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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.1 Lisboa fev. 2023  Epub 30-Mar-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i1.13514 

Opinião e debate

O muito que falta aos doentes com necessidades paliativas em Portugal: discussão depois de um estágio internacional

How much is lacking for patients with palliative needs in Portugal: a discussion after an international internship

Tânia Caeiro Varela1  , Coordenadora da Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos
http://orcid.org/0000-0002-4066-7753

1. Coordenadora da Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos, ACeS Cascais. Cascais, Portugal.


Resumo

No contexto dos estágios opcionais do internato específico de medicina geral e familiar realizei três estágios no National Health Service, nas várias tipologias de cuidados paliativos que existem e que, com algumas diferenças, também existem no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Esta experiência permitiu-me encontrar diferenças que julgo poderem alimentar a necessária discussão sobre as mudanças a realizar em contexto nacional. Por outro lado, permitiram-me um olhar diferente sobre a nossa realidade, o caminho já percorrido, mas também aquele que ainda temos pela frente. Acredito ser urgente uma discussão relativa a três temas que me parecem fraturantes e de enorme relevo para que a qualidade dos cuidados prestados seja efetivamente aquela que desejamos num SNS que pretende cuidar de forma holística cada um dos portugueses: “via verde” para doentes e famílias com necessidades paliativas, o respeito pela autonomia dos doentes e famílias e a partilha de experiências e erros, entre profissionais, que pode levar a um crescimento coletivo nesta área.

Palavras-chave: Cuidados paliativos; Dignidade; Autonomia; Medicina centrada na pessoa

Abstract

In the context of the optional internships of the specific training in general and family medicine, I performed three internships at the National Health Service, in the various types of palliative care that exist and that, with some differences, also exist in the SNS. This experience allowed me to find differences that I believe can feed the necessary discussion about the changes to be carried out in a national context. On the other hand, they allowed me a different perspective of our reality, the path already taken, but also the one we still have ahead of us. I believe that there is an urgent need for a discussion on three topics that seem to me to be very important so that the quality of care provided is effectively what we want in a SNS that intends to take care of every Portuguese in a holistic way: fast track for patients and families with palliative needs, respect for the autonomy of patients and families and the sharing of experiences and errors among professionals, which can lead to collective growth in this area.

Keywords: Palliative care; Dignity; Autonomy; Patient centered care

Introdução

Em 2016, no âmbito dos estágios opcionais do internato específico de medicina geral e familiar (MGF), realizei duas semanas de estágio, com a equipa comunitária de cuidados paliativos do Centro Hospitalar Guy’s and St. Thomas, em Londres. Em março de 2020, já depois de ter terminado o internato de MGF, regressei para uma semana de estágio com a equipa intra-hospitalar do Kings College Hospital e uma semana no St. Christopher’s Hospice, no contexto da obtenção de uma bolsa da Fundação La Caixa em parceria com a Ordem dos Médicos.

Estes três estágios foram, assim, realizados nas várias tipologias de cuidados paliativos que existem no National Health Service (NHS) e que, com algumas diferenças, também existem no Serviço Nacional de Saúde (SNS): equipas intra-hospitalares, equipas comunitárias e hospices. Estes, e não existindo exatamente com a mesma estrutura e organização, podem ser equiparados em alguns aspetos a unidades de cuidados paliativos.

A vontade de relatar esta experiência, estágio de trinta dias em cuidados paliativos, num contexto com décadas de experiência na área, surge pelas diferenças encontradas que julgo poderem alimentar a necessária discussão sobre as mudanças a realizar em contexto nacional.

Num sistema de saúde onde estes cuidados existem desde a década de 60, reconhecidos como uma especialidade médica, estes estágios contribuíram para ver as diferenças entre as condições oferecidas no NHS e no SNS a doentes, famílias e profissionais nesta área. Permitiram-me também adquirir um olhar diferente sobre a nossa realidade, os pontos fortes e fracos, as ameaças enfrentadas, as oportunidades aproveitadas, o muito caminho já percorrido, mas simultaneamente proporcionaram-me aprendizagens fundamentais para o que nos falta percorrer, estruturar e organizar.

