentava manutenção de tosse seca, sem dispneia, pieira ou toracalgia e sem alterações na auscultação pulmonar.
A doente foi submetida a lobectomia inferior esquerda com laqueação de vaso anómalo por videotorascoscopia (24/05/2021), D191, por sequestro pulmonar. Como complicação, de referir apenas pneumotórax espontâneo pequeno (sem necessidade de colocação de dreno). Realizou reabilitação respiratória pós-operatória em regime de internamento, que manteve em ambulatório durante doze semanas. Na altura da alta hospitalar foi suspensa a inaloterapia anteriormente prescrita de budesonida 160 mcg/formoterol 4,5 mcg.
Realizou TC torácica com contraste, três meses após a cirurgia (23/08/2021), para reavaliação, que apresentava apenas um pequeno derrame pleural esquerdo (Figura 3). Nesta data, na consulta de pneumologia, apresentava remissão da sintomatologia. Agendou-se seguimento anual em consulta de pneumologia com TC torácica com contraste. Continuou a realizar exercícios de reabilitação respiratória no domicílio e treino aeróbico, segundo indicações do fisiatra. Se não existir alteração do quadro clínico, na próxima consulta de pneumologia, após TC torácica, terá alta.
Comentário
Relata-se o caso de uma doente com SIL localizado no lobo inferior do pulmão esquerdo, proveniente de um ramo anómalo da aorta torácica distal, submetida a lobectomia inferior esquerda.
O sequestro pulmonar é uma anomalia congénita de difícil diagnóstico devido à sua raridade. 2
Além disso, o diagnóstico do sequestro pulmonar pode ser difícil, uma vez que os sintomas, como dispneia, infeções respiratórias, hemoptise ou, menos frequentemente, toracalgia, podem estar presentes em situações clínicas mais comuns, incluindo pneumonias típicas ou tuberculose. 1
Outra dificuldade identificada no diagnóstico desta doente diz respeito à idade de início da sintomatologia, neste caso aos 39 anos de idade, uma vez que nesta patologia surge maioritariamente em idades mais precoces.
No entanto, o diagnóstico precoce é de extrema importância para prevenção de infeções respiratórias de repetição, muitas vezes refratárias ao tratamento com antibióticos. 2 Neste caso, a doente realizou azitromicina sem benefício terapêutico.
De realçar a extrema importância em efetuar o pedido de métodos complementares de diagnóstico de forma adequada, nomeadamente no que diz respeito à radiografia de tórax com duas incidências. Neste caso, a doente tinha efetuado uma radiografia do tórax inicial apenas com incidência póstero-anterior. Sem a incidência de perfil não era percetível qualquer alteração que sugerisse o diagnóstico de SIL. Quando foi efetuada a radiografia com as duas incidências, numa tentativa de evitar nova TC torácica, foi visualizada uma alteração que desencadeou o seguimento do estudo com ecografia e segunda TC torácica, desta vez com contraste, que esclareceu o diagnóstico. Os métodos de imagem assumem, assim, um papel importante e imprescindível no diagnóstico e tratamento do sequestro pulmonar.
Este caso demonstra também a importância de uma boa articulação entre os cuidados de saúde primários e os secundários, através de uma célere referenciação; neste caso, com consulta na especialidade de pneumologia no espaço de cinco dias, o que facilitou o diagnóstico e o tratamento.