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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.1 Lisboa fev. 2023  Epub 30-Mar-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i1.13670 

Carta ao editor

Diabéticos sem semaglutido: qual o verdadeiro problema?

Diabetic patient without semaglutide: where’s the real issue?

Sara João1  , Médica Interna de Medicina Geral e Familiar
http://orcid.org/0000-0003-4659-3828

André Melícia2  , Médico Interno de Medicina Geral e Familiar

Raquel Baptista Leite3  , Médica Assistente de Medicina Geral e Familiar

1. Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Ajuda, ACeS Lisboa Ocidental e Oeiras. Lisboa, Portugal.

2. Médico Interno de Medicina Geral e Familiar. USF Alcais, ACeS Cascais. Alcabideche, Portugal.

3. Médica Assistente de Medicina Geral e Familiar. UCSP Parede, ACeS Cascais. Parede, Portugal.


Caro Editor,

Foi recentemente noticiada a rutura de stock do medicamento Ozempic® em vários países europeus, incluindo Portugal.1 Este medicamento, cujo princípio ativo é o semaglutido, um análogo do péptido-1 semelhante ao glucagon (aGLP-1), encontra-se autorizado e comparticipado no nosso país para o tratamento da diabetes mellitus tipo 2. Esta recente classe farmacológica apresenta vários estudos que revelaram inúmeros benefícios além do controlo glicémico, nomeadamente um impacto positivo na redução do risco cardiovascular, sendo a perda de peso um efeito conhecido. 2 Existe, igualmente aprovado em Portugal, um outro medicamento desta classe para o tratamento da obesidade e excesso de peso associado a comorbilidades, não sendo, porém, comparticipado. Assim, o que se tem verificado é a utilização off-label do medicamento Ozempic® para a perda de peso.

Perante este problema, surgem-nos várias inquietações. Em primeiro lugar, o facto deste medicamento estar a ser utilizado pela população não diabética significa que está a ser irregularmente prescrito para um fim diferente do qual foi autorizado. Segundo dados avançados no dia 26 de outubro pelo jornal Público, 3 nos primeiros sete meses deste ano, o Ozempic® já custou 18,2 milhões de euros ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). Ora, sabe-se que a prevalência da diabetes em Portugal é de aproximadamente 13,3% entre os 20 e 79 anos e que a prevalência da diabetes tipo 2 corresponderá a cerca de 90 a 95% deste total. 4 Já a prevalência do excesso de peso e obesidade na população adulta portuguesa ultrapassa os 65%.5 Daqui se conclui que o uso off-label deste medicamento tem impacto económico no SNS, resultando num aumento de despesa não prevista.

Outro problema que se afigura tem que ver com o princípio ético da justiça. Facto é que o medicamento esgotou para toda a população, incluindo para os diabéticos, que ficaram privados desse tratamento. A prescrição deste medicamento a quem não tem indicação resulta em injustiça na distribuição de recursos. 6

E será o Ozempic® caso único? Não esqueçamos que existem em Portugal mais fármacos aGLP-1 aprovados apenas para o tratamento da diabetes mellitus tipo 2.

Ainda que sejam definidas estratégias para minorar esta problemática, como o aumento da vigilância da prescrição médica ou a eventual comparticipação deste fármaco para o tratamento do excesso de peso e obesidade, a base do problema mantém-se. Continuamos com um número muito elevado de portugueses com um peso excessivo. O que nos leva a questionar: estaremos a ser suficientemente eficazes na promoção de estilos de vida saudáveis? Não deveremos repensar urgentemente as estratégias de prevenção do excesso de peso e obesidade?

Resposta do EDITOR

Caros Colegas,

Trazem-nos uma reflexão muito importante sobre uma questão que se colocou recentemente perante a rotura em Portugal do stock do medicamento Ozempic® e que se refletiu na falta de acesso a este medicamento no mercado nacional aos doentes a quem estava prescrito.

O Ozempic ® é um medicamento do grupo dos análogos do péptido-1 semelhante ao glucagom (GLP-1) humano, produzido em células Saccharomyces cerevisiae por tecnologia de ADN recombinante, com a denominação comum internacional de semaglutido. Em Portugal e na Europa está aprovado no tratamento de adultos com diabetes mellitus tipo 2 insuficientemente controlada, como adjuvante à dieta e exercício em monoterapia, quando a metformina é considerada inapropriada devido a intolerância ou contraindicações ou em adição a outros medicamentos. No nosso país está comparticipado pelo Ministério da Saúde para tratamento de adultos com diabetes mellitus tipo 2 insuficientemente controlada com IMC igual ou superior a 35 kg/m2, como adjuvante à dieta e exercício, em adição a outros medicamentos para o tratamento da diabetes, para ser utilizado em 2.a e 3.a linhas terapêuticas. Não obstante, os estudos disponíveis mostram eficácia no controlo da diabetes mellitus tipo 2 independentemente do peso inicial e uma redução significativa e consolidada do peso em pessoas com diabetes mellitus pelo menos até à semana 104 de utilização (estudo SUSTAIN 6).

Na discussão do problema temos de distinguir as três dimensões diferentes que estão em análise: a indicação formal do medicamento, a sua comparticipação e a eficácia clínica.