Em 1967 surgiu no Reino Unido o primeiro hospice, pensado e estruturado por Dame Cicely Saunders. Hoje os cuidados paliativos são bem aceites e reclamados pela população como um direito. São aceites de forma precoce, sem serem vistos como uma desistência da pessoa, por parte do sistema de saúde, mas como um investimento do mesmo na qualidade de vida de cada inglês.1

Assinalo alguns pontos que me pareceram substancialmente diferentes e que afetam positivamente os cuidados prestados aos doentes com necessidades paliativas no Reino Unido. Por outro lado, um olhar atento sobre o SNS revela que a ausência destas medidas não nos pode deixar indiferentes. Qual será o seu impacto na qualidade de vida dos doentes e famílias portuguesas?

“Via Verde” para doentes com menos de três meses de vida

Em 2016, enquanto interna de MGF, tinha já um particular interesse por cuidados paliativos e desenvolvia ações paliativas com uma das Equipas de Cuidados Continuados Integrados, do Agrupamento de Centros de Saúde de Cascais. Contudo, a pouca experiência não me tinha deixado compreender as reais dificuldades de doentes e famílias quando optavam por ser cuidados e cuidar no domicílio e eventualmente vir a morrer em casa. Mantinha-me centrada no controlo da sintomatologia, focada na resolução dos problemas assentes na perspetiva física do cuidar. Para lá deste meu foco no controlo de sintomas verifiquei que as condições oferecidas pelo NHS, em colaboração com os serviços sociais, tentavam dar resposta às necessidades de quem tem uma doença progressiva, avançada, incurável e deseja ser cuidado e eventualmente vir a morrer no domicílio.

Mas foi apenas no estágio de março de 2020, após concluir o internato e depois de três anos a trabalhar em cuidados paliativos e a visitar diariamente doentes e famílias no seu domicílio, que consegui compreender a real importância desta articulação entre serviços de saúde e sociais.

No NHS, as equipas de saúde, em cuidados de saúde primários ou em contexto hospitalar, quando estão perante um doente com um prognóstico inferior a três meses, podem ativar o designado Fast Track. Uma vez ativo, em apenas algumas horas, no máximo em dois dias, os doentes têm em sua casa as ajudas técnicas ajustadas às suas necessidades e de um até três cuidadores, consoante o necessário. Estes cuidadores podem deslocar-se ao domicílio até quatro vezes por dia, de forma totalmente gratuita, para ajudar na higiene, alimentação, compras e limpezas.

Depois de um terapeuta ocupacional verificar as condições do domicílio do doente e identificar quais as ajudas técnicas necessárias, as mesmas são requisitadas, com autorização do doente e família, levadas ao domicílio, sem que a família se veja envolvida num processo burocrático e complicado, sendo da responsabilidade dos profissionais de saúde e serviço social agilizar e flexibilizar ao máximo todo o percurso.

Não existe lista de espera, uma vez que estes doentes são identificados como prioritários. O processo é simples, depende apenas dos profissionais, não dos doentes ou familiares, pouco burocratizado e feito para responder a todas as pessoas que pela sua doença se encontrem numa situação previsivelmente de últimos três meses de vida. O foco está em tornar este tempo o mais confortável possível, sem obstáculos burocráticos, financeiros, logísticos, e que seja vivido em casa, se o doente e a família assim o desejarem.

Em Portugal, os doentes com necessidades paliativas, que se encontrem nos últimos meses, semanas, dias de vida, são integrados em listas de espera, burocracias infindáveis e exigências do sistema que não se coadunam com o seu tempo de vida e com os cuidados que exigem, pela sua fragilidade individual e familiar.

Morrer, em Portugal, num hospital ou numa unidade de cuidados paliativos é totalmente gratuito. Morrer em casa é pago de acordo com os rendimentos familiares.

A nossa realidade é diametralmente oposta à do Reino Unido, com doentes nos últimos dias de vida que não têm uma cama articulada em casa porque, apesar de a família ter conseguido encontrar uma Instituição Particular de Solidariedade Social com uma cama disponível para aluguer, o transporte da cama tem um custo, assim como a sua montagem.

Não tendo forma de transportar a cama nem dinheiro para pagar o seu transporte, o Sr. P., diagnosticado apenas dois meses antes com neoplasia do pulmão metastizada, acabou por morrer no hospital, ao contrário do que tantas vezes pediu, por falta de recursos em casa e uma cuidadora exausta. Cuidar de alguém em fim de vida é um ato de Amor, mas também uma tarefa hercúlea no caso de não existirem condições ótimas. Cuidar sem ajudas técnicas e sem apoio é desumano.

Será que a maioria dos portugueses planeiam a sua vida de forma tão detalhada ao ponto de financeiramente estarem confortáveis para viver um processo de doença arrastado, ou um episódio de doença que surge de forma inesperada, sem que isso traga consequências financeiras para a sua família?

Ou será que a maioria das pessoas com doença progressiva avançada e incurável, no nosso país, vive com a perspetiva assustadora de deixarem a família sem segurança, porque as reservas financeiras de uma vida estão também a ser consumidas pela doença?

Portugal investe nos cuidados antecipatórios, com saúde infantil, planeamento familiar, saúde materna, prevenção de doença oncológica, cardiovascular... Procuramos dar aos portugueses os melhores cuidados e isso reflete-se nos nossos bons resultados, por exemplo na baixa taxa de mortalidade materno-infantil. Mas quando se aproxima o fim de vida, que tipo de cuidados estamos a oferecer? É possível escolher onde se nasce, mas será que é possível escolher onde e como se morre?

A população portuguesa deseja morrer em casa, 2 como em muitos outros países europeus, mas não estará o cenário ideal, pensado pela população em geral, bem longe do cenário real que vivem os doentes em Portugal? Bem longe do cenário real que vivem os doentes no Reino Unido? O que é que estamos realmente a oferecer aos nossos doentes e às suas famílias?

Ao contrário do que muitos parecem querer pensar, a morte é uma inevitabilidade e a maioria de nós morrerá de uma doença progressiva avançada e incurável. Será que a dignidade de quem está a morrer deve estar relacionada com o seu IRS e com a capacidade de cuidadores, altamente sobrecarregados, em agilizarem as ajudas necessárias?

Contactar com outras realidades de cuidados paliativos, inseridas noutros sistemas de saúde e segurança social, pode contribuir para, usando as forças encontradas, avançarmos na promoção da dignidade no fim de vida, de forma a prestarmos cuidados que efetivamente são centrados no doente, na família e nas suas necessidades, físicas, psicológicas, sociais e espirituais.

Promoção da autonomia

A medicina centrada na pessoa é um assunto recorrente no ambiente formativo ou mesmo no nosso dia a dia; contudo, muitas vezes centramos a medicina pouco na pessoa doente e muito nos profissionais.

Esta experiência foi uma oportunidade para conviver em vários contextos, internamento, comunidade e consultas, com a medicina centrada na pessoa que, sendo fundamental nas várias etapas de vida, se reveste de particular importância quando falamos de decisões em fim de vida.

Felizmente conheço em Portugal muitos profissionais que a praticam, muitos projetos que a promovem, mas também nos vejo a todos a praticar a medicina centrada “no que eu sei que é melhor para o doente”. São inúmeras as atitudes que vamos tendo com a pretensa desculpa de que “é no melhor interesse da pessoa doente” quando na realidade se baseia maioritariamente em nós.

Questionamos os nossos doentes sobre o que realmente querem? Damos a informação que precisam para tomarem uma decisão consciente e informada? Damos o tempo que precisam para ponderar, conversar com a família e depois connosco decidir o que gostariam de fazer? Revisitamos as suas decisões? Permitimos que mudem de ideias?

No fundo, reconhecemos verdadeiramente autonomia aos nossos doentes? Ou, assentes unicamente nos pilares da beneficência e não-maleficência, somos nós que decidimos o que é melhor?

Capacitar os doentes e famílias para decisões conscientes e informadas exige tempo, trabalho e esforço da parte dos profissionais. Quantas vezes não pensamos: “é demasiada informação para lidarem”; “não são profissionais de saúde, não vão compreender a complexidade da situação”; “os peritos somos nós”? Temos então a pretensão de achar que também somos peritos na vida daquela pessoa e temos experiência do que é ter aquela família, do que é viver aquele contexto? O que faz de nós pessoas mais capazes de tomar determinada decisão que influencia profundamente a vida de alguém do que esse alguém?

O encontro entre o conhecimento do profissional de saúde e o conhecimento que só pode vir da experiência de vida é o que pode trazer a melhor solução para esta pessoa, respeitando a sua autonomia.