Se os dois primeiros dependem das agências reguladoras que irão formalizar ou não as respetivas aprovações, o último depende da decisão clínica personalizada que o médico assume, consonante com a avaliação clínica, e que se consubstancia na prescrição que estabelece com o seu doente de forma responsável e individualizada.

No seu código deontológico e ético, o médico obriga-se à prestação dos melhores cuidados a quem o procura, sendo responsável pelos seus atos, devendo abster-se de praticar atos que não estejam de acordo com as leges artis. É possível incluir atos não reconhecidos pelas leges artis (comummente conhecidos por off-label) se sobre os quais se disponha de dados promissores, em situações em que não haja alternativa, desde que com consentimento do doente.

Em relação à obesidade, chama bem a atenção para as medidas higieno-dietéticas que, mais que uma alternativa, são uma opção de primeira linha, ainda que a inexistência de uma organização verdadeiramente promotora da saúde ao nível dos cuidados de saúde primários torne impraticável a sua instituição, tornando admissíveis ética e deontologicamente as medidas farmacológicas, baseadas em evidência robusta, ainda que circunstancialmente não estejam aprovadas pelo regulador, assumindo integralmente a responsabilidade pela prescrição, como acontece com a metformina ou com a fluoxetina, por exemplo.

Fica-nos na discussão a questão da comparticipação e do custo que introduz no orçamento da saúde sendo uma prescrição off-label e sobre a qual recai também responsabilidade deontológica, na medida em que o médico se encontra obrigado a proteger a sociedade, garantindo um exercício consciente, procurando a maior eficácia e eficiência na gestão rigorosa dos recursos existentes, ainda que na medida em que tal não conflitue com o interesse do seu doente.

O ato médico tem a sua génese na proximidade íntima entre o cuidador e o cuidado, propiciando o enquadramento necessário à exploração semiológica e objetiva do diagnóstico e ao estabelecimento de um plano terapêutico capaz de alterar o prognóstico da doença e do doente, seja em termos de prevenção, de cura, de orientação continuada ou de paliação. Fá-lo de uma forma responsável, percebendo a finitude dos recursos e a carga financeira e iatrogénica que acarreta para o doente e para a comunidade, introduzindo a perspetiva da equidade e da justiça social, percebendo que não vai dar tudo a todos, mas o necessário a quem de facto necessita. Não obstante, apenas poderá assumir a responsabilidade do que é efetivamente responsável, o que não acontece com a definição da política do medicamento, do acesso aos medicamentos, da operacionalização dos copagamentos, do circuito de comercialização e da sua distribuição e dispensa.

No seu exercício o médico prescreve responsavelmente o medicamento que é eficaz para a situação concreta, tendo em conta o contexto individual, familiar e comunitário, incluindo os custos diretos e indiretos da medicação e restante tecnologia. No atual panorama em Portugal, a comparticipação é operacionalizada à apresentação do medicamento, tendo acesso quem for portador de receita válida de medicamentos nos termos da Portaria n.o 224/2015, com as alterações entretanto introduzidas, e ressalvando alguns regimes especiais de comparticipação de medicamentos em função de patologia específica. Esta definição é politicamente determinada e obedece à decisão do legislador. Nada obsta a que possa ser feito de forma diferente e, num sistema que está todo informatizado, é relativamente fácil que tal aconteça. Mas o seu a seu dono! Não poderão ser os médicos a arcar com este peso e a negar a prescrição a quem dela necessita; teremos de exigir da tutela a postura responsável, transparente, assertiva e ética de explicar à população que determinados tratamentos apenas serão comparticipados em determinados diagnósticos, assumindo o ónus político da decisão.

Paulo Santos

Editor-chefe da RPMGF

Referências bibliográficas

1. INFARMED. Indisponibilidade de medicamentos contendo semaglutido (Ozempic): circular informativa nº 125/CD/100.20.200 de 24/10//2022. Lisboa: INFARMED; 2022. Available from: https://www.infarmed.pt/web/infarmed/infarmed/-/journal_content/56/15786/7598121 [ Links ]

2. Sattar N, Lee MM, Kristensen SL, Branch KR, Del Prato S, Khurmi NS, et al. Cardiovascular, mortality, and kidney outcomes with GLP-1 receptor agonists in patients with type 2 diabetes: a systematic review and meta-analysis of randomised trials. Lancet Diabetes Endocrinol. 2021;9(10):653-62. [ Links ]

3. Campos A. Medicamento para diabetes é usado para perder peso: despesa do SNS dispara. Público; 2022 Oct 24. Available from: https://www.publico.pt/2022/10/24/sociedade/noticia/medicamento-diabetes-usado-perder-peso-despesa-sns-dispara-2025084Links ]

4. Raposo JF. Diabetes: factos e números 2016, 2017 e 2018. Rev Port Diabetes. 2020;15(1):19-27. [ Links ]

5. Gaio V, Antunes L, Namorado S, Barreto M, Gil A, Kyslaya I, et al. Prevalence of overweight and obesity in Portugal: results from the First Portuguese Health Examination Survey (INSEF 2015). Obes Res Clin Pract. 2018;12(1):40-50. [ Links ]

6. Carballo F, Júdez J, de Abajo F, Violán C. Uso racional de recursos. Med Clin. 2001;117(17):662-75. [ Links ]

Recebido: 19 de Novembro de 2022; Aceito: 12 de Fevereiro de 2023

Endereço para correspondência Sara João E-mail: sarapsjoao@gmail.com

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