Os estágios no Reino Unido permitiram-me estar com várias classes de profissionais, conviver com várias abordagens, com doentes com diferentes graus de diferenciação académica e verifiquei que existe uma tentativa genuína de envolver doentes e famílias, colocando a pessoa no centro dos cuidados e, por isso, no centro do processo de decisão, com tudo o que possa ou não ser compreendido pelos técnicos. Temos de dar oportunidade aos doentes para mostrarem que são eles os peritos quando falamos das decisões que influenciam a sua saúde e a sua vida até que a morte chegue.

Respeitar, identificar, rever e fazer o caminho juntos

Durante as últimas duas semanas desta segunda parte do estágio, várias foram as reuniões clínicas inter e multidisciplinares cujo intuito era a discussão e reflexão sobre casos anteriores e atuais, partilha de experiências e escolha de objetivos comuns enriquecidos pelo olhar de várias especialidades médicas e de vários grupos profissionais.

Refletimos sobre os cuidados prestados, sobre o que correu menos bem, os erros que cada um possa ter cometido nos cuidados ao doente e as decisões que foram tomadas e que retrospetivamente não foram as que melhor serviam o interesse do doente e da família.

Discutimos doentes que ainda estavam ao cuidado das equipas, doentes que tinham tido alta e doentes que tinham morrido, sempre numa cultura de crescimento, assumindo o que a equipa (e nunca o indivíduo) podia ter feito de forma diferente para melhorar os cuidados.

Nestas reuniões, cada profissional, cada equipa, com humildade, reconhecia o que poderia ter sido feito de outra forma para maior benefício do doente e da família. Uma partilha sem julgamento, onde era feito um trabalho conjunto de análise que contribuía para mudanças importantes na prestação dos cuidados.

Era feita uma reflexão profunda sobre a atuação de cada equipa com foco no crescimento, enquanto equipa multidisciplinar, enquanto serviço de paliativos, enquanto hospital de referência, em última análise, enquanto NHS, para se prestarem cuidados com equidade e qualidade. Aprendermos todos com os erros e com as boas práticas de cada um para implementarmos o que pode resultar melhor para o doente.

Vamos todos errar, é uma inevitabilidade, mas é também uma oportunidade de crescimento coletivo. Foi, sem dúvida, marcante observar como a partilha do erro pode não ser penalizada, mas antes utilizada para a aprendizagem coletiva e melhoria contínua na prestação de cuidados.

Conclusão

As particularidades nacionais, do SNS, da nossa cultura, da nossa sociedade, exigem uma adaptação a todas estas aprendizagens para serem aplicáveis à nossa prática clínica.

É fundamental e urgente que a modificação da definição de Cobertura Universal de Saúde, feita em 2017 pela Organização Mundial da Saúde, que incluiu paliação em paralelo com promoção, prevenção, tratamento e reabilitação, seja realmente implementada. 3

O cuidado da saúde física, psíquica, emocional, social e espiritual é um desafio em todas as fases da vida e continua a ser, e com muita relevância, nos momentos que antecedem o fim de vida de cada um de nós. É obrigação do sistema de saúde garantir que esta fase seja revestida de dignidade e qualidade, fazendo com que cada um se sinta acolhido e protegido, considerado como ser humano único, verdadeiramente cuidado até que a morte chegue.

Aprendermos com aqueles que já fizeram este caminho pode ajudar a encurtar a viagem e a organizar ainda melhor, com mais qualidade, o SNS, no que diz respeito aos cuidados paliativos.

Conflito de interesses

A autora declara não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Referências bibliográficas

1. Suresh T, editor. The 2015 Quality of Death Index: ranking palliative care across the world. London: The Economist Intelligence Unit; 2015. Available from: https://impact.economist.com/perspectives/sites/default/files/2015%20EIU%20Quality%20of%20Death%20Index%20Oct%2029%20FINAL.pdf [ Links ]

2. Gomes B, Sarmento VP, Ferreira PL, Higginson IJ. Estudo epidemiológico dos locais de morte em Portugal em 2010 e comparação com as preferências da população Portuguesa. Acta Med Port. 2013;26(4):327-34. [ Links ]

3. World Health Organization. Universal health coverage. Geneva: WHO;. Available from: https://www.who.int/health-topics/universal-health-coverage#tab=tab_1Links ]

Recebido: 23 de Abril de 2022; Aceito: 18 de Outubro de 2022

Endereço para correspondência Tânia Caeiro Varela E-mail: ni.varela.goncalves@gmail.com

